Histórico, histórico, histórico. Histórico porque Portugal nunca tinha conseguido o apuramento para a fase final de uma grande competição em tão poucos jogos. Histórico porque Portugal nunca tinha ganho um jogo por 9-0 como aconteceu com o Luxemburgo (nem tinha saído com uma vantagem de cinco golos fora para o descanso, como na Bósnia). Histórico porque nunca um selecionador teve uma estreia a fazer oito vitórias consecutivas. Roberto Martínez não era o treinador mais unânime quando foi apresentado como sucessor de Fernando Santos na Seleção, até pelo facto de surgir como é habitual a ideia estereotipada de que um país que tem alguns dos melhores treinadores do mundo não necessita de recrutar no estrangeiro. Nove meses depois, essa realidade mudou. Tão ou mais importante do que os números, Portugal joga bem, tem gosto em jogar, ganha e marca golos. No limite, é tudo aquilo que se quer de uma equipa – e é aquilo que se tem.
Após seis anos no comando da Bélgica, onde chegou a ficar em terceiro no Campeonato do Mundo de 2018 (e posteriormente em primeiro do ranking da FIFA) mas saiu vergado a uma eliminação na fase de grupos do Mundial de 2022 no Qatar com notícias que davam conta de um balneário partido, Roberto Martínez teve convites para seguir a carreira num clube mas não pensou duas vezes após a abordagem da Federação através do seu presidente, Fernando Gomes. O perfil era aquele, a prática está a superar as expetativas. O estilo de liderança que faz a apologia do “máxima liberdade, máxima responsabilidade” vingou em menos de um ano com segredos à mistura que começaram na resolução daquilo que poderia ser um problemas mas virou (de novo) solução chamado Cristiano Ronaldo. Depois, houve partes mais “políticas”, a construção de uma identidade abraçada a 100% pelos jogadores que são os mesmos mas rendem mais, uma comunicação sempre cuidadosa e sobretudo uma enorme paixão pelo futebol nacional. Assim chegou aos tais “históricos”.
As viagens para conhecer os convocados que começaram em Riade com Ronaldo
Após ser nomeado selecionador, no final de todo um processo que teve também José Mourinho pelo meio (e o treinador da Roma recordou-o uns dias depois da apresentação), Roberto Martínez encontrou-se com todos os jogadores que tinham estado no Campeonato do Mundo do Qatar. Viajou muito, viu ainda mais encontros, tudo por pequenas reuniões que quis ter com os elementos da última convocatória para falar em termos mais genéricos do que esperava desta nova era na Seleção. Contudo, escolheu a dedo a primeira paragem: Riade. Aproveitando a realização da Final Four da Supertaça de Espanha na Arábia Saudita, o técnico esteve com William Carvalho, Rui Silva (Betis), Thierry Correia e André Almeida (Valencia), todos jogadores que tinham falhado o Mundial mas que estavam na sua lista de potenciais convocados, mas sobretudo com Cristiano Ronaldo, que dava os primeiros passos na nova aventura no Médio Oriente depois do período mais difícil na Seleção. Se dúvidas ainda existissem, o espanhol dissipou-as. Ao avançado, ao balneário, a todos. Com isso, acabou com o momento mais tenso vivido em Doha e “recuperou” o avançado e capitão de 38 anos.
A criação de um primeiro grupo “forte” sem fazer uma rutura com o passado
Quando acabou o Campeonato do Mundo do Qatar, com Portugal a ser eliminado nos quartos com Marrocos deixando a ideia de que poderia ter feito história na principal prova de seleções (até pela goleada frente à Suíça nos oitavos), havia uma ideia generalizada de “fim de ciclo”. Em parte, fazia sentido. A própria FPF foi percebendo isso. No entanto, uma coisa é considerar que uma era tinha chegado ao fim em termos técnicos após oito anos com a conquista de um Europeu e de uma Liga das Nações, outra é que essa mesma era dizia respeito aos jogadores. Martínez soube separar da melhor forma os dois planos, mantendo a aposta na base da qualificação para o Mundial de 2022, foi lançando ou apostando mais em jovens jogadores e teve o condão de mostrar como os mesmos elementos poderiam render muito mais no plano individual e coletivo.
Consumir Portugal, dos bastidores às seleções jovens passando pela própria língua
Roberto Martínez não demorou a começar as suas aulas de português quando assumiu a Seleção. Espanhol habituado a falar inglês (até em casa), tem uma hora e meia de aulas por dia para aprender não só o básico mas para falar o mais aproximadamente possível apesar do sotaque que existe sempre com aqueles com quem trabalha de forma mais próxima, incluindo os jogadores. Todos reconhecem esse “esforço”, sendo que o próprio treinador se tornou um apaixonado por Portugal. Há o clima, há a comida, há a forma de ser. Tudo isso são aspetos que encantam a maioria. Martínez junta a isso o próprio futebol, não apenas aqueles jogos dos jogadores que segue de forma mais próxima pelas convocatórias da equipa A mas também partidas dos Sub-21, da Liga Revelação, das equipas B, dos Sub-20 e Sub-19 nacionais (além daquilo que se pode descrever como bastidores e as próprias características nacionais). Tudo terá o seu tempo mas assim como foi acompanhando o percurso de João Neves no Benfica e nas seleções até considerar que estava na hora de chamar o médio, existem muitos outros jovens talentos referenciados numa ótica de médio prazo.
A preocupação com a parte da comunicação (para dentro e para fora)
As vivências de Roberto Martínez como jogador e treinador foram moldando aquilo em que se acabou por transformar enquanto selecionador, muito influenciado pela passagem por Inglaterra e pela Premier League. O espanhol, tal como muitos outros técnicos – embora essa não seja uma opinião unânime –, considera que alguém que vingue no principal campeonato europeu pode vingar em qualquer lado porque é ali que estão todas as bases do que é o futebol moderno. Entre elas está a parte da comunicação, aquela veia que às vezes é quase “política” de como gerir e blindar grupos através das atitudes e das palavras. Essa tem sido também uma das preocupações do selecionador desde que assumiu o conjunto nacional, não só naquilo que diz e como diz nas conferências de imprensa (para onde vai sempre bem preparado e recusa entrar em qualquer tipo de conflito) mas também na forma como aborda o plantel e os jogadores de forma individual, naquela que é outra das mudanças apontadas em termos internos em relação à era Fernando Santos.
Uma forma única de acompanhar todos os muitos jogadores (82) que podem ser chamados
O El Mundo fazia esta semana um trabalho sobre alguns dos pontos que têm permitido uma adaptação tão boa e rápida de Roberto Martínez a Portugal e tocava num aspeto que é dos mais valorizados por todos na Cidade do Futebol: a maneira como o técnico “trabalha” com os jogadores mesmo quando não está com os jogadores. Os 82 jogadores que são acompanhados nesta fase pela Seleção estão divididos por grupos com patamares e probabilidades distintas de chamadas mas todos são seguidos através ao recurso de Inteligência Artificial, que permite ir sabendo sempre os minutos, a forma da equipa, o sistema tático, a parte física, as posições e o calendário, entre outros aspetos até às concentrações na Seleção, altura em que todos os dados dos treinos e dos jogos são analisados ao detalhe. É isso que permite a Martínez “confirmar” o acompanhamento diário que vai fazendo dos jogadores, ainda que exista um ponto que faz sempre muita diferença para o técnico: a entrega, a dedicação, a mentalidade e a capacidade de integração num grupo.
Como reagir a uma primeira crítica mais “audível” (que depois se desmultiplicou em várias)
De vitória em vitória, a bater recordes, a terceira convocatória de Roberto Martínez por Portugal, para jogos na Eslováquia e no Algarve com o Luxemburgo, gerou pela primeira algumas críticas mais “audíveis”. Razão? A chamada de João Félix e João Cancelo, que tinham estado sem competir durante a pré-temporada à espera de uma solução antes de assinarem no último dia por empréstimo pelo Barcelona. Todos os selecionadores sabem que as listas de setembro são sempre mais “criticáveis”, tendo em conta o estado inicial da época e as movimentações do mercado, e o técnico foi visado por comentadores, treinadores de clubes e empresários na ótica dessa escolha. Martínez ouviu, sentiu e soube dar a volta. Como? Explicou que estava a criar um grupo e que a resposta da dupla nos estágios anteriores tinha sido muito positiva, elogiou alguns dos nomes atirados como potenciais selecionáveis e evitou comentários diretos às principais críticas. Resultado? Félix e Cancelo estiveram em plano de destaque e aproveitaram esse período para se consolidarem no Barça.
A criação de uma identidade que já é alheia ao sistema tático para cada adversário
Havia um pouco a ideia meramente teórica de que Roberto Martínez teria um problema tático por resolver entre aquilo que mais gostava (o 3x4x3, pelo menos olhando para a forma como jogava a Bélgica) e o facto de não haver propriamente um leque tão grande de opções entre os centrais, comparando com outras posições. Nem uma coisa nem outra se confirmaram: por um lado, e mesmo começando nessa linha de três atrás, os esquemas táticas foram passando para os quatro defesas com dinâmicas próprias que a equipa foi ganhando; por outro, há mais vida além de Rúben Dias e Pepe (que até tem estado lesionado) com os aparecimentos na Seleção de António Silva e Gonçalo Inácio, além do “desconhecido” Toti Gomes, do Wolverhampton, e mais elementos como Diogo Leite. Segredo? A forma como conseguiu aproveitar os curtos períodos de estágio para criar, lançar e consolidar uma identidade que permite hoje à equipa nacional jogar de qualquer forma e em qualquer esquema sem perder aqueles que são os seus principais princípios com e sem bola.
+ golos ???????? Portugal numa fase de qualificação (Europeu/Mundial):
35: 2006 (12J)
33: 2002 (10J)
32: 2000 (10J)
32: 2018 (10J)
32: 2024 (8J – ainda mais jogos por disputar)???? pic.twitter.com/TeIJLdJqle— Playmaker (@playmaker_PT) October 16, 2023
????????Portugal somou a 8.ª vitória nesta fase de qualificação, o seu melhor registo de sempre num apuramento para o Campeonato da Europa:
2024: 8????
1996: 7
2000: 7
2008: 7
2016: 7 pic.twitter.com/QoEEGDo2PH— Playmaker (@playmaker_PT) October 16, 2023
O toque de Midas de Martínez em apuramentos que chegou ao jogo de Portugal
Um recorde, outro recorde, a ameaça de mais uns quantos registos históricos. A qualificação de Portugal para a fase final do Campeonato da Europa, naquele que foi o apuramento mais rápido de sempre, foi em parte vista à luz dos adversários que estariam muito abaixo da Seleção e do facto de passarem duas equipas diretas para a prova. Está certo: a Eslováquia passou por um processo de mudança, a Bósnia perdeu-se numa fase de transição de gerações. No entanto, os números que a formação portuguesa mostra conta o resto da história: à parte da capacidade de dominar qualquer jogo, seja na posse, nos passes, nas oportunidades criadas, nos golos marcados e na escassez de chances que permite ao adversário no seu último terço, existe uma equipa eficaz, com gosto em jogar e que sabe o que quer. Foi assim que fez as oito vitórias consecutivas na era Martínez com uma média de 4-0,25 em golos (ficando a um triunfo de igualar o recorde da Seleção, que data de 1966), foi assim que o técnico chegou às 18 vitórias noutros tantos encontros de qualificação para fases finais do Europeu entre Bélgica e Portugal. E esses são pontos que não têm só a ver com os adversários.