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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Palavrões contra Putin e juras de vingança no funeral de Sasha, fuzileiro que salvava animais e ia casar-se no fim da guerra

Um pedido de perdão aos pais. Juras de vingança. E militares a gritar palavrões contra Putin. O Observador no funeral do fuzileiro Sasha, que seduziu a namorada por tirar o melhor capuccino de Kiev.

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Acabam de chegar da guerra. Estão com os seus uniformes, armas a tiracolo, munições à volta da cintura. Um está de sapatilhas. Outro tem o gorro a cobrir-lhe todo o rosto exceto os olhos e assim ficará toda a cerimónia. Cerca de três dezenas de fuzileiros alinham-se em frente à casa mortuária, junto ao enorme cemitério de Baikove, em Kiev. Alguns seguram flores amarelas, uma das cores da bandeira ucraniana.

Ao lado estão meia dúzia de jovens civis e os pais do fuzileiro morto: todos o tratavam pelo diminutivo Sasha, mas o seu nome completo era Kovtun Oleksandr Gennadievich. Foi atingido no coração pela artilharia russa, no dia 15 de março, na batalha de Huta-Mezhyhirska, 30 km a norte de Kiev. Tinha 32 anos.

O comandante dos fuzileiros anuncia ali fora a condecoração póstuma de Sasha com uma medalha por bravura. Depois, incita os seus homens a responder-lhe em coro, bem alto, a poucos metros do padre, dos amigos e dos pais:

— Aos heróis, aos heróis, aos heróis!
— Glória! Glória! Glória! (respondem os fuzileiros)
— Herói não morre!
— Herói não morre! Herói não morre! Herói não morre!
— Ucrânia!
— Acima de tudo!
— Putin!
— Pró caralho! [Xuilo!]
— Kadyrov!
— É um panasca! [Piderass!]

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O palavrão dedicado a Putin começou por ser cantado pelas claques em estádios de futebol e tem sido usado de forma generalizada na Ucrânia desde a anexação da Crimeia em 2014. Razman Kadyrov é o líder da Chechénia, conhecido como cão de guerra de Putin, e ameaçou recentemente deslocar-se pessoalmente à guerra na Ucrânia, onde tem um largo contingente de ferozes combatentes a espalhar destruição e morte.

Fotografia cedida pela família

O início do namoro graças ao melhor capuccino de Kiev

Sasha já tinha servido os fuzileiros na Crimeia em 2014. A sua vida pode ter acabado numa batalha, mas não se esgota na arma que disparou, nas munições que descarregou, no uniforme que vestiu.

A maioria dos seus camaradas deste pelotão conheceu-o apenas nos últimos dias da sua vida. Sabiam que ele era barista, um grande especialista em café, que criou uma marca própria com dois sócios, mas talvez desconhecessem que foi graças ao café que conheceu Masha, a mulher da sua vida. Um amigo comum insistia que o capuccino tirado por Sasha era o melhor de Kiev: ela foi experimentar, cruzaram-se ao balcão e começaram a namorar a 1 de março de 2015, há sete anos.

Fotografia cedida pela família

Os camaradas de pelotão devem ter-se apercebido da sensibilidade de Sasha em relação aos animais, quando a meio de uma missão nesta guerra o viram a resgatar uma gata que estava trancada numa casa abandonada, muito magra, a correr perigo de vida. Libertou-a, deu-lhe comida e bebida e salvou-a. Mas talvez não soubessem que fazia isto no seu dia-a-dia: sempre que via animais abandonados ia alimentá-los e levava-os ao veterinário nos casos mais graves. Adotou uma gata, Mia, salvou outra e pediu aos pais que a adotassem. Tinha também um cão, Den, que adorava o dono e sente imenso a sua falta.

Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre o funeral de Sasha.

Sasha queria casar, mas morreu em combate

Como Sasha era pouco falador, talvez os camaradas de pelotão não soubessem que ele também adorava pedalar e estava ansioso que chegasse esta primavera para ir aventurar-se de bicicleta pelo oeste da Ucrânia e talvez mesmo no estrangeiro. Também ambicionava entrar um dia na duríssima competição “iron man” (3,9 km a nadar, 180 km a pedalar e 42 km a correr). O seu outro grande hobby não podia ser mais contrastante: adorava pintar miniaturas — comprava ele próprio as tintas e as pequenas figuras e distraía-se a decorá-las.

O alistamento às escondidas da família sem direito a uma despedida

Sasha decidiu realistar-se para se juntar à defesa de Kiev, sem dizer nada aos pais nem à namorada, sem uma despedida, sem o abraço que teria sido o último. Mesmo assim, Masha Korchahina, uma artista 3D de 31 anos, não guarda mágoas contra a decisão: “Ele era um homem bom que viveu com uma alma pura até ao último dia. Deu a vida para defender o seu país e a sua família: queria que vivêssemos vidas melhores, em liberdade.”

Nas pausas dos combates, talvez os seus camaradas de pelotão tenham visto Sasha a enviar mensagens à namorada. O casal ainda conseguiu ouvir-se ao telefone algumas vezes, mesmo que em chamadas muito curtas por causa das circunstâncias da guerra. “Ele escrevia-me a dizer que ia correr tudo bem, que íamos ganhar esta guerra porque o nosso exército era melhor, e a dar-me apoio. Falámos, mas não tantas vezes como eu queria. Tenho tanta pena disso agora”, lamenta Masha ao Observador.

As crianças e os animais gostavam tanto de Sasha que ele e a namorada comentavam, a brincar, que ele podia perfeitamente trabalhar como baby-sitter. O casal planeava ter filhos, comprar um apartamento, passar férias a fazer caminhadas nos Cárpatos. Antes iam casar-se, mas a guerra adiou esse desejo.

Fotografia cedida pela família

“O pedido de casamento não me pareceu assim tão romântico no momento em que foi feito, mas agora vejo que não podia ter sido melhor e dava tudo para recuar no tempo, para quando ambos éramos felizes… Amo-o tanto. E ele amou-me”.

A 11 de março, quatro dias antes de morrer, Sasha ligou à namorada. “Eu estava a chorar e combinámos que íamos passar a chamar-nos um ao outro marido e mulher, mesmo sem ser oficial ainda. Quando a guerra acabasse é que íamos mesmo casar, mas… não vamos.”

“As ratazanas… sim, são ratazanas, que atacaram a nossa Nação”

Durante o funeral, no interior da pequena capela, os fuzileiros alinham-se encostados à parede, cada um a segurar uma vela. Do outro lado, numa cadeira, senta-se a mãe de Sasha. Toda ela é dor. Em pé, está o pai, a tentar fazer-se de forte por fora para amparar a mulher — e a desfazer-se por dentro.

Ao centro, uma enorme bandeira da Ucrânia; um tripé com uma moldura com o rosto de Sasha (igual ao do pai), de t-shirt com a sua barba; e o caixão fechado com o corpo, coberto por flores vermelhas e amarelas.

Presta homenagem primeiro o seu comandante, Achilles, de forma emocionada e patriótica, enquanto acaricia as flores que cobrem o caixão:

“Quem aqui está deitado também é Kiev. O inimigo pisa e queima impiedosamente a nossa terra e destrói as nossas cidades. A Ucrânia, na verdade, ainda não foi verdadeiramente livre. De uma maneira ou de outra, estivemos sempre sob a alçada do ditador da Federação Russa”.

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Ouve-se uma explosão lá fora e alguns militares sobressaltam-se. Mas o comandante continua a discursar. Chama “desumano” a Putin e define o confronto com os russos como uma guerra “sagrada”, de libertação nacional: “Pelo futuro dos nossos filhos, pela dignidade das nossas mães, esposas e filhas”. Frisa que quem combate aceita entregar a sua vida em nome de uma “verdadeira independência”, como os antepassados fizeram antes deles, e apela a encarar o desafio sem medo:

“Neste caixão, poderia estar deitado qualquer um de vocês que combateu naquele dia. Eu ou qualquer um de vocês. Nós não nos escondemos. Nós estávamos nas trincheiras. E, no que diz respeito ao Sasha, será melhor se o sacrifí́cio da vida dele for colocado no altar desta independência sem ser em vão — se vencermos.”

O responsável pela funerária também faz um discurso sentido. Conta que o sol apareceu enquanto transportava o corpo, como se fosse despedir-se de Sasha. E dirige novas palavras duras ao inimigo que o matou: “Devido a esta agressão, a estas ratazanas, sim, são ratazanas que atacaram a nossa Nação, a vida dele terminou lá, por todos nós. Por todos nós aqui.”

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As últimas horas antes da morte em combate. E a promessa de queimar uma coluna russa

Na véspera da sua morte, a unidade de reconhecimento em que Sasha se inseria montou trincheiras na zona de Guta-Mezhigorskaya. O comandante levou-lhes comida e bebidas quentes para jantarem. Passaram a noite nas trincheiras e na manhã de terça-feira, dia 15, a posição do grupo começou a ser violentamente atacada pela artilharia do inimigo.

Onze dias depois de ter voltado a combater, Sasha foi atingido no coração e sofreu morte imediata. Deflagrou um incêndio na sequência dos bombardeamentos, os ucranianos tiveram de bater em retirada momentaneamente e não conseguiram levar logo o corpo do fuzileiro, que apenas seria resgatado mais tarde: encontraram-no cheio de queimaduras provocadas pelas chamas.

No fim desta batalha, o lado ucraniano acabou por conseguir libertar Guta-Mezhigorskaya, abater inimigos e ficar com algum do seu material. Mas também no fim desta batalha, este pelotão de fuzileiros perdeu um dos seus, pela primeira vez desde que começou esta guerra. Os pais de Sasha perderam o filho. E Masha perdeu o futuro marido.

O padre ortodoxo que conduz a cerimónia termina a pedir três vezes perdão aos presentes que Sasha possa ter magoado com alguma palavra, ação ou pensamento.

Um outro comandante de pelotão dá um passo em frente e dirige-se aos pais de Sasha, que estão do outro lado do caixão, a dois metros: “Gostaria de pedir desculpa em nome do pelotão, por não termos conseguido salvá-lo. Mas ele morreu pela dignidade e liberdade da Ucrânia. Vocês criaram um herói. Obrigado pelo vosso filho. E peço perdão por não o termos conseguido proteger.”

A mãe só tem força para murmurar: “Cuidem de vocês.”

Reportagem no funeral de um militar que morreu durante combates contra as tropas russas. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Kiev, Ucrânia, 20 de março de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Cumpre-se um último minuto de silêncio. Lá fora, ouvem-se os disparos para o ar da salva fúnebre.

O comandante Achilles, que tinha feito o discurso inicial, ainda quer dizer as últimas palavras, para vincar que Sasha recebeu a medalha atribuída aos soldados que morrem em combate, mas viveu como um herói. E dirige a sua ira contra o inimigo: “A melhor recompensa será a vingança que faremos em nome dele: a próxima coluna militar russa queimada pelos nossos será em homenagem a ele”.

A cerimónia na capela acaba com novos gritos de todos os fuzileiros em coro, às ordens do comandante:

— Glória à Nação!
— Morte aos inimigos! (coro)
— Glória à Ucrânia!
— Glória aos heróis! (coro)
— Vamos vingar-nos!

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