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Américo Aguiar no seu gabinete na sede da Fundação JMJ
Quatro dias depois de o Papa Francisco ter nomeado Américo Aguiar cardeal, o Observador passou um dia com o homem de quem se fala na Igreja portuguesa.
No gabinete, à mesa do restaurante onde almoça diariamente e ao volante do carro, o novo cardeal português recorda a vida política e as dificuldades da vocação.
Admite que organizar a JMJ é "esmagador", assume erros e, sem fugir às questões difíceis, responde aos críticos que lhe apontam a falta de dimensão intelectual.
O futuro é incerto (e poderá não passar por Lisboa). Mas a vida do cardeal Aguiar mudou radicalmente na manhã em que foi comprar 1.500 cápsulas de café.
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Américo Aguiar no seu gabinete na sede da Fundação JMJ

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Américo Aguiar no seu gabinete na sede da Fundação JMJ

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"Para alguns, sou um temível seguidor de Francisco. Assim seja." Um dia com Américo Aguiar, o novo cardeal português

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“Às vezes ainda acordo na Capela Sistina.” Américo Aguiar, o homem do momento na Igreja Católica em Portugal, ainda não está totalmente refeito da notícia que há duas semanas o apanhou desprevenido: a nomeação cardinalícia anunciada pelo Papa Francisco. Em setembro deverá receber o barrete vermelho e passará a integrar o Colégio Cardinalício e, durante os próximos trinta anos, poderá votar nos conclaves para eleger os futuros papas.

Apesar de o seu atual cargo ser relativamente discreto — é um mero bispo-auxiliar de Lisboa —, este eclesiástico de apenas 49 anos, que não se importa de ser descrito como o “cão-de-fila” do patriarca de Lisboa, é provavelmente o clérigo mais famoso do país: como coordenador da comissão de proteção de menores do Patriarcado de Lisboa, ganhou relevo mediático durante a crise dos abusos sexuais de menores, mas foi o papel de organizador da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o evento que na próxima semana traz a Portugal mais de um milhão de jovens para um encontro com o Papa Francisco, que o catapultou para as televisões e manchetes de jornais.

O desabafo onírico é feito por Américo Aguiar ao Observador à porta do seu gabinete na sede da Fundação JMJ, instalada na antiga Manutenção Militar, na zona oriental da cidade de Lisboa, quatro dias depois de o Papa Francisco ter anunciado a sua criação cardinalícia a partir da janela do apartamento pontifício, em Roma.

Apesar de ainda estar “sem chão” e com mais de mil mensagens por responder, Américo Aguiar aceitou ser acompanhado pelo Observador durante um dia inteiro de trabalho, a menos de três semanas do arranque da JMJ. Em conversas no gabinete, à mesa do restaurante onde almoça religiosamente todos os dias e ao volante do carro, o novo cardeal português abriu o livro da sua vida para falar sobre a infância e a juventude, a vocação ocultada do pai, a curta passagem pela política e as lutas interiores nos primeiros anos de seminário. Mas também sobre a vida sacerdotal no Porto, as obras de requalificação da Torre dos Clérigos (que lhe deram não só o estatuto de personalidade na cidade, mas também o traquejo necessário para lidar com políticos e empresários, agora bem visível) e o dia em que, numa bomba de gasolina, se encontrou pela primeira vez com Manuel Clemente, o homem de quem foi sempre o braço direito e a quem atribui a “culpa” de hoje ser bispo.

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Américo Aguiar também não foge às questões difíceis: assume que o seu futuro poderá “não se cruzar com a geografia de Lisboa”, reconhece as críticas e resistências que existem entre o clero lisboeta perante a possibilidade de se tornar no futuro cardeal-patriarca (sobretudo relacionadas com o facto de Américo Aguiar não ser um intelectual, como os outros três cardeais eleitores portugueses, mas um operacional), mas assume que é de “carne e osso” e que as duras críticas de que é alvo o entristecem. Diz apenas que nunca fez por receber qualquer cargo, que a nomeação cardinalícia resulta exclusivamente do discernimento do Papa e que, no que depender dele, “o legado do Papa Francisco tem mais 30 anos de vida”.

“A certa altura, nós quebramos, temos uma sensação de impotência”

Quando o Observador se encontra com Américo Aguiar, por volta das 10h00, o dia do bispo-auxiliar de Lisboa já leva algumas horas. Levanta-se habitualmente pelas 7h00. O pequeno-almoço e as primeiras orações do dia — a missa e a oração de laudes — são feitos em casa, na Casa Patriarcal, junto ao Seminário dos Olivais, onde vive com o cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, com o outro bispo auxiliar de Lisboa, Joaquim Mendes, e alguns outros clérigos do Patriarcado. No dia em que recebe o Observador, porém, há uma exceção: é quinta-feira, o dia da semana em que Américo Aguiar celebra a missa das 8h30 em Chelas, na casa das Missionárias da Caridade, a emblemática congregação fundada pela Madre Teresa de Calcutá que se dedica ao serviço dos pobres.

“Tenho uma predileção muito especial por estas irmãs”, conta o bispo, recordando que as conheceu num serviço pastoral no início da sua missão como auxiliar de Lisboa e que, desde então, assumiu o compromisso de celebrar semanalmente com elas. “À quinta-feira celebro a eucaristia para elas e para os utentes da obra delas”, que incluem pessoas idosas, doentes ou com deficiência, muito pobres, que não têm outro lugar onde viver. A celebração diária da eucaristia e a observância da liturgia das horas é uma obrigação dos clérigos, mas o bispo assume que “há dias de grande fidelidade e há dias de uma fidelidade ausente”. À medida que o dia da JMJ se aproxima — o Papa Francisco deverá aterrar em Lisboa na manhã do dia 2 de agosto —, a oração é “cada vez mais necessária”.

“A certa altura, nós quebramos, temos uma sensação de impotência, de incapacidade de corresponder ao desafio, e entregamos as coisas”, confessa Américo Aguiar, sentado num sofá do seu gabinete. O espaço é simples. À esquerda, uma secretária submersa em livros e papéis de toda a espécie. Na parede atrás do posto de trabalho, há um quadro da visitação de Nossa Senhora à sua prima Isabel — o episódio do evangelho que dá o mote à Jornada Mundial da Juventude. Numa pequena mesa de apoio, ao lado de um presépio e de uma série de imagens de santos, é possível descobrir as imagens de Huguinho, Zezinho e Luisinho, os célebres sobrinhos do Pato Donald — personagens de animação que foram cruciais para a vocação sacerdotal de Américo Aguiar (mas já lá iremos). Os sofás servem para receber os muitos convidados, que todos os dias passam pela sede da Fundação JMJ, e Américo Aguiar garante que toda a mobília é emprestada ou oferecida, como parte dos esforços de requalificação daquele antigo edifício militar abandonado que, depois da JMJ, deverá ser alocado pela Câmara de Lisboa a projetos de juventude.

É a partir deste gabinete que Américo Aguiar coordena os trabalhos de preparação da JMJ
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O Papa Francisco (que o nomeou cardeal) e Manuel Clemente (que influenciou decisivamente a carreira eclesiástica de Américo Aguiar)
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Durante a preparação da JMJ, Américo Aguiar reuniu-se várias vezes com o Papa Francisco e estabeleceu com ele uma relação de proximidade
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A sede da Fundação JMJ é um lugar agitado — muito mais agitado do que quando o Observador o visitou pela primeira vez, em dezembro de 2022. A explicação encontra-se num pequeno ecrã colocado ao lado direito da porta do gabinete de Américo Aguiar, situado exatamente a meio do corredor do piso um, em frente à escadaria que leva os visitantes do piso zero ao piso dois: faltam 19 dias e 8 horas para o arranque da JMJ. À medida que o evento se aproxima, a tensão aumenta. A três semanas do início, é impossível ignorar as polémicas em que a organização da JMJ se viu envolvida, com destaque para as controvérsias entre Governo e câmaras sobre quem paga o quê e para o custo milionário do altar-palco em que o Papa vai celebrar a vigília e a missa final. Nas muitas salas e gabinetes da sede da Fundação JMJ, o trabalho prossegue alheio a essas polémicas, com dezenas de profissionais e voluntários a ultimar os preparativos das celebrações religiosas, da programação cultural, dos desafios logísticos do transporte e alojamento dos peregrinos e do acolhimento de cerca de 4 mil profissionais da comunicação social de todo o mundo.

Jornada Mundial da Juventude. Dentro da máquina que está a preparar um dos maiores eventos de sempre em Portugal

Mas, no gabinete, Américo Aguiar assume sem pruridos ao Observador aquela que diz ter sido uma das suas maiores falhas: “Não ter tido a capacidade de transmitir a Portugal, aos portugueses, e de um modo especial, eventualmente, aos media, a grandeza do desafio e do evento. É uma coisa nova, que nós só estamos preparados para fazer depois de o ter feito.”

Dentro da Igreja, a JMJ é conhecida há muitos anos. Mas tem a noção de que a generalidade da população portuguesa não sabia bem o que era a Jornada? Achava que era tipo Web Summit?
Tenho. Quer a população, quer muitas das pessoas das nossas comunidades. A Jornada Mundial da Juventude é como falarmos de Jogos Olímpicos, de Mundial de Futebol… As pessoas têm, eventualmente, uma fotografia na sua memória, mas não vai muito para além disso.

Ou seja, só os jovens que já tenham participado é que têm noção…
Sim, esses têm noção. Aliás, têm noção das dificuldades, dos constrangimentos e do fair-play. A coisa que mais me anima e descansa é que nós sabemos que os jovens que participam na Jornada, os peregrinos da Jornada, não são muito exigentes e vêm de coração aberto para o que Deus quiser.

São os jornalistas que são os mais chatos? Com os detalhes dos palcos e dos custos?
Não. Vamos lá ver uma coisa: acho muito bem — já começo a ser veterano —, é muito importante o escrutínio. Em tudo. Acho que é muito importante na nossa vida, na nossa família, nos nossos amigos, nas nossas ocupações, nos grandes projetos. Acho que todos ganhamos com o escrutínio. Às vezes, magoa… É desconfortável quando há um escrutínio, que faço um juízo que pode ser negativo, que não é construtivo. Isso cria entropias, cria dificuldades suplementares, que não ajudam. Mesmo a partilha de estados de alma… Nós temos tentado, nestes quatro anos, permanentemente, criar as melhores condições, o melhor ambiente, porque o desafio esmaga-nos. Literalmente, esmaga-nos.

Durante todo o dia, o telemóvel de Américo Aguiar não pára, com mensagens e telefonemas a cair em catadupa. O bispo é o ponto de contacto entre a organização da Jornada Mundial da Juventude e a sociedade civil — ou seja, com políticos, empresários e autoridades de todo o tipo. “Outro dizia que cada um vale os contactos que tem. Eu agora valho muito”, comenta, acrescentando que, por conta da JMJ, tem no telemóvel os números de “quase todo o protocolo de Estado”.

A conversa com o Observador vai sendo ocasionalmente interrompida pelos telefonemas, mensagens e reuniões inadiáveis. Diariamente, a manhã do bispo inclui pelo menos duas reuniões: uma com os diretores de todos os departamentos da estrutura que está a organizar a JMJ e outra com a comissão executiva, para fazer o ponto de situação. Mas uma das funções principais de Américo Aguiar nesta mega-organização é a de reunir com dirigentes políticos, empresários, representantes de autoridades públicas e religiosas, diplomatas e todo o tipo de personalidades que diariamente passam pela sede da JMJ — seja para reuniões de trabalho, seja para momentos de aparição mediática.

Na agenda de Américo Aguiar para o dia em que recebeu o Observador estão dois desses momentos: às 10h30, a visita do secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo; e, às 15h00, a visita da Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral. Américo Aguiar desce as escadas apressadamente, deixando a meio uma das reuniões matinais, quando é informado de que no hall de entrada da sede da JMJ já está a comitiva comunista. Por ali também já estão vários jornalistas, sobretudo das televisões, que têm aproveitado as visitas de diferentes figuras à sede da JMJ para marcar a agenda mediática quotidiana — nas últimas semanas, passaram por aquele local figuras como André Ventura, Ana Rita Cavaco, Luís Montenegro, Nuno Melo, o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea ou o presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil.

“Tenho medo de que nós não consigamos cativar os jovens para a causa pública”

Estas visitas protocolares já estão ritualizadas. Américo Aguiar recebe o convidado na entrada do edifício e envia uma mensagem para o grupo de WhatsApp “Habitar a Sede”, que congrega as muitas dezenas de pessoas que trabalham no edifício (é também ali que se partilham informações, como a avaria que naquele dia deixou o edifício sem água, e que o bispo envia um vídeo diário com mensagens a todos os que estão a pôr de pé a JMJ), para convocar todos os que puderem a juntar-se no hall de entrada para as boas-vindas. Em poucos minutos, cerca de meia centena de jovens já ali estão reunidos, na escadaria, para saudar Paulo Raimundo.

É o bispo que, perante a comitiva comunista, os trabalhadores da Fundação JMJ e os jornalistas, dá início ao momento, agradecendo ao secretário-geral do PCP por aceitar o convite, à semelhança dos outros partidos, e destacando a importância de aproximar a juventude “da política e da preocupação pela pólis”. Quanto às opções partidárias, são com cada um. “Devemos ouvir todos e depois tomar decisões”, diz o bispo, dirigindo-se especialmente à juventude católica. Paulo Raimundo, por seu turno, agradece o convite e deseja que se cumpram os objetivos da JMJ, tanto os de âmbito religioso como os relacionados com a importância do evento para o país. No final, os dois descerram uma pequena placa comemorativa da visita do responsável comunista à sede da JMJ. A cerimónia fica despachada em poucos minutos, para logo a seguir Américo Aguiar acompanhar Paulo Raimundo escada acima até ao seu gabinete.

Dentro do gabinete, o bispo convida Paulo Raimundo a sentar-se à secretária para assinar o livro de visitas, antes do encontro privado. Em cima da mesa, ao lado da papelada, há dois ou três solidéus violeta — a pequena cobertura de cabeça usada pelos bispos —, que Américo Aguiar em breve terá de substituir pelos vermelhos, tradicionais dos cardeais.

Na pequena mesa de centro junto aos sofás onde Américo Aguiar recebe o secretário-geral comunista, há um exemplar do livro Deus é Jovem, do Papa Francisco em entrevista ao jornalista italiano Thomas Leoncini. O livro está profusamente sublinhado, especialmente nas partes em que o Papa reflete sobre o drama dos jovens condenados a penas de prisão. “É fundamental que o detido tenha a possibilidade de se reinserir na sociedade”, sustenta o Papa a certo passo do livro. “Sentir-se inútil em definitivo é um mal tremendo, que pode conduzir aos piores gestos”, diz ainda, para acrescentar: “Se se condena alguém a prisão perpétua, não há esperança, e isto é profundamente errado: deve sempre haver esperança na nossa vida, e por conseguinte em cada punição.” O bispo explica que foi neste livro que encontrou inspiração e argumentos para os recentes debates em torno da proposta do Governo para uma amnistia destinada a jovens até aos 30 anos.

Foi no livro "Deus é Jovem" que Américo Aguiar encontrou argumentos para o debate em torno da amnistia aos jovens condenados a propósito da JMJ

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É naqueles sofás que Américo Aguiar convida Paulo Raimundo e os outros elementos da comitiva do PCP a sentarem-se para uma conversa à porta fechada. Possivelmente já inspirado pela recente nomeação cardinalícia, o bispo dirige-se à porta do gabinete para a fechar com uma exclamação latina: “Como é que se diz no conclave? Extra omnes!” No final da reunião com Paulo Raimundo, Américo Aguiar senta-se com o Observador no gabinete para falar sobre as suas ideias sobre a política e os políticos.

Recebe aqui imensas visitas. Por exemplo, esta manhã recebeu aqui Paulo Raimundo, secretário-geral do PCP. Tem recebido vários partidos.
Sim, sim. O périplo está a ser iniciado. Dirigimos o convite a todos os partidos.

Todos, todos? Ou todos os que têm representação no Parlamento?
Nós convidámos todos os que têm representação no Parlamento e, por uma questão de tradição, também o CDS. Aliás, o CDS foi o primeiro partido a visitar-nos. Tenho muita consciência da importância da representação política no regime em que nós vivemos. Acho que é muito importante a representação partidária, o trabalho que fazem nas juntas, nas câmaras, no Parlamento, nos governos regionais. Porque muito daquilo que está a acontecer de preparação da Jornada passa pela decisão destes homens e destas mulheres. Portanto, nós temos de agradecer…

Também muito ao nível autárquico.
Muitíssimo. Seja aqui em Lisboa, com a preparação da Jornada, seja no país todo, com os dias nas dioceses. É o melhor que levo da JMJ de Lisboa: percorri todo o país. Norte, sul, interior, litoral, continente, ilhas — e agradeço muito às Forças Armadas a possibilidade de termos ido ao Corvo, às Flores e Santa Maria, porque tinham ficado de fora, porque os voos comerciais não permitiriam. Agradecemos muito. O Portugal real é muito melhor do que o Portugal mediático. Nós somos magníficos. O nosso povo é magnífico. O acolhimento aos símbolos, a reação das pessoas, a adesão das pessoas, dos jovens.

O próprio Américo já teve uma passagem pela política quando era jovem. Quer recordar?
Quero, quero. Aliás, tenho muita pena que, de vez em quando, o currículo vire cadastro. Depende dos tempos e depende das perspetivas.

Nunca se envergonhou disso, na verdade.
Absolutamente. Pelo contrário. Nós estamos com 50 anos de democracia. Tenho pena, tenho medo e tenho receio de que não consigamos cativar os jovens para a causa pública, para a pólis. A pólis é fundamental. E a política tem de ser nobre. Agora, a partidária é outra secção. Não posso dizer que não me interesso por política. Isso é um disparate. Se um cidadão diz que não se interessa pela política, então está sujeito a viver mediante as decisões dos outros. Se está confortável, ok. Eu não estaria confortável. Portanto, é muito importante que todos os cidadãos sintam que têm uma parte de corresponsabilidade por aquilo que é o destino da sua freguesia, do seu município, do seu país e dos seus concidadãos. É fundamental que os cidadãos sejam educados para a nobreza da política, da intervenção política. Acho que é muito importante que nós, todos os dias, tenhamos à nossa frente a possibilidade de um projeto ou de respostas. Eu não sou nada contra as redes sociais e o mundo digital. Pelo contrário. Agora, nós temos de nos educar todos para o uso positivo, correto e saudável desse mundo. Temo que, cada vez mais, os jovens se estejam facilmente a encaixar em guetos onde se sentem confortáveis. É o grupo dos da sua cor, o grupo dos que gostam de sushi, o grupo dos que são assim e o grupo dos que são assado. E uma certa violência e agressividade a quem não é desse mesmo grupo.

Isso, para usar palavras do Papa, é um fracasso da política?
Talvez seja. A Igreja portuguesa decidiu, e acho que muito bem, que a solução não é a existência de partidos católicos, mas a pertença e a participação dos católicos nos partidos. Acho isto muito saudável para o nosso regime, para a nossa democracia e para a Igreja, para todos os intervenientes. Agora, olho para trás e vejo relatos, história e testemunho, da ala católica de não sei de quê; hoje em dia, não sei se é por medo, se é por vergonha ou por inexistência, que nós não temos este tipo, visível, de alas. Seja católica, seja outra. Olhamos para o Parlamento, olhamos para o Executivo. Depois, assusta-me muito também o contrário. Não sei se foi o impeachment da Dilma ou se foi o impeachment do outro Presidente, em que houve uma votação, horas dentro, dos deputados, com os pronunciamentos. A certa altura, começámos a ver o elenco de vários deputados e intervenientes que eram representantes de religiões.

Pastores…
E era uma coisa… Nós estamos fora, com todo o respeito pelo Brasil, nossos irmãos, e pelo regime. Mas é qualquer coisa que não encaixa, que soa estranho. Acho muito bem cada coisa no seu sítio. Mas defendo e, no que depende de mim, incentivo, ajudo, empurro, que as pessoas, quando vêm falar, quando foram convidadas para uma câmara, para uma junta, para um projeto, incentivo sempre, tento ajudar. Porque acho que isso é que faz a diferença.

Conte lá a história de como passou pela política.
Então, no século passado, no tempo em que os animais falavam, tinha um amigo que era da JSD, lá na minha terra, Matosinhos. Eu sou de Leça do Balio. Nessa altura, estamos a falar de 1990, do tempo de Cavaco Silva. Acompanhei-o um bocadinho na JSD.

A conversa é interrompida por um telefonema urgente que chama Américo Aguiar para uma reunião inadiável. Já é quase meio-dia. No rés-do-chão da sede da Fundação JMJ há uma grande sala onde está instalado um refeitório — e que, em dias excecionais, é usada como sala de conferências de imprensa. Foi naquela sala que, em janeiro, Américo Aguiar assumiu a “mágoa” que sentiu quando descobriu que o altar-palco construído no Parque Tejo-Trancão para acolher as celebrações finais da JMJ custaria mais de quatro milhões de euros. Nesta quinta-feira, o ambiente naquela sala é muito menos tenso: alguns voluntários já aquecem o almoço que trouxeram em tupperwares, outros concentram-se em torno da máquina de café.

Cerca de uma hora depois da interrupção, o recém-nomeado cardeal Aguiar sai novamente do gabinete: “Vamos almoçar?”

Américo Aguiar no momento em que recebeu a comitiva do PCP no seu gabinete (Paulo Raimundo à secretária a escrever no livro de visitas)

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A experiência autárquica entre o PS e o PSD que foi “muito útil até hoje”

Na Leitaria Tejo, no bairro lisboeta de Xabregas, a escassos 500 metros da sede da Fundação JMJ, Américo Aguiar é mais do que um rosto famoso — é uma presença familiar. É ali que almoça religiosamente todos os dias desde que a organização da JMJ se instalou naquela zona da capital. Funcionários e clientes habituais do pequeno restaurante de diárias conhecem bem o “senhor bispo” e estão a par das novidades. “Vai ser o próximo patriarca de Lisboa?”, pergunta-lhe uma cliente. Américo Aguiar procura esquivar-se, dizendo que só Deus sabe. “Ou vai para Roma?”, insiste o Observador. “Roma não, que é longe. Queremo-lo aqui mais perto”, replica a cliente. A conversa dissipa-se quando um dos empregados vem à porta dizer que a mesa está pronta. Um dos pratos do dia é arroz de pato e é essa a escolha tanto do Observador como do futuro cardeal, que também pede a sopa do dia.

À mesa, Américo Aguiar faz uma viagem no tempo para contar ao Observador como chegou ao lugar onde está hoje. Mas, antes, acaba a história que ficou por contar: como, com 19 anos, passou, não por uma, mas por duas câmaras municipais.

Américo Aguiar é cliente diário da Leitaria Tejo, em Xabregas
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O novo cardeal escolhe o prato do dia — arroz de pato
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Ao almoço Américo Aguiar conta como a sua vocação sacerdotal nasceu dos escuteiros — a que aderiu pela paixão aos desenhos animados do Pato Donald
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O futuro cardeal fala também sobre a sua curta passagem pela política, no início da década de 1990
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Tal como a vocação sacerdotal, também a vocação política nasceu nos escuteiros, o movimento a que o jovem Américo Aguiar aderiu na adolescência. Com um grupo de colegas escuteiros, no início da década de 1990, Américo criou uma associação de defesa do ambiente para lutar contra a poluição do rio Leça — um curso de água que chegou a ser apontado como um dos mais poluídos de toda a Europa. Foi nessa altura que o hoje cardeal Aguiar começou “a interagir com os presidentes de câmara: o Narciso Miranda em Matosinhos, o Vieira de Carvalho na Maia, e depois o de Santo Tirso, Joaquim Couto, e o de Valongo”.

Foi na sequência da criação desta associação que Américo Aguiar, então um jovem de 18 anos, recebeu o convite de Vieira de Carvalho para trabalhar na área ambiental na Câmara da Maia. “Fui o primeiro eco-conselheiro do país”, lembra o recém nomeado cardeal. “A Câmara da Maia teve o primeiro técnico a trabalhar exclusivamente na questão de educação ambiental, o que era divertido.” As suas funções na autarquia social-democrata passavam, essencialmente, por deslocações às escolas do município para sensibilizar os alunos para as questões ambientais.

Ao mesmo tempo que trabalhava como técnico na câmara da Maia, Américo Aguiar lançou-se numa curta experiência como eleito, candidatando-se nas autárquicas de 1993 à Assembleia de Freguesia de Leça do Balio e à Assembleia Municipal de Matosinhos pelas listas do PS, encabeçadas por Narciso Miranda. O bispo enquadra a sua integração numa lista socialista com o contexto do tempo: “Estamos a falar de um território muito PS. Aliás, penso que nessa altura todas as freguesias — não sei se estou errado — de Matosinhos eram PS.”

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre quem é Américo Aguiar. 

Quem é o futuro cardeal que organizou a JMJ?

A passagem pela política foi curta e apenas em tenra idade, já que dois anos depois da eleição o jovem Américo Aguiar entraria para o seminário. Mas o futuro cardeal garante que a experiência foi “muito útil até hoje”, refletindo-se nas funções que viria a desempenhar na Igreja. “Principalmente por ser nos bastidores da política ao nível de base. Gostei muito de ter conhecido — ainda há bocadinho o disse ao secretário-geral do Partido Comunista — a malta da CDU. É uma malta muito interessante. Em muitos executivos municipais, eles ficavam com as águas, com os lixos, com o ambiente, com a Proteção Civil. É quase sempre o pelouro com que eles ficam. Conheci pessoal espetacular. E também aquela coisa que é bonita na política, que é a negociação, o diálogo, a partilha das ideias”, conta Américo Aguiar.

Durante aquele início de vida adulta, Américo Aguiar dividia o seu tempo entre o trabalho técnico na Câmara da Maia (PSD) e o trabalho político na Assembleia Municipal de Matosinhos (PS) — o que nunca lhe fez confusão. “Sei que às pessoas pode causar estranheza. Nunca me causou problema aquela conversa do Porto e do Benfica, do PS e do PSD, do branco e do preto… Nunca foi para mim problema nenhum. Para as pessoas, às vezes, é um obstáculo, uma incongruência.”

Chegou a ser militante do PS? Para ser candidato tinha de ser?
Não sei. Já havia os independentes? Acho que sim. Lembro-me de participar em coisas da JS com o Tó Zé Seguro, o Sérgio Sousa Pinto. Acho que não apanhei o Sócrates. Mas lembro-me disso. Ah, e depois houve uma conversa do Vieira de Carvalho e do Narciso Miranda para mim. “Tu não levas nada daqui da câmara para lá!”, dizia o Vieira de Carvalho. Depois dizia-me o Narciso: “Não quero que tragas ideias de lá para cá!”

Andava ali em duas câmaras…
Mas eram senhores. Era muito interessante. Era outro tempo. Agora quando falo com os autarcas…

Perdeu-se isso?
Acho que sim. Perdeu-se. As amarras artificiais que estamos a criar por causa das desconfianças, por causa das transparências, estão a tolher, a eliminar uma certa… Os presidentes de câmara daqui a pouco têm de ser todos iguais. A grelha legal, a amarra administrativa, os tribunais de contas, a mediatização. Por exemplo, hoje em dia, um presidente de câmara tomar uma decisão que seja contrária a um parecer de um técnico… Ui.

Já não há espaço para a política, é isso?
Às vezes, quando ouço pronunciamentos do Tribunal de Contas… Acho que o Tribunal de Contas deve, obrigatoriamente, tratar das contas. Mas não deve emitir um parecer político sobre decisões. Lembro-me de que uma vez, no Porto — o matadouro municipal, em que o Rui Moreira encontrou um esquema das obras e não sei quê —, o tribunal chumba e põe-se a achar da bondade política [da medida]. Isso acho que fere. Há muitas entidades que, a certa altura, entram naquilo que é o essencial do exercício de um eleito. Depois, ficam todos iguais. Olhas para um executivo e quem é que manda? É a lei, são os técnicos, são as entidades de supervisão? Quem é que efetivamente manda?

Se mandarem os técnicos, a democracia não vale de nada?
Quando se apertam as incompatibilidades, quando não se é capaz de melhorar o estatuto económico de remuneração de quem exerce cargos públicos, daqui a pouco sobram funcionários de partidos. De todas estas amarras, a consequência é que nós só vamos ter disponíveis funcionários de partidos. Quando olhamos para o Parlamento, com todo o respeito por todos os deputados, quando dizemos que os advogados não podem não sei quê, que os médicos não podem não sei quê, as incompatibilidades todas, a certa altura perguntamos quem é que pode. Um número reduzido.

Que se tornam políticos de carreira.
Isso. E isso é melhor ou pior? Lembro-me, não sei se foi o Cavaco, quando era Presidente da República, que a certa altura fez uma comunicação ao Parlamento a reclamar da baixa da qualidade da produção legislativa. Uma coisa é eu, politicamente, ter uma ideia. Outra coisa é materializá-la legalmente, num projeto de lei. Acho que era muito importante legalizar o lóbi.

Como acontece na União Europeia.
Eu preferia que tivéssemos deputados com todas as potencialidades e que nós soubéssemos.

As reuniões, os telefonemas…
Tudo limpinho. Acho que é de maior exigência. Está lá um deputado que trabalha para as petrolíferas, etc. Estávamos em cima deles. Agora, são todos anjos? Isso não é verdade. Isto é um problema que, em 50 anos de democracia, é preciso pensar. Quando o Rui Rio vinha com aquela conversa do regime e não sei que mais, o que digo é que 50 anos depois é preciso sentarmo-nos e pensarmos se a organização do Estado tem de ser assim. Eu gostava, cada vez mais, de ter um Senado.

A sobremesa chega sem que seja preciso pedi-la: uma talhada de melão. Na Leitaria Tejo, os hábitos de Américo Aguiar já são conhecidos e o bispo sorri quando entra no restaurante um conjunto de voluntários sul-coreanos chegados há pouco tempo ao país. “Já sabem vir aqui. Estão a aprender bem”, comenta Américo Aguiar. Nas últimas semanas, a imprensa católica espanhola começou a fazer circular a informação de que a próxima JMJ será organizada em Seul, na Coreia do Sul. Mas nada está confirmado nem é certo — e o bispo português também não adianta qualquer informação sobre o assunto. Muitos outros trabalhadores e voluntários da sede da JMJ também aproveitam a Leitaria Tejo para almoçar — alguns ainda esperam mesa quando Américo Aguiar sai do restaurante, já perto das 14h00.

Os sobrinhos do Pato Donald e uma vocação adiada

Até às 15h00, hora a que deve chegar à sede da Fundação JMJ a Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, para mais uma visita protocolar, ainda há tempo para falarmos da vocação sacerdotal do novo cardeal português — a tal vocação que, de certa forma, nasceu por causa dos desenhos animados da RTP e, especialmente, dos sobrinhos do Pato Donald, que fizeram o pequeno Américo desistir da catequese.

Américo Manuel Alves Aguiar nasceu em Leça do Balio em dezembro de 1973, numa família que não era especialmente devota. Era uma família, como tantas em Portugal, “católica de batizados, casamentos e funerais”. No final da década de 1970, Américo entrou para a catequese “no momento em que todos os miúdos vão”, como todos os amigos. Mas a certa altura ficou com o “coração partido” entre a catequese e os programas de banda desenhada apresentados por Vasco Granja na RTP. “A televisão pública, que era a única, tinha de manhã um programa de banda desenhada. Banda desenhada do leste, uma coisa pecaminosa”, ri-se o bispo. A paixão pelos desenhos animados levou-o a desistir da catequese por volta dos 12 anos.

Ainda hoje não consegue explicar bem o que aconteceu para sair da catequese — especula que talvez não se portasse especialmente bem e que a catequista respondesse na mesma moeda —, mas não deixou os amigos e até continuou a ir à missa. Mas a família, sem prática religiosa habitual, não contestou a decisão: se não queria ir, não iria. Durante a infância, tornou-se um fã incondicional dos desenhos animados da Disney. “No meu gabinete, estão lá os três sobrinhos do Pato Donald. Sempre fui um apaixonado pelo Tio Patinhas e, de modo especial, pelos sobrinhos do Pato Donald”, conta.

Na infância, Américo Aguiar viu-se dividido entre a catequese e os desenhos animados ao domingo de manhã

DR

Ora, Huguinho, Zezinho e Luisinho eram escuteiros. E foi esse detalhe que o reaproximou — ainda que à força — da Igreja. “Quando ouvi, um dia qualquer, o padre dizer que iam abrir um agrupamento de escuteiros na paróquia, apresentei-me logo a capítulo para me inscrever”, recorda o bispo. Quando se tentou inscrever, perguntaram-lhe em que ano de catequese andava. “Ó diacho, eu não ando na catequese.” “Ah, mas tem de andar.” “Ah, mas eu não quero.” “Mas tem de ser.” E o que tem de ser tem muita força: para entrar nos escuteiros, lá voltou para a catequese. “Quando fiz a promessa de explorador, lenço verde, fiz a promessa e a primeira comunhão.”

Foi José Teixeira, o chefe do seu agrupamento de escuteiros, quem lançou a primeira semente da possível vocação sacerdotal, quando falou ao jovem Américo da possibilidade de ir ao seminário do Porto participar nos encontros mensais do pré-seminário — uma iniciativa de discernimento vocacional que propunha aos jovens em idade escolar passarem um fim-de-semana por mês no seminário a descobrir aquele mundo. A primeira reação de Américo não foi positiva. “Ó chefe, o que é que está a dizer?”, perguntou-lhe. Ainda assim, deu uma oportunidade e participou em dois encontros, já com perto dos 18 anos — e sempre sem que o pai soubesse.

“O meu pai não achava piada nenhuma a isto. Eu nunca falei com ele sobre isto e acho que a minha mãe, como as nossas mães fazem, naqueles fins de semana em que eu não estava, aldrabava qualquer coisa. O meu pai nunca ficou a saber de eu ter ido ao seminário”, recorda o bispo. “Quando fui para os escuteiros, ele reagiu muito mal e eu só percebi depois: ele achava que era a Mocidade Portuguesa. ‘Não vás para isso!’ E eu nem sabia do que é que ele estava a falar.”

Depois do pré-seminário, deu o passo seguinte, o de entrar efetivamente para o seminário, para os estudos de filosofia e teologia, com vista a ser padre. Mas essa primeira experiência não durou mais do que um par de meses. “Há um elemento que pesou, tenho de ir ao psicanalista”, desabafa hoje. “O meu pai faleceu e eu senti… Sou o mais novo, com a minha mãe e tenho uma irmã deficiente, e senti aquela coisa da responsabilidade da família. Não sei se foi isso ou não, o que é certo é que saí. E foi então neste contexto que fui trabalhar para a Câmara da Maia.”

Américo Aguiar chegou à vocação sacerdotal devido à sua ligação ao escutismo católico — e fez a primeira comunhão no dia da promessa de explorador, com 10 anos

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Em 1993, prestes a completar 20 anos, Américo Aguiar tinha deixado para trás a experiência de seminário e a ideia da vocação sacerdotal. A luta ambiental levara-o a um apetecível emprego na função pública e a uma eleição autárquica em tenra idade. Mas ainda subsistia no jovem Américo uma sensação de vazio: algo faltava.

Aos 19 anos andava pela política, mas também à procura da vocação.
E então chego ao verão de 1995…

Mas tinha pensado em ser padre? Teve namoradas?
Tive uma, mas não vou dizer nome nem nada, coitadinha.

Para não irmos atrás dela?
Ela nunca soube. Era platónico.

Ah, nunca lhe disse? Então não sei se era namorada…
Era para mim. Dava um filme. Bem, e no verão de 1995, a certa altura… Quando me perguntam pelo chamamento, acima de tudo, o que me pergunto muitas vezes é o que é que me levou, naquele dia — estava a trabalhar na Câmara da Maia, acho que era julho —, a ir a Ermesinde falar com o reitor do seminário. Muitas vezes, penso que não me sentia feliz, realizado, apesar de parecer ter tudo aquilo que um jovem com aquela idade podia querer. Eu tinha 21, ia fazer 22, era funcionário público, que naquela altura era qualquer coisa apetecível, era o eco-conselheiro, fazia o que queria na área ambiental, trabalhava na área da educação ambiental, andava a percorrer o município da Maia, nas escolas: aquilo que eu gosto de fazer, estar com as pessoas. Tinha autonomia financeira. Mas faltava-me alguma coisa. Não sentia a pulsão de uma relação, mas faltava qualquer coisa. O meu chamamento, quando me perguntam, foi naquele dia, naquela hora, aquele desvio automobilístico que me levou ao seminário falar com o reitor.

Estava a conduzir e decidiu?
Não me lembro. Não me lembro se foi premeditado. O que é que foi muito importante? Depois destas conversas, tive duas ou três conversas muito importantes. Uma com o Narciso Miranda. Imagina um miúdo: “Presidente, estou a pensar ir para o seminário.”E o gajo: “Vai! Todo o apoio!” Ele podia-me ter aliciado, “Pensa bem”, mas não. Chego à Câmara da Maia, ao Vieira de Carvalho — eu era trabalhador lá. “Ó presidente, estou a pensar nisto.” E ele: “Opá, que feliz notícia.” Ele era católico praticante. “Que boa notícia que tu me dás, magnífico. Olha, vais. Não dizes nada a ninguém, vais, manténs o vínculo, porque pode correr mal.” Isso deve ser crime! “Todo o meu apoio.” E depois alguns amigos na Câmara da Maia, com quem partilhei muito isto, a alegria das pessoas. Muito do que me animou foi a alegria e a reação das pessoas. Os meus amigos de infância: “Estás louco?” Em casa, sempre senti a liberdade. A minha família não é católica praticante. É católica de batizados, casamentos e funerais.

Como aliás uma parte muito significativa da população.
E sempre tive toda a liberdade. Quero ir para a catequese. “Vai.” Não quero ir para a catequese. “Não vás.” Quero ir para o seminário. “Vai.” Não quero ir. “Não vás.” Nunca senti pressão, nem para que sim, nem para que não. E acho que também me deu uma liberdade maior. Depois, cheguei a setembro e lá fui eu. Foi violento e penso muito nisso, até quando acolhemos, hoje em dia, pessoas mais adultas nos seminários. Eu cheguei ao seminário…

E era mais velho que os seus colegas.
Mais velho que os meus colegas e com um estatuto que achava que era diferenciador. Chego a setembro e nem carro, nem ordenado, nem chave de casa, nem autonomia.

É um passo atrás?
Não sei se foi atrás ou se foi à frente. Foi doloroso. É tudo novo. Eu sou o mais novo, o meu pai tinha falecido já há dois, três anos, e a minha família, não digo que era pobre, mas era de remediados. O meu pai faleceu, a minha mãe viúva, e eu, o mais novo, deixar de trabalhar. Essa é uma das razões pelas quais eu saí na altura: uma consciência pesada de estar a falhar. Aí, foi muito importante o meu pároco, que desde o início disse: “Tu não te preocupes que nós vamos-te ajudar.” Ajudaram no seminário, no pagamento, que não tinha sido possível — nem a minha família podia nem eu achava que podia pôr esse encargo na família. A minha paróquia e o meu pároco foram espetaculares. Outra coisa: eu bebia às vezes em média 20 cafés por dia. Era aquela conversa de vir alguém e “vai um cafezinho?”. No seminário, nas primeiras semanas, elege-se a equipa do bar, a equipa da biblioteca… Naquelas primeiras semanas, naqueles primeiros 15 dias, não havia café. Foi uma dor de cabeça que parecia um toxicodependente.

Passou logo a viver no seminário, não houve um período de transição. E foi logo para os estudos teológicos? Não fez o propedêutico?
Para o primeiro ano. Tive grande dificuldade; eu sou de ciências. As filosofias e as malditas línguas… Foi muito violento. O primeiro ano foi em Ermesinde. Em 1995, o seminário do Porto não tinha espaço para o primeiro ano. Estava tão cheio que o primeiro ano ficou em Ermesinde. Nós éramos, no primeiro ano, 20 e tal. Agora, o seminário todo são 20 e tal. Para se ver a escala. Na ida para a Sé, uma noite qualquer, os meus colegas da Câmara da Maia convidaram-me para o aniversário de alguém, e eu vou pedir a chave ao prefeito: “Olhe, eu logo vou jantar, e queria pedir a chave para ir ao jantar.” “Vais a um jantar? Quem é que autorizou?” “Quem é que autorizou? Então, convidaram-me e eu disse que ia.” “Ah, isto não é assim. Tens de pedir, dizes-me e eu vou avaliar. E eu depois digo-te que sim ou que não.” Comecei com uma conversa parva, “o senhor sabe quem eu sou?”, e fui para o quarto chorar. “Vou-me embora” e não sei quê. E o que é que me dá na cabeça? Vou fazer queixa ao reitor, António Taipa, na altura o Dr. Taipa. Vou falar com ele a chorar: “Ó senhor reitor…” Eu acho que este foi um momento fundamental. Diz-me ele assim: “Olha lá, calma. Se tu quiseres ir, vais. Se tu achares que não deves ir, não vais. Mas quem decide és tu. Uma coisa tens de aprender: podes fazer tudo aqui. Mas tens de concluir que há coisas que não deves.” E eu vou logo para o quarto, encho o peito de ar e vou bater à porta do prefeito. Até hoje, acho que ia dizer “eu vou”. Ele estava sentado na secretária. “Entre. O que é que queres?” “Vinha-lhe dizer que não vou. Eu decidi que não vou. Mas sou eu que decido.” Ele sorriu, eu bati com a porta e fui para o quarto chorar.

Porquê?
Acho que foi a decisão maior. O reitor tinha quilómetros e anos daquilo e acho que me ensinou uma coisa muito importante: de facto, nós podemos fazer tudo, mas nem tudo é conveniente, e a decisão é minha. Não é aquele gajo que diz que eu vou ou que não vou. Depois, a maior questão: eu sempre fui muito sensível à questão financeira, monetária e à perda de autonomia.

Ao longo do seminário, à medida que avançou nos anos, isso foi mudando?
Os nossos gastos não são precisos, a certa altura. A gente come, bebe e dorme no seminário. Tive muita dificuldade nesse primeiro ano, nas filosofias. Lembro-me de um teste em que o professor me diz assim: “Olha lá, isto está bem, mas não chega. Não podes escrever um teste destes com uma folha só. Tens de gastar muitas folhas.” “Mas não está bem? Eu sou de ciências! Dois e dois são quatro!” E ele: “Pois é, mas aqui não. Aqui, dois e dois podem ser cinco, desde que tu saibas argumentar.”

Américo Aguiar foi chefe de gabinete de três bispos do Porto, incluindo Manuel Clemente, antes de ser escolhido para bispo auxiliar de Lisboa

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A lição aprendida com a requalificação da Torre dos Clérigos

Américo Aguiar foi ordenado padre no dia 8 de julho de 2001 pelo então bispo do Porto, Armindo Lopes Coelho. No seminário tinham-lhe posto a alcunha de “cardeal”, por partilhar o nome com Américo Santos Silva (1830-1899), o último bispo do Porto a receber o título de cardeal, mas o episcopado e o cardinalato não estavam propriamente nos planos do jovem padre Américo, assumidamente mais operacional do que intelectual.

O primeiro cargo que recebeu após a ordenação foi o de pároco em Azevedo de Campanhã, uma pequena paróquia que, apesar de estar ainda dentro do Porto, era já uma freguesia rural. Esteve ali entre setembro de 2001 e o verão de 2002. Quando foi enviado para a paróquia pelo bispo do Porto, já intuía que seria uma passagem curta: Armindo Lopes Coelho já lhe tinha dito que tinha “outros planos” para ele, mas que naquele momento era necessário que assumisse aquele lugar, que tinha ficado vago.

No verão de 2002, o bispo do Porto chamou o padre Américo Aguiar para o Paço Episcopal, para assumir a chefia do gabinete de informação e comunicação da diocese — cargo que manteria até 2015. Em 2004, recebeu ainda mais responsabilidade, quando se tornou vigário-geral da diocese e chefe de gabinete do bispo. Américo Aguiar viria a manter estas funções durante vários anos, atravessando os mandatos de sucessivos bispos do Porto, incluindo Armindo Lopes Coelho, Manuel Clemente e António Francisco dos Santos.

Foi naquelas funções na cúria diocesana do Porto que Américo Aguiar conheceu Manuel Clemente, o homem que mais diretamente influenciaria o seu destino eclesiástico. Clemente, que desde 1999 era bispo auxiliar de Lisboa, tinha sido recentemente nomeado bispo do Porto e era necessário tratar de uma série de questões burocráticas e logísticas com o vigário-geral. Os dois encontraram-se num lugar inusitado — a área de serviço da Trofa, na A3. Há uma razão para a escolha do local: Manuel Clemente tinha estado retirado no mosteiro beneditino de Singeverga, em Santo Tirso, e o plano passava por ir visitar Armindo Lopes Coelho, o bispo que terminara as funções no Porto e que estava internado no hospital da Prelada.

“Encontrámo-nos na estação de serviço da Galp, combinámos como é que íamos fazer e fomos ao hospital da Prelada visitar o senhor Armindo”, recorda Aguiar. Começaria ali uma relação de grande proximidade que se prolongaria até hoje: Clemente, o bispo intelectual; Aguiar, o braço-direito operacional. Foi já no mandato de Manuel Clemente que o padre Aguiar, que ocupava ainda o cargo de diretor de comunicação da diocese, foi fazer um mestrado no assunto. “É uma coisa a que ainda hoje sou sensível: não chega a boa vontade. Acho importante, e na altura o Manuel Clemente também achava, que as dioceses mandem formar pessoas nas áreas X, Y e Z”, lembra. Durante dois ou três anos, Aguiar repartiu o tempo entre o Porto e Lisboa: às quintas, sextas e sábados estava em Lisboa nas aulas do mestrado em Ciências da Comunicação; depois, voltava ao Porto para as funções pastorais. Desse curso resultaria o livro Um Padre na Aldeia Global, sobre os desafios da ação da Igreja Católica no mundo digital.

Um dos pontos altos das quase duas décadas de sacerdócio de Aguiar na diocese do Porto foi a requalificação da Torre dos Clérigos, pela qual ainda é celebrado na cidade. “Os Clérigos foram mais um desafio maior do que as minhas capacidades, mas que Deus providenciou”, recorda o bispo, lembrando que a motivação para a recuperação do ex-libris do Porto veio do “sentir de historiador” de Manuel Clemente, que lamentava que a torre estivesse ao abandono.

Em 2011, Américo Aguiar foi convidado para presidir à secular Irmandade dos Clérigos, com o objetivo de dar um novo ânimo àquele edifício histórico, que conhecia apenas como turista: “A última vez que tinha ido lá devia ter sido na escola primária, para subir a torre.” Naquele ano, o padre Aguiar voltou à torre para avaliar as condições do edifício e, nessa visita, o plano começou a desenhar-se na sua cabeça por um acaso. “A certa altura tropeço nuns papéis e descubro que a Torre faz 250 anos em 2013. A partir daí, isto começou. Jubileu, 250 anos, falar com A, com B e com C, e comecei a pensar: ‘E se a gente restaurasse isto?’” A resposta inicial de quem estava com ele foi pessimista: “Estás louco?” O custo seria milionário.

“Mas isto é o ex-libris da cidade”, pensou Américo Aguiar. Decidido a requalificar a Torre dos Clérigos, o sacerdote desdobrou-se em contactos com autoridades — uma espécie de ensaio para o trabalho que faz hoje com a Jornada Mundial da Juventude. “Fui falar com a minha muito querida amiga arquiteta Paula Silva, que na altura era diretora-regional da cultura e depois foi diretora-geral. E a conversa era sempre a mesma: dinheiro não há, mas a gente pode ajudar a fazer os projetos, se for possível.”

Foi Duarte Vieira, então presidente da CCDR do Norte, que lhe deu esperança. “Ele disse-nos assim: ‘Olhe, não há dinheiro. Há aqui uma portinha, uma janela de oportunidade. Está a acabar o quadro comunitário, e normalmente as autarquias não gastam o dinheiro, mas nunca dizem.’ Deixam acabar o prazo. Porque se dissessem antes estavam a demonstrar incapacidade. Quando chega ali à reta final, os projetos caem e o dinheiro fica livre. ‘O que é que pode acontecer, senhor padre? É que aconteça isto. Agora, não lhe posso prometer nada.’ E eu disse-lhe: ‘Mas então o que é que eu faço?’ ‘É assim: se o senhor tiver possibilidades, faça os projetos todos como se isso fosse possível. E depois, olhe, no dia em que eu lhe disser que há dinheiro, se estiver tudo pronto, avança. Se não estiver tudo pronto, não há tempo para avançar.’”

Américo Aguiar avançou com os projetos à espera desta possibilidade. Entretanto, receberia também o conforto financeiro de Rui Moreira, na Associação Comercial do Porto, e de Artur Santos Silva, no BPI. “Certo dia, toca o telefone. É o engenheiro Duarte Vieira: ‘Tenho uma boa notícia e uma má notícia. A boa notícia é que há dinheiro. A má notícia é que só é possível se estiver tudo pronto.’ ‘Ó senhor engenheiro, está tudo pronto!’ ‘Está tudo pronto?’ ‘O senhor engenheiro tinha-me dito para eu fazer tudo como se fosse possível e eu fiz.’ ‘Mas está tudo mesmo?’ ‘Está tudo! Projetos, especialidades, tudo.’ Pronto.”

Em dezembro de 2014, a Torre dos Clérigos, o emblemático edifício de Nicolau Nasoni que se impõe na paisagem da cidade do Porto, reabriu ao público renovada. Foi feito, orgulha-se Américo Aguiar, “no prazo e no preço”.

“Fez-me muito bem aquela experiência passada”, garante. “Foi um acompanhamento diário da obra. Não como especialista, que eu não percebo nada. Percebo de missas e mal. Mas os olhos do dono engordam a vaca. Não há hipótese. As coisas andaram, fizeram-se e foi a inauguração. E fico muito feliz ainda hoje. Os Clérigos tinham nessa altura à volta de 100 mil visitantes e acho que há dias celebraram os 7 milhões de visitantes. Fatura uns milhões por ano”, diz o bispo, sublinhando que os lucros são distribuídos por instituições sociais da cidade. “No meu tempo, a minha equipa optou pela área hospitalar de saúde social: entre 500 e 600 mil euros por ano de mais valias para as instituições ligadas à saúde, ao voluntariado.”

Américo Aguiar não se importa de ser descrito como "cão-de-fila" do patriarca de Lisboa, mas assume alguma tristeza com as críticas de que é alvo

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O “cão-de-fila” de Manuel Clemente

Nos últimos anos enquanto sacerdote da diocese do Porto, o padre Américo Aguiar começou gradualmente a repartir o seu tempo entre o Porto e Lisboa: em 2016, foi nomeado pela Conferência Episcopal Portuguesa como diretor do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais, o departamento da estrutura eclesiástica portuguesa responsável por pensar a ligação entre a Igreja e os meios de comunicação social. No mesmo ano, assumiu a presidência do Grupo Renascença Multimédia — um cargo que ainda mantém, mas que espera deixar em breve e para o qual espera que possa ser nomeado um leigo, e não necessariamente um clérigo.

No final de 2018, já com a possibilidade de a próxima Jornada Mundial da Juventude ser realizada em Lisboa, foi enviado dois meses para o Panamá, para acompanhar a preparação da anterior edição da JMJ e tomar nota do caderno de encargos que viria a recair sobre a organização portuguesa. O cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, continuava a confiar no seu antigo chefe de gabinete para as missões mais importantes — e queria recrutá-lo para Lisboa, para o cargo de bispo-auxiliar. No meio da surpresa, Américo Aguiar só se lembrou de um pedido: que o título que lhe seria atribuído — todos os bispos auxiliares recebem o título meramente cerimonial de bispo de uma diocese histórica em algum ponto do mundo — fosse de uma antiga diocese portuguesa.

Como é que aconteceu ser bispo?
Bem, primeiro convém dizer que não fiz para isso. Não fiz requerimento, não fiz papel, não fiz nada.

O Manuel Clemente ajudou…
Ajudou, não. A culpa é dele! Para quem não sabe, os bispos auxiliares são pedidos pelo bispo da diocese.

Pedem um auxiliar, mas não pedem um específico.
Têm de dar nomes. Não dão um nome. Dão dois ou três, ou quatro ou cinco. Portanto, a culpa é dele.

Vê-se também durante esse tempo no Porto como um braço direito de Manuel Clemente, que ele quis, depois, prolongar aqui?
Acho mais divertida a imagem do cão-de-fila. O operacional. Estamos a falar do dia 18 de fevereiro de 2019, ao almoço. Não me sai da cabeça. Eu estava na Renascença e ia almoçar ao David da Buraca. Ia eu, a gerente da Renascença, Dr.ª Ana Braga, e a secretária, a Fátima Paiva. Íamos a caminhar em direção ao David da Buraca e tocou o telefone. Número desconhecido. Quando toca o número desconhecido, já sei que é o Manuel Clemente. Eu atendo e ele diz-me assim: “Padre Américo, que bom, vai ser meu bispo auxiliar. Estou não sei onde, ligue para a nunciatura para tratar disso! Um abraço. Adeus.” E as senhoras, a partir desse momento, começaram a olhar para mim. “Está bem?” “Estou, estou bem.” Lá fui almoçar. “Então mas não come?” E eu a tentar disfarçar. Sei que elas me fizeram bullying durante a refeição, o que é que eu tinha, o que é que não tinha, o que é que aconteceu. E eu nada, nada, nada. Regressei à Renascença, liguei ao núncio e ele disse-me para ir à nunciatura, às 15h ou às 16h. Lá fui e ele então disse-me: “O Santo Padre escolheu-o para bispo auxiliar de Lisboa; se houver algum problema certamente partilha”, etc. E eu ia para lhe dizer: “Ó senhor núncio, mas pode ser de uma diocese portuguesa?” Aquela coisa dos títulos. Mas não cheguei a dizer. Ele entregou-me um envelope que tinha: “Cónego Américo Manuel Alves Aguiar, bispo-eleito de Dagno, Albânia” E eu já não disse nada. Lá me entregou o envelope, que tinha instruções: falar com o bispo do Porto, por aí fora.

Falar com o bispo e mais?
Falar com o bispo da diocese, falar com o bispo Clemente, pensar nas datas. Depois tinha uns papéis que era preciso preencher, uma carta para o Santo Padre. E lá regressei à Renascença para terminar o dia de trabalho.

Não disse nada a ninguém?
Não disse nada a ninguém. Durante dias, não disse nada a ninguém. Liguei ao senhor Manuel Linda… Durante umas 24, 48 horas… Mas depois vamos começando a pecar. A ligar à pessoa A, porque achamos que não pode ser de outra maneira, “Mas olha que isto é segredo, por amor de Deus”. E não houve qualquer tipo de fuga. Depois é combinada a data. Estávamos a 18 de fevereiro. A data do anúncio foi 1 de março e a data da ordenação foi 31. Portanto, entre 18 de fevereiro e 1 de março estive aqui… E, depois, lembro-me sempre do momento em que fui dizer à minha mãe. Foi o mais complicado.

Porquê?
Porque é estranho. Não é: “Ó mãe, já sou ministro!” É estranho. A minha mãe já estava doente, estava muito doente, e foi emocionante. Foi estranho. Principalmente, porque me lembrei de a minha mãe ter ocultado ao meu pai que eu ia às reuniões do seminário. E sei que ela e os meus irmãos — aquilo que eu já disse — nunca foram assim “Ai que bom, o filho padre”. Todo o respeito, acredito que tenham gosto, mas nunca grande exuberância. E, portanto, foi um momento…

Quando foi nomeado bispo, estávamos ali numa fase muito concreta da Igreja. Havia a questão dos abusos sexuais — claramente Manuel Clemente vinha de Roma para criar uma comissão —, já se tinha feito o anúncio de que a Jornada Mundial da Juventude ia ser aqui, em janeiro.
Sim. Eu tinha estado no Panamá em outubro e novembro de 2018, e depois estive lá, 15 dias ou três semanas antes da própria Jornada, em janeiro. A Jornada foi a 29.

Já por causa da possibilidade…
Já a trabalhar nessa possibilidade. Isto em janeiro. E a nomeação é quase um mês depois.

E a nomeação vem já com essas incumbências?
É assim, a leitura que eu faço é que sim.

Uma das primeiras funções que Américo Aguiar assumiu depois daquilo que descreve como o “aperto mitral” foi a de coordenador da Comissão de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa. Em fevereiro de 2019, Manuel Clemente, à época presidente da Conferência Episcopal, representou Portugal na cimeira organizada pelo Papa Francisco no Vaticano para debater o combate aos abusos sexuais de menores na Igreja — uma crise que no ano anterior se tinha abatido com estrondo sobre o pontificado de Francisco. Foi na sequência dessa cimeira que a Igreja começou a implementar novas regras internas para reforçar a proteção dos menores.

Como coordenador daquela comissão — e num momento especialmente quente para a Igreja Católica em Portugal e no mundo —, Américo Aguiar ganhou estatuto como um dos protagonistas da Igreja portuguesa, multiplicando-se em entrevistas e declarações sobre o assunto. Numa altura em que vários bispos eram criticados pelo modo como falaram publicamente sobre o tema (o exemplo mais paradigmático terá sido o de Manuel Linda, com a metáfora dos meteoritos), Américo Aguiar, bem treinado no contacto com a comunicação social, tornou-se numa das figuras de proa da Igreja portuguesa.

A ascensão em flecha de Américo Aguiar transformou-o num dos nomes óbvios para a futura sucessão de Manuel Clemente como patriarca de Lisboa. Este ano, Clemente completou 75 anos, a idade com que os bispos têm obrigatoriamente de pedir a resignação, e viu a sua imagem pública desgastada com as notícias em torno do modo como no passado tinha gerido suspeitas de abuso sexual no clero lisboeta. Há muito que já era certo que, depois da JMJ,  Manuel Clemente deixaria a Sé de Lisboa. Menos unânime é, contudo, a possibilidade de Américo Aguiar lhe suceder.

Dentro do clero do Patriarcado de Lisboa, não faltam os críticos de Américo Aguiar, que lhe apontam tanto a falta de densidade intelectual como o estilo demasiado descontraído (presente, por exemplo, no hábito de tratar por tu a generalidade das pessoas) — e veem com alguma estupefação o facto de Aguiar ter ocupado tantos cargos de relevo para Igreja portuguesa com uma experiência episcopal tão breve. Em quatro anos de bispo, Américo Aguiar não teve um único período “nem discreto nem sossegado”, assume, lembrando que nunca conseguiu descansar depois dos grandes projetos em que se envolveu: nem depois dos Clérigos, nem agora depois da JMJ.

“Nunca me passou pela cabeça, lá, sossegadinho no Porto, nem ser auxiliar de Lisboa, nem vir para a Renascença, nunca na vida”, diz. Contudo, não só chegou a bispo como, agora, por decisão única e exclusiva do Papa Francisco, chegou a cardeal.

15 mil cápsulas de café

Continuamos no gabinete de Américo Aguiar na sede da JMJ. A hora da receção à Provedora de Justiça aproxima-se, seguindo-se uma tarde de reuniões e ainda uma deslocação ao Parque Tejo-Trancão — o lugar que vai acolher as celebrações finais da JMJ — para participar em direto no Telejornal da RTP, nessa quinta-feira realizado justamente em cima do altar-palco, para assinalar a conclusão da controversa estrutura. Mas ainda há tempo para recordar o último domingo — o dia em que o Papa Francisco o surpreendeu com uma nomeação cardinalícia que o tornou num dos mais jovens participantes num futuro conclave.

Apesar de a organização da JMJ estar recheada de assessores, a agenda de Américo Aguiar, igualmente recheada, é maioritariamente controlada pelo próprio, que não abdica de ir ao terreno ajudar como pode nos preparativos da JMJ. No sábado, 8 de julho, completou 22 anos de ordenação sacerdotal e passou uma grande parte do dia num armazém onde dezenas de voluntários têm trabalhado a todo o gás para preparar os kits que todos os participantes da JMJ vão receber quando chegarem a Lisboa. À noite, jantou por ali febras grelhadas com os voluntários. No dia seguinte, domingo, planeava dormir até mais tarde: o primeiro compromisso formal era uma celebração de crismas em Óbidos. Antes, ainda planeava passar pelo armazém dos kits, em Setúbal.

Como foi o último domingo? Já está refeito ou ainda não?
Dormi mais um bocadinho. No dia 8 eu fiz aniversário de ordenação de padre. Bem, domingo eu tinha o propósito de comprar café para levar para o armazém em Setúbal, para os kits, porque lá não têm nada, não têm perto cafés. Eu sou um Nespresso-fã, porque até tiro cafés bons.

Deixou-se dormir? Não tinha missas nesse dia?
Não tinha compromissos marcados. Tinha o crisma em Óbidos. Levantei-me e fui direto à Nespresso, ao Centro Comercial Vasco da Gama, e lá fui comprar. Comprei 1.500 pastilhas e levei para alimentar a cafeinodependência da malta. Atravessei a Ponte Vasco da Gama, parei na estação de serviço, abasteci o carro e continuei. Cheguei ao armazém, entreguei as pastilhas e fui trabalhar. Estou especialista em abrir o pacotezinho da mochila, desdobrar a mochila, fechar a mochila…

Tem feito isso? O próprio Américo Aguiar a abrir mochilas e a enrolar t-shirts?
Tenho. Isto é o escutismo. Temos de dar o exemplo. Tem de se pôr a mão nas coisas. Lá estava e a certa altura o telemóvel começou a vibrar, com mensagens. Pensei logo: “O que é que foi desta vez? Algum jornalista…” E tiro o telemóvel. Como vocês sabem, quando há uma mensagem, aparece só a primeira linha. E havia aqui uma primeira linha — esta tem de ir para a história — que começava com “Eminenza”. O que eu vi foi: “Eminenza, tantissimi auguri.” [Eminência, muitíssimos parabéns.]

Pensou que seria do aniversário de ordenação?
Não achei nada…

De quem foi?
Foi o comandante da Gendarmaria. Às 11h15. O Angelus é ao meio-dia. Tinha acabado de acontecer. “Eminenza, tantissimi auguri.” E eu pus no bolso outra vez: o comandante da polícia do Vaticano ou está na tanga comigo ou enganou-se. E há uma segunda que me aguça… É do padre João Chagas, do dicastério [para os Leigos, a Família e a Vida], que diz algo como “abençoado”. A seguir, o Pedro Leal [da Renascença]: “Fomos os primeiros a dar a notícia, queremos falar consigo.” A dar a notícia? Vou à aplicação da Renascença. “Novo cardeal, Américo Aguiar…”

Viu pela Renascença?
Era bom dizer Observador, não era? (…) As pessoas dizem que eu fiquei pálido. Acredito que sim. Não tinha espelho, não sei. Deram-me água. Não sei explicar: sem chão, mas o que é que aconteceu, o que é isto? Telefonemas, não sei que mais. Não atendi ninguém. Afastei-me do grupinho, vim cá para fora respirar. Acho que liguei ao Francisco de Mendia, que é o da Cunha Vaz. Já nem sei. “Epá, o que é que a gente faz?” Ele disse: “Onde é que o senhor está?” “Estou no armazém.” “Que horas é que são?” “São 11h30, já nem sei.” “Deixe lá, nós vamos pensar em qualquer coisa, dizemos-lhe já.” Nesse bocadinho falei com o cardeal Tolentino, devolvi algumas chamadas não atendidas, sem critério. E desliguei o telefone. Era impossível. Liguei ao senhor patriarca, mas ele estava a celebrar na Benedita.

Só soube depois.
Acho que foi pelo [padre] Paulo Franco, que estava lá na Benedita a celebrar. Ele estava a celebrar umas bodas de prata de uns padres e no fim foram-lhe dizer, que ele também não sabia. Depois mais à frente liguei-lhe. Falei com o cardeal Marto também. Ficou combinado que às 13h30 iam lá os jornalistas. Neste espaço de tempo, tive uma solidão enorme, um medo total. Depois, reparei que entre os responsáveis de equipa, via-se as pessoas em festa.

Foi-se recolher nalguma sala do armazém?
Qual sala? Aquilo não tem sala! Foi cá fora. Naquela antecâmara. Pus-me lá num cantinho. Anestesiado. Depois, as pessoas, simpaticamente, bateram palmas, beijinhos, selfies. Lá começaram a chegar os media.

Américo Aguiar lidera uma equipa de várias dezenas de pessoas que trabalham todos os dias na organização da JMJ
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
A sede da Fundação JMJ está instalada na antiga Manutenção Militar, em Lisboa
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Todos os dias, às 12h00, a sede da Fundação JMJ para durante breves minutos para a oração do Angelus
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Com a nomeação cardinalícia, Américo Aguiar deverá agora receber novas funções — que ainda permanecem um mistério
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Nessa solidão, em que é que pensou. A sua vida mudou ali um bocadinho…
Um bocadinho? Medo. Não sei se é medo, se é respeito, se é temor. A pequenez… Ponho-me a pensar o que é que os outros vão pensar, mas não interessa nada. Aquilo que eu tenho dito e repetido: sinto-me pequenino, sou um miúdo, sou um danoninho, e olho para a estatura, para a craveira e para a referência destes homens. Pegamos no cardeal Clemente, no cardeal Marto e no cardeal Tolentino…

São grandes intelectuais.
Eu tiro fotocópias e distribuo café. Acho que vai ser preciso no conclave. Alguém tem de fazer isso. Se calhar é uma questão logística de ajudar a distribuir papéis e queimar os papéis lá no fogareiro.

E nota diferença nestes últimos quatro dias, por causa da nomeação cardinalícia? Estes dias foram diferentes aqui no trabalho, com as pessoas da Jornada?
As pessoas foram muito simpáticas. Aliás, eu digo — e não digo arbitrariamente: não me sai da cabeça que este gesto do Papa tem muito a ver com a JMJ, com o trabalho destes jovens. Eu não faço nada para a Jornada. É certo que sou o rosto, a cara, o nome. Mas eu faço pouquinho para a Jornada, os miúdos é que fazem. Esta malta, voluntários e trabalhadores, portugueses e estrangeiros, eles é que fazem. Eu tento ser árbitro, tento ser maestro, tento ser organizador, mas eles efetivamente é que fazem. Eu tento, às vezes, ajudar, seja a montar kits, seja a fazer o que for necessário, mas eles é que fazem. Não me sai da cabeça que eles são a razão principal. Depois, aquilo que sinto — ainda tenho mais de mil e tal mensagens para tentar responder — e que é muito interessante: pessoas anónimas. Leigos anónimos. O meu número é público, está aí nas plataformas, e portanto acho isso muito simpático, muito giro, muito bonito. E também muito aquilo que aumenta a minha responsabilidade, quando digo que é uma homenagem a Portugal, que é uma homenagem aos portugueses, que é muito bom. Quanto mais dizem isso, mais me sinto responsável. Dizia a brincar que a partir do dia 7 de agosto não sabia se ia estar no Júlio de Matos ou no Conde de Ferreira. Olha…

Parece evidente que um cardeal não vai ficar como bispo auxiliar de Lisboa… Como é que vê estes próximos anos? Se tudo correr bem, tem 30 anos de eleitor no conclave…
É isso. Já estive para vestir um colete amarelo, como em França, para reclamar por mais cinco anos de trabalho. Ao longo da minha vida, há sempre surpresas, coisas boas e coisas más. Lembro-me de quando o António Marto era nosso professor lá no seminário do Porto, na Faculdade de Teologia. Quando ele foi nomeado bispo auxiliar de Braga, no jantar no seminário, ele disse qualquer coisa interessante: que se sentia pequeno para o desafio, que estava tão bem, era professor. Mas Deus, quando dá os desafios, quando dá as tarefas, também dá as forças e dá o que é necessário. É muito essa certeza. O lema que eu escolhi para bispo, que era do António Francisco: In Manus Tuas. Nas mãos de Deus. Vou tendo essa certeza. Aliás, há um acontecimento de tudo isto que reforçou ainda mais que quer que eu viva de facto essa liberdade nas mãos dele. Nunca posso esquecer que a minha mãe faleceu na véspera da minha ordenação episcopal. O funeral foi no domingo de manhã e a minha ordenação foi no domingo à tarde. Isso, para mim, foi muito forte para entender e assumir o desafio que Deus me coloca. A partir daí, seja o que Deus quiser. Quando falavam de possivelmente ser o patriarca de Lisboa, uns querem, uns não querem: é o totopatriarca, é o fulano, é o sicrano. Mas as pessoas não se podem esquecer — e isto é para todos — que, seja Lisboa, seja Porto, seja Setúbal, seja Braga, seja o que for, não há candidaturas. Ninguém se candidata a nada. É sempre fruto da tal auscultação, da sinodalidade, que desagua numa proposta que é feita ao Santo Padre. Portanto, ninguém que é nomeado bispo do sítio A, do sítio B, do sítio C ou do sítio D o é porque pediu, porque requereu ou porque não sei o quê.

Enquanto a nomeação para um posto de bispo diocesano passa pelo crivo dos núncios, a escolha de um cardeal é exclusiva de um Papa. Claramente, o Papa gosta de si.
Acho que ele não é masoquista. É verdade, a escolha dos cardeais é da única e exclusiva responsabilidade do Papa. Não tem nem que consultar, nem outro tipo de coisa. Portanto, quando faz as suas escolhas, fá-las naquilo que é a obra do Espírito Santo de Deus no seu coração — e naquilo que é a sua leitura do tempo e da realidade. Nós, nos últimos dez anos, os consistórios que o Papa tem convocado para a nomeação de novos cardeais têm tido sempre muitas surpresas. Seja na geografia, seja nas idades, seja nas categorias…

Nas ideias.
Nas ideias…

No seu caso, talvez não seja a questão da geografia que interfere. A sua nomeação não torna o Colégio Cardinalício mais periférico. É um europeu. Acha que é pelo alinhamento das ideias?
Para alguns, sou um temível seguidor de Francisco. Assim seja.

“Nosso Senhor que foi Nosso Senhor não agradou a todos”

O pedido é para estar no Parque Tejo-Trancão no máximo às 19h30. A RTP vai emitir o Telejornal a partir do altar-palco e a Jornada Mundial da Juventude é um dos temas centrais do noticiário, que tem como convidados Américo Aguiar e o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas. O futuro cardeal vai ao volante do próprio carro. Dentro da organização da JMJ, diz-se que Aguiar não gosta de ser conduzido e elogia-se a simplicidade do dia-a-dia do bispo. Segue ao volante de um pequeno Toyota emprestado (o seu carro está na oficina depois de um acidente recente) pela marca, que está a patrocinar a JMJ e que vai fornecer o carro que vai transportar o Papa Francisco nos momentos em que não andar no famoso papamóvel.

A viagem entre o Beato e o Parque Tejo-Trancão faz-se em poucos minutos — àquela hora já não há trânsito — e rapidamente o cardeal se apresenta nos portões que impedem a entrada do público na zona do palco, que ainda é para todos os efeitos uma zona de obra. “É o padre Américo”, apresenta-se, baixando o vidro do carro. Deixam-no seguir em frente. O carro percorre os corredores de terra batida que o papamóvel vai calcorrear na missa final da JMJ — para que todos os peregrinos possam ver o Papa de perto, mesmo os que vão ficar a vários quilómetros do palco e para quem vai ser impossível ver a missa senão pelos ecrãs gigantes.

Américo Aguiar ao volante do seu carro a caminho do terreno onde vão decorrer as celebrações finais da JMJ

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Ainda antes da partida para o último compromisso do dia, Américo Aguiar não esconde ao Observador a tristeza em relação aos muitos críticos internos. Nos meios de comunicação especializados, as resistências e anticorpos do clero de Lisboa em relação a Américo Aguiar já circulam amplamente. De qualquer modo, uma nomeação de Américo Aguiar para patriarca de Lisboa, neste momento, seria difícil de conciliar com a tradição segundo a qual um bispo de uma diocese não é elevado a cardeal enquanto o seu antecessor cardeal tiver menos de 80 anos e, por isso, puder votar num conclave. Outros voos — eventualmente um cargo em Roma — afiguram-se como mais prováveis.

Como é que olha para estes quatro anos? Muito marcados pela Jornada, mas também pela crise dos abusos.
Tenho consciência… Há dias dei uma entrevista e a pessoa disse-me para não ligar ao que os outros dizem. Eu digo que não ligo. Se a gente fosse ligar ao que os outros dizem, o mundo não avançava, nada acontecia. Mas é óbvio que somos humanos, somos carne e osso. Então quando faço o que não devo, que é cheirar as redes sociais, às vezes fico muito triste e maltratado. As pessoas estão a dizer que eu sou isto e sou aquilo.

O que é que dizem?
Coisas muito feias e muito negativas. Que, às vezes, me provocam uma coisa que é importante: eu refletir. Será que é verdade? E depois, quer na oração, quer na direção espiritual, a gente faz um upgrade, um reset. Tenho feito os possíveis, em todas as áreas da minha vida, para todos os dias me deitar de consciência tranquila. Todos os dias. Desde a política, do Antigo Testamento, dar-me bem com toda a gente, não prejudicar ninguém e tentar sempre fazer o certo. E sei que às vezes as coisas que achamos que estão certas nem sempre significam que os nossos amigos gostem. As consequências das nossas decisões às vezes são muito dolorosas e negativas para os nossos amigos e para quem caminha connosco. Mas isso é assim. Tento cumprir os quatro princípios da Doutrina Social da Igreja: a dignidade da pessoa humana, o bem comum, a subsidariedade e a solidariedade. São coisas que tenho presentes. A partir daí, tento ser sério e ser verdadeiro. Às vezes, não corre bem.

Américo Aguiar à chegada ao recinto onde vão acontecer as celebrações finais da JMJ
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O bispo auxiliar de Lisboa em conversa com o presidente da câmara de Lisboa, Carlos Moedas
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Américo Aguiar prepara-se para ser entrevistado no Telejornal da RTP, em direto a partir do palco
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Esta estrutura, cujo custo inicial superava os 4 milhões de euros, esteve no centro de uma das polémicas da JMJ
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Américo Aguiar durante uma entrevista à RTP
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O bispo auxiliar de Lisboa deverá receber novas funções em setembro, depois do consistório em que vai ser criado cardeal
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Podemos caracterizá-lo de progressista, usar essa expressão?
Eu não gosto nem dos -istas nem dos -ismos. Quando tiver oportunidade de estar com o Santo Padre, vou-lhe dizer que, se eu for vivo e tiver saúde, o legado do Papa Francisco tem mais 30 anos de vida. Assumirei, naquilo que seja o que Deus me proporcionar, que o legado do Papa Francisco tem mais 30 anos de garantia. Depois, tenho consciência do tempo e do desafio que nós vivemos. Hoje, em Lisboa, em Portugal, na Europa e no mundo. Aquilo que irrita o Papa: “é costume”, “sempre foi assim”, “segundo a tradição”. Isso amarra-nos, impede-nos de avançar. Quando o Papa fala até à exaustão da Igreja em saída, do hospital de campanha, o todos para todos com todos, isso preenche-me o coração. E dou a vida por isso.

O seu nome é falado para patriarca de Lisboa já há muito tempo porque é muitas vezes classificado como um delfim de Manuel Clemente, como a figura que Manuel Clemente — que é um intelectual reconhecido — tem como operacional. Revê-se nessa descrição?
Que eu sou um operacional, sou. Isso tenho consciência. Como é que se chama o carro do Salgueiro Maia? A chaimite. Sou o gajo da chaimite.

Mas sente que há um tom depreciativo nessas classificações?
Não sou anjinho. Entendo perfeitamente, aceito, acolho as minhas misérias, as minhas limitações. O Santo Padre tomou esta decisão. Eu, pessoalmente, ao ler esta decisão, até posso arriscar que o que se segue pode não se cruzar com a geografia de Lisboa. Atendendo ao timing, atendendo às circunstâncias, que não tenha nada a ver com Lisboa. Absolutamente.

Roma, por exemplo?
Ou Burkina Faso.

Estar envolvido na JMJ a partir de Roma era algo que gostaria de fazer?
Não sei se teria juízo suficiente para me meter noutra JMJ. Mas aquilo que posso garantir, que disse há dias em várias entrevistas, é: não quero que se entenda como um “fazer-se a”. Eu parto do princípio de que, a partir da ordenação sacerdotal de alguém, a vontade própria dessa pessoa cessou.

Começa a vontade de Deus?
Exatamente. Tenho dito isso e vivido isso com os prós e contras que isso implica. E parto do princípio de que um sacerdote que é chamado à nunciatura para ser bispo diga que sim. Aliás, nós temos notícias que dizem que 20%, 30% dizem que não.

Acha estranho isso?
Depende das motivações. Gostava de que um sacerdote a quem é pedida, hoje em dia, uma decisão de martírio, de dificuldade, aceitasse. A não ser por razões muito excecionais, que certamente serão. O mesmo em relação a um bispo. Se a Santa Sé, se o Santo Padre, chama o bispo fulano tal para esta função ou aquela, aqui ou acolá, geograficamente mais perto ou mais longe, melhor ou pior, mais classificada ou menos classificada, eu parto do princípio que as pessoas dizem que sim. O que digo é: se me convidarem para Lisboa, se me convidarem para Roma, se me convidarem para ficar auxiliar de Lisboa, se me convidarem para fazer não sei o quê não sei onde, eu direi, com o mesmo empenho, com a mesma dedicação, com a mesma alegria, que sim.

Nos meios católicos, nota-se que existe uma certa resistência do clero em Lisboa, que é apontado muitas vezes o facto de Américo Aguiar não ser um intelectual, mas ser um operacional, digamos assim. Como é que lê estas críticas do clero?
Eu gosto muito deles. Aliás, parto do princípio de que as pessoas são boas, que cada um faz o que pode e o que lhe é possível. E concordo. Concordo e entendo. Aqueles que conhecem melhor, aqueles que conhecem pior. E só lhes posso dizer que entendo, que rezo todos os dias para ser melhor, para ir mais ao encontro daquilo que são as necessidades da Igreja, da Igreja em Lisboa, da Igreja em Portugal, da Igreja no mundo. Nosso Senhor que foi Nosso Senhor não agradou a todos, aliás de uma maneira muito violenta. Portanto, aquilo que posso dizer é que o que eu gostava é que nós dirigíssemos as nossas forças, os nossos empenhos e as nossas energias para amarmos. Para não nos desgastarmos e nos empenharmos naquilo que possa ser diferente disso, porque gosto, porque não gosto, porque aprecio, porque não aprecio, porque é alto, porque é magro. Aquilo que o Papa Francisco dizia há dias numa entrevista na Disney: o importante é o substantivo, a pessoa. Esse deve ser o nosso foco. Depois, tudo aquilo que a define, Deus providenciará.

Américo Aguiar junto ao palco que vai receber o Papa Francisco em agosto

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