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Sergei Savostyanov/TASS

Sergei Savostyanov/TASS

Para Putin, a Rússia tem o coronavírus "sob controlo". Terá mesmo?

Apesar de ter fronteira com a China, a Rússia só tem 199 casos confirmados. Vladimir Putin diz que a situação está "sob controlo", mas há quem ache que os dados são falsos: "É Chernóbil outra vez".

Desde terça-feira que qualquer jornalista que queira ir a uma conferência de imprensa com o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, tem de passar por três controlos de temperatura. Primeiro, à entrada de um dos portões do Kremlin. Depois, quando chegar à porta do edifício propriamente dito. E, finalmente, à porta da sala para a imprensa. Só depois poderão ver o chefe de Estado.

Dias antes, um deputado nacionalista, Sergei Katasonov, decidiu quebrar a quarentena que lhe foi imposta (tinha regressado de avião de França, o que o obrigaria a 14 dias de confinamento) e apresentou-se ao trabalho na Duma, a câmara baixa do parlamento russo. Assumiu o seu lugar, participou em sessões, incluindo uma em que estava Vladimir Putin. Depois de se ter percebido que aquele parlamentar quebrou a sua quarentena, a Duma foi desinfestada de uma ponta à outra e os deputados que tiveram contacto com Sergei Katasonov foram também eles colocados em quarentena.

"A situação está de forma geral sob controlo, apesar dos altos riscos."
Vladimir Putin, em reunião de conselho de ministros a 17 de março

E ainda antes disto tudo, a Rússia foi um dos primeiros países a cortar fronteiras com a China — uma medida tomada a 31 de janeiro, que impediu as passagens a pessoas pé e ao longo dos 4.209 quilómetros que separam as duas nações.

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E se, à altura do fecho da fronteira com a China, o país não tinha quaisquer casos reportados, a 19 de março os números continuam a ser relativamente baixos, quase dois meses depois.

Por agora, na Rússia há apenas registo de 199 casos diagnosticados e uma só morte — uma mulher de 79 anos que, dizem as autoridades russas, já tinha uma pneumonia. Só Portugal, que está longe de ser um dos países mais afetados (é o 20.º do mundo em número de casos) e que nem sequer partilha uma fronteira com a China, está atualmente com mais de 750 casos e três mortos. Ou seja, Portugal tem quase quatro vezes mais casos e o triplo das mortes, segundo os números de parte a parte.

No fundo, a situação parece controlada na Rússia. Esta quarta-feira, Vladimir Putin dizia mesmo isso numa reunião do conselho de ministros a que presidiu na terça-feira:  “A situação está de forma geral sob controlo, apesar dos altos riscos”.

O problema é que, apesar deste relato oficial do Kremlin, começam a surgir sinais de que, talvez, a situação não esteja tão controlada quanto isso.

O governador, a figurante de novelas e o supermercado sem escassez

Esta quarta-feira, ao mesmo tempo que os telejornais de vários países ocidentais mostravam imagens de supermercados com prateleiras vazias, as televisões russas mostravam o governador de São Petersburgo, Alexander Beglov, num supermercado. Os repositores devem ter feito um bom trabalho, porque nada faltava naquelas prateleiras, onde os produtos estavam alinhados, sem qualquer sinal de escassez.

Alexander Beglov dirige-se a uma das prateleiras, pega num pacote de arroz integral, para o qual parece olhar com interesse, e depois devolve-o à origem. Atrás dele, uma mulher observa-o com os braços pousados num carrinho de compras. É com ela que Alexander Beglov mete conversa, enquanto os dois olham sorridentes para as prateleiras cheias como um ovo. Ao lado, um fotógrafo profissional regista o momento. Mais atrás, alguns clientes fazem o mesmo com os seus telemóveis.

https://www.facebook.com/569213111/videos/10158158499913112/

Pouco depois de aquelas imagens terem ido para o ar e para as redes sociais, percebeu-se que tudo pode não ter passado de uma encenação.

Várias pessoas num grupo de Telegram identificaram aquela mulher que, pelos vistos, não é estranha nas televisões russas. De acordo com o site Meduza, tratava-se de Nadezhda Mikryukova, uma atriz amadora que aparece frequentemente em telenovelas russas como figurante. Além disso, também houve quem identificasse no Instagram daquela mulher uma fotografia a receber um ramo de flores de um segurança de Alexander Beglov pela ocasião do Dia da Mulher — o que levou a que Nadezhda Mikryukova mudasse as definições da sua conta naquela rede social e a tornasse privada.

Enquanto isso, noutros supermercados, as imagens já eram bem diferentes. Num vídeo publicado pelo jornalista Alec Luhn, freelancer norte-americano que colabora com vários meios anglo-saxónicos, é possível ver como uma corrida aos supermercados já levou a que também na Rússia as prateleiras se esvaziassem a uma velocidade anormal.

Essa mesma realidade chega a ser reconhecida pelos canais do regime. Num vídeo divulgado pela Ruptly, agência de vídeos diretamente ligada à Russia Today (RT), canal internacional financiado pelo Kremlin, era visível como as prateleiras de um supermercado de Moscovo estão, na sua grande maioria, vazias.

Também em São Petersburgo, o comité de saúde da cidade anunciou uma longa lista de clínicas onde cada um poderia fazer testes para saber se estava ou não infetado com o novo coronavírus. As amostras seriam recolhidas nessas clínicas e, dali, enviadas para um centro laboratorial em Novosibirsk que tem o monopólio deste tipo de testes no país. Porém, de acordo com os relatos que foram feitos nos media locais, algumas clínicas não chegaram a fazer esses testes, recusando pacientes. “Não temos testes, não temos máscaras, não temos nada!”, responderam a um jornalista do Fontanka, numa dessas clínicas de São Petesburgo.

Pneumonias dispararam 37% em Moscovo — e já se fala numa nova Chernóbil

Tudo isto surge apesar das declarações de Vladimir Putin de que “a situação está, de forma geral, sob controlo”.

Apesar da aparente ideia de controlo à superfície, há russos que desconfiam, reconhecendo-lhe a mesma veracidade que ao vídeo do governador São Petersburgo com a figurante de telenovelas. Alguns lembram que não seria a primeira vez que, a partir do Kremlin, se menosprezava ou escondia informação vital sobre uma tragédia, apontando para o que aconteceu com o desastre nuclear de Chernóbil, em 1986.

“Toda a gente anda a dizer ‘ah, é como Chernóbil, outra vez'”, disse ao The New York Times Anna Filippova, jornalista de 26 anos. “Sabemos que o governo vai mentir outra vez e que não vamos conseguir com que a verdade saia, por isso sentimo-nos perdidos.” Também a líder do sindicato Aliança dos Médicos Russos, Anastasia Vasilyeva, em declarações à Reuters, disse que suspeita de que a verdade não está a ser dita: “Sinto que as autoridades nos estão a mentir”.

Por tudo isto, os números relativamente baixos de casos na Rússia têm sido postos em causa. O jornal Meduza apresentou cinco hipóteses para aqueles resultados: consequência positiva do fecho de fronteiras; sorte numa fase inicial, aliada mais tarde ao fecho das fronteiras; todas as pessoas infetadas foram localizadas; os testes na Rússia, que usam métodos diferentes dos que são usados internacionalmente, não são os mais indicados para testar este vírus; ou que na verdade há muitos mais infetados, mas que simplesmente não precisaram ou não procuraram cuidados médicos.

A Rússia fechou a fronteira com a China a 31 de janeiro, mas só fechou com o Irão a 28 de fevereiro e com a Itália a 13 de março. "O novo coronavírus teve todas as oportunidade para entrar na Rússia", escreve o jornal Meduza.

Naquela lista de hipóteses compilada pelo Meduza, e escrita pelo diretor daquele jornal, Alexander Ershov, são colocadas sérias dúvidas em relação ao alcance e eficácia do fecho de fronteiras por parte da Rússia a propósito desta crise.

Os primeiros casos do novo coronavírus na China remetem para o final de dezembro — ou seja, um mês antes do fecho da fronteira por parte da Rússia. “Por essa altura, já tinham sido registados 9.923 casos de Covid-19 no mundo, em países como a China, Taiwan, Singapura, Autrália, Reino Unido e outros. Até na Finlândia, que tem um tráfego de passageiros pequeno com a China e que, com a Rússia, tem um tráfego grande, tinha casos”, escreve Alexander Ershov. “Isto significa que, pelo menos em teoria, o novo coronavírus teve todas as oportunidade para entrar na Rússia antes de os movimentos de e para a China terem sido limitados.”

Alexander Ershov refere ainda que a Rússia impôs limites às viagens de e para o Irão (um dos maiores focos da doença no mundo) a 28 de fevereiro. E só mais tarde veio a fazê-lo com outros casos onde a doença foi detetada em abundância, como a Coreia do Sul e Itália.

Uma trabalhadora de uma fábrica de máscaras em Kineshma, na região de Ivanovo, analisa o produto final(Vladimir Smirnov/TASS)

Vladimir Smirnov/TASS

Porém, ao mesmo tempo que a Rússia apresenta números relativamente baixos para o novo coronavírus, os dados relativos às pneumonias demonstram um aumento invulgar.

A 13 de março, o jornal russo RBC escreveu que mais de 90 mil pessoas tinham ficado doentes com sintomas de pneumonia — os quais são, em grande parte, iguais aos do novo coronavírus. Só em Moscovo, os casos relatados de pneumonia subiram de 5.058 em janeiro de 2019 para 6.921 em janeiro de 2020 — o que representa um aumento de 37% num só ano e de quase 2 mil casos só num ano, de acordo com números do Rosstat, o instituto nacional de estatística russo.

A ideia de que os números apresentados pelas autoridades russas sobre o novo coronavírus são falseados é rejeitada pelo Kremlin. Ao EUobserver, um porta-voz da Embaixada da Rússia na União Europeia reconheceu que “as razões pelas quais os números oficialmente confirmados continuarem nesta fase relativamente baixos são de um caráter complexo”, mas acrescentou também que a ideia de que o país tem muito mais infeções é “uma mentira descarada”.

A corrida pela desinformação

Ao mesmo tempo que os números revelados pela Rússia levantam suspeitas, a União Europeia acredita que é precisamente de Moscovo que partem os esforços para espalhar desinformação em torno do novo coronavírus nos países que a formam.

Esta quinta-feira, um documento interno da União Europeia ao qual a Reuters teve acesso detalha como Bruxelas acredita que a Rússia está a pôr em marcha “uma campanha significativa de desinformação” através dos seus media estatais e canais internacionais pagos pelo Kremlin, como a RT.

"O objetivo geral da desinformação do Kremlin é a de exacerbar a crise de saúde pública nos países ocidentais (...) em linha com a estratégia mais ampla de tentar subverter as sociedades europeias"
Relatório da UE sobre campanha de desinformação da Rússia sobre o novo coronavírus

“O objetivo geral da desinformação do Kremlin é a de exacerbar a crise de saúde pública nos países ocidentais (…) em linha com a estratégia mais ampla de tentar subverter as sociedades europeias”, lê-se naquele documento. Nele, eram referidos quase 80 casos de desinformação a contar desde 22 de janeiro. Um dos exemplos remetia para uma notícia falsa de que um soldado norte-americano, destacado na Lituânia a propósito de uma missão da NATO, estava infetado.

O alcance de notícias como esta é amplo, argumenta aquele relatório da UE. Nele, é referido que a versão espanhola da RT foi a 12º fonte de informação mais popular nas redes sociais entre janeiro e meados de março.

Um dia a ver o canal de propaganda do Kremlin. Como é o mundo na televisão de Putin?

Em declarações à Reuters, o porta voz do Kremlin, Dmitry Peskov, negou qualquer esforço por parte da Rússia neste sentido. “Estamos perante alegações sem prova que, provavelmente, resultam de uma obsessão anti-Rússia”, disse aquele porta-voz.

"Estamos perante alegações sem prova que provavelmente resulta de uma obsessão anti-Rússia."
Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin

Enquanto isso, a Rússia montou o seu próprio centro de combate ao coronavírus. Esta terça-feira, Vladimir Putin visitou as instalações de um recém-fundado centro de informação para o coronavírus em Moscovo, que parte de uma iniciativa financiada pelo Sberbank (o maior banco da Rússia, que pertence maioritariamente ao Estado).

O próprio Vladimir Putin visitou as instalações daquele centro, pela mão do presidente da câmara de Moscovo, Sergei Sobyanin, que ficou com a responsabilidade de gerir o combate ao novo coronavírus na Rússia.

Naquele centro, trabalham já equipas multidisciplinares, que abordam a crise do novo coronavírus a partir de vários ângulos, explica o The Moscow Times.

Uma é a possibilidade de as pessoas fazerem download de uma aplicação específica e terem uma consulta médica por videoconferência, cortesia do Sberbank. Outra é a vigilância das pessoas colocadas em quarentena. “Identificámo-los a todos”, disse Sergei Sobyanin. “Quando a pessoa sair do prédio, nós estamos a filmá-la.”

Sergei Sobyanin, chefe do combate ao coronavírus na Rússia e autarca de Moscovo, a mostrar imagens de vigilância de um supermercado a Vladimir Putin (MIKHAIL KLIMENTYEV/SPUTNIK/AFP via Getty Images)

SPUTNIK/AFP via Getty Images

E há também o combate à desinformação, da qual a Rússia também se queixa neste tema. O vice-primeiro-ministro, Dmitry Chernyshenko, gabou-se de como aquele centro cortou a disseminação de uma notícia de que havia 32 mortes pelo novo coronavírus na Rússia, tudo com recurso a um mecanismo de inteligência artificial. “Um minuto depois [de a publicação ter sido feita], o operador já tinha aqui essa informação”, disse aquele governante. A partir daí, plataformas como o popular motor de pesquisa Yandex apagaram esse conteúdo.

Aquele centro também vai servir para monitorizar o grau de abastecimento nos supermercados através de câmaras de vigilância. Com Vladimir Putin ao lado, Sergei Sobyanin mostrou-lhe como, através daquele centro, podiam ver imagens de várias lojas e armazéns. Como prova disso, mostrou-lhe um vídeo em direto de uma loja normal, com prateleiras cheias e sem grandes filas — como se tudo estivesse controlado.

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