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Se a inteligência artificial (IA) é uma corrida ao ouro, a Nvidia é uma das empresas que está a vender as picaretas. Só que, neste cenário, as picaretas são unidades de processamento gráfico, conhecidas pela sigla GPU. Criada em 1993, a empresa californiana está a colher os frutos das apostas que fez, primeiro na área dos jogos e, de há uns anos para cá, na IA.
Desde que o ChatGPT foi lançado, em novembro, que a corrida à IA ganhou novo fôlego. A Nvidia rapidamente ficou em vantagem e as ações começaram a subir. Em maio, tocou durante breves momentos na marca de um bilião de dólares de valor em bolsa (trillion, na terminologia anglo-saxónica), e, já em junho, cimentou essa posição. Foi a sétima empresa norte-americana a alcançar este valor, juntando-se ao restrito clube das “trillion dollar babies”, ao lado da Apple, Microsoft, Alphabet e Amazon. Também a Meta e a Tesla já pertenceram em tempos ao clube, mas afastaram-se, entretanto, desses valores.
A Nvidia já tinha uma presença relevante na área dos jogos, mas, em 2006, tomou a decisão estratégica de alargar o seu negócio a outros campos, até chegar à IA. Foi um “momento de apostar a empresa”, admitiu recentemente o CEO e co-fundador, Jensen Huang. “Era preciso reinventarmos o hardware, software, os algoritmos. E, ao mesmo tempo em que estávamos a reinventar a computação gráfica com a IA, também estávamos a reinventar a GPU para a AI”, disse Huang numa conferência este mês, em Los Angeles.
O entusiasmo com o metaverso esfumou-se para dar lugar à febre da IA?
A aposta, que poderia ter deitado tudo a perder, está a compensar. Os componentes desenvolvidos pela Nvidia têm estado no centro da febre da IA, especialmente os modelos mais avançados. A companhia tem uma quota que ronda os 80% no mercado de unidades de processamento gráfico para aprendizagem automática.
A investigação e o desenvolvimento de grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT, precisa de várias GPU que consigam fazer cálculos de forma muito rápida. A Nvidia tem alimentado a indústria – o ChatGPT foi treinado com 10 mil GPU da Nvidia e, do outro lado do mundo, também gigantes como a Baidu, Tencent e Alibaba dependem dos componentes da companhia californiana. Como é que a Nvidia chegou a este ponto?
Nvidia é a primeira fabricante de semicondutores a chegar ao bilião
Em 30 anos, a Nvidia passou de uma ideia que surgiu à mesa de um restaurante Denny’s em San José, na Califórnia, para uma das companhias mais valiosas de Wall Street.
Jensen Huang, que chegou trabalhar para a AMD e para a LSI Logic, Chris Malachowsky, engenheiro da Sun Microsystems, e Curtis Priem, que trabalhou na IBM e na Sun Microsystems, estavam descontentes com os respetivos empregos. O trio partilhava a ambição de criar uma empresa que pudesse acelerar a próxima geração de gráficos computacionais. Em 1993, os videojogos eram rudimentares a nível visual e representavam um sério desafio a nível gráfico. Por outro lado, a indústria já valia muito dinheiro e com a promessa de muito mais a caminho. Era hora de aproveitar a oportunidade. “Estas duas condições não acontecem com muita frequência. Os jogos de vídeo foram a nossa ‘killer app’ – uma forma de chegar a grandes mercados a financiar uma enorme investigação e desenvolvimento para resolver problemas computacionais”, contou Huang à Fortune. Os três engenheiros fundaram a Nvidia em abril de 1993 com os 40 mil dólares que dispunham entre os três – equivalentes hoje a 84.914 dólares.
Ao início, a empresa nem sequer tinha nome – os documentos internos tinham só a designação NV, para new version, em português, nova versão. Mas ficou desde o arranque assente que Jensen Huang seria o CEO. Na indústria tecnológica dos EUA, é dos poucos fundadores que ainda se mantém na liderança da criação.
A Nvidia especializou-se em componentes gráficos, primeiro para os PC (computadores pessoais). Em linhas gerais, são os chips da empresa que decidem o que é que deve ser apresentado em cada pixel no ecrã. E, uma vez que um ecrã tem milhares de pixéis, estes componentes têm de fazer cálculos de forma muito, muito rápida. À Wired, há 20 anos, Huang resumiu a questão: “Onde quer que exista um pixel, é onde queremos estar.”
A viagem da Nvidia nos PC começou com a Intel, que durante muito tempo foi uma aliada de negócios – hoje em dia, são rivais. Mais tarde, a Nvidia começou também a desenvolver os componentes para outro tipo de produtos, a consola. O projeto de um semicondutor para a Xbox valeu à empresa de Huang um adiantamento de 200 milhões de dólares, vindo da Microsoft. Longe de ser um nome familiar para o consumidor comum, a Nvidia provou nos bastidores que era uma peça cada vez menos dispensável, fazendo lançamentos de produtos e até aquisições.
Em janeiro de 1999, quase seis anos após a fundação, chegou à bolsa, com cada ação a valer 12 dólares. Quando foi alcançada a marca de 100 dólares por título, Huang tatuou uma versão abstrata do logótipo da empresa. A tatuagem foi o culminar de uma série de promessas feitas num retiro, contou à Fortune em 2017. “Numa das viagens alguém perguntou o que é que fariam quando as ações chegassem aos 100 dólares. Uma pessoa dizia que rapava a cabeça ou pintava o cabelo de azul, outra que fazia um ‘mohawk’ ou algo do género. Outra fazia um piercing no mamilo. Quando chegou a minha vez, já estávamos no nível das tatuagens.” Cumpriu com a palavra, mas não terá sido a sua melhor experiência. “Doeu mesmo muito.”
Atento às tendências, Huang toma uma das primeiras grandes decisões de estratégia em 2006, revelando uma arquitetura de computação aberta a investigadores. Os semicondutores da Nvidia deixaram de estar reservados apenas ao mundo dos videojogos e passaram a ser usados para uma panóplia de indústrias, da defesa à energia, segurança ou mesmo na saúde, arrecadando novos clientes. O próprio Huang admitiu que não antecipava quando é que a condução autónoma ou a IA iriam chegar, mas reconheceu que sempre teve confiança de que vinham aí novas oportunidades. À Fortune, em 2017, Huang falava sobre “um software de inteligência artificial capaz de escrever software para automatizar os processos de negócio.” Antes disso, a Nvidia também tirou partido da expansão da mineração de criptomoedas, onde mais uma vez os componentes da empresa foram alvo de uma expressiva procura.
Se o inverno das criptomoedas teve consequências para a Nvidia, os especialistas acreditam que a febre da IA, que já a empurrou até ao bilião de dólares, continuará a ser risonha para a empresa californiana. “A IA generativa é atualmente o tópico mais importante no processo de desenvolvimento da IA”, contextualiza Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa. “A cotação da Nvidia mais do que triplicou desde novembro [quando foi lançado o ChatGPT] e, atualmente, a sua capitalização bolsista é de quase 1,1 biliões de dólares.” Atualmente os principais acionistas são os institucionais BlackRock e Vanguard, e como acionistas individuais encontra-se o fundador Huang Jensen, que detém menos de 4%, o administrador financeiro Colette M. Kress, e Mark A. Stevens. E já destronou a Intel em termos de capitalização bolsista, ainda que a Intel ainda gere mais receitas (quase o dobro da Nvidia). No mercado de capitais, a Intel vai, no entanto, com uma capitalização de 137 mil milhões de dólares, menos até que a rival AMD.
“Está à frente dos seus concorrentes em inovação”, acredita Paulo Rosa, referindo que “emergiu como líder global em tecnologias fundamentais como realidade virtual, inteligência artificial e robótica avançada”. Além disso, destaca também o “portefólio de produtos diversificado e dinâmico”, com produtos como processadores de PC, comunicações wireless, placas gráficas e hardware/software para o setor automóvel. “Essa diversificação é um ponto forte da Nvidia, ajudando-a a atrair diferentes segmentos de mercado e a reduzir a dependência de qualquer produto.”
Até este ponto do ano, as ações da Nvidia já valorizaram mais de 193%, ao ponto de haver analistas a descrever uma “ascensão meteórica” dos títulos da empresa de semicondutores. “A Nvidia está no centro da explosão da IA deste ano”, diz Jamie Mills O’Brien, gestor de investimentos da Abrdn numa nota aos clientes. “As empresas da internet, numa vertente de consumo à indústria, estão a tentar deitar a mão aos kits necessários para acelerar as suas estratégias de IA. Isto está a acontecer de forma rápida e simplesmente não há [componentes] suficientes para tudo isto.”
A linha H100, atualmente a mais avançada para IA, ronda os 40 mil dólares, mas já tem sucessor. Este mês, a Nvidia anunciou mais um chip para a IA generativa, chamado GH200, com a promessa de que vai conseguir “aguentar os fluxos de trabalho mais complexos da IA generativa, desde grandes modelos de linguagem até sistemas de recomendações e bases de dados de vetores”. Não foram revelados preços para um componente que só chegará ao mercado daqui a quase um ano, no segundo trimestre de 2024.
De menino que foi parar a um reformatório por engano a multimilionário de Silicon Valley
Coincidente com o papel cada vez mais relevante da Nvidia no mundo da IA, também a figura do seu co-fundador e CEO começou a receber cada vez mais atenção. Em 2021, figurou na lista das pessoas mais influentes da revista Time, na área dos inovadores.
Jensen Huang, ou Jen-Hsun Huang, nasceu em Taipei, em Taiwan, em 1963, mas a família, que quis fugir à violência e à instabilidade de Taiwan, emigrou para a Tailândia quando ainda era criança. Mas a falta de segurança que presenciaram na Tailândia levou os pais a enviar Jensen e o irmão para os EUA, para viverem com os tios, recém-chegados a Tacoma, Washington.
Em 1973, os tios de Huang praticamente não falavam inglês. E, quando pensavam que estavam a inscrever os sobrinhos numa escola privada, acabaram por enviá-los para o Oneida Baptists Institute, um reformatório em pleno Kentucky rural. Em 2002, então com 39 anos, Huang contou à Wired que foi o erro dos tios que lhe deu tenacidade e uma ética de trabalho rígida. Os dias de Huang, o mais novo de 150 rapazes, eram passados a esfregar todas as sanitas da ala masculina do dormitório ou a ensinar o colega de quarto, um jovem analfabeto de 17 anos, a ler. Nos intervalos, aprendeu a jogar ténis de mesa com o homem que fazia a reposição das máquinas de venda automática da escola. Desenvolveu o hobby com mestria ao ponto de aos 14 anos figurar nas páginas da revista Sports Illustrated, admitindo que era “extremamente competitivo”.
Mais tarde, trocou a raquete pelos computadores. A família Huang juntou-se em Oregon e, em 1984, concluiu um curso de engenharia elétrica na Oregon State University, trabalhando ao longo de toda a licenciatura. Em 1992, um ano antes de fundar a Nvidia, concluiu o mestrado em Stanford, universidade onde conheceu a mulher, Lori. Ao longo dos anos, o casal, que tem dois filhos, tem-se dedicado à filantropia – em 2010 financiaram um centro de investigação em Stanford, com o nome de Jensen Huang, e, no ano passado, doaram mais 50 milhões de dólares para criar um novo complexo de inovação na Oregon State University.
Curiosamente, Huang é primo de Lisa Su, a CEO da rival AMD. Jensen Huang é seis anos mais velho do que Su. Ambos nasceram em Taiwan e chegariam aos EUA quando eram crianças, mas o facto de as famílias estarem dispersas pelo país justificou o afastamento dos primos.
À medida que a Nvidia cresceu, a fortuna de Jensen Huang foi-se multiplicando. O Bloomberg Billionaires Index refere que ocupa a 32.ª posição dos mais ricos do mundo, com um património avaliado em 38,8 mil milhões de dólares — que já cresceu 181% até este ponto do ano, ou mais 25 mil milhões de dólares. A esmagadora maioria da fortuna de Huang está ligada às ações da Nvidia, onde Huang detém uma participação de 3%.
A “farda” que alguns já querem copiar
Tal como acontece com os CEO de outras companheiras do clube das “trillion dollar babies”, até as indumentárias de Huang passaram a ser alvo de análise. Se Steve Jobs ficou associado à famosa gola alta preta e Mark Zuckerberg à t-shirt cinzenta da marca italiana Brunello Cucinelli, também Jensen Huang já tem uma imagem de marca: o casaco de cabedal.
Em junho, o New York Times (NYT) até dedicou uma análise ao estilo do empresário norte-americano. Com mais ou menos fechos, bolsos e colarinhos diferentes, Huang surge em público com um casaco de cabedal, sempre preto. Um porta-voz da Nvidia contou ao jornal norte-americano que este género de casaco, uma constante independentemente da estação do ano ou do evento, já é usado por Huang “há pelo menos 20 anos”. Até o próprio Huang se descreveu, em 2016, num fórum do Reddit, como o “tipo do casaco de cabedal”.
A acompanhar o casaco, há normalmente uma t-shirt e umas calças pretas, quase como uma farda, para que o empresário “não tenha de tomar tantas decisões”, explicou o porta-voz da Nvidia ao NYT.
O casaco de Huang conquista cada vez mais fãs e até já há retalhistas a vender peças inspiradas no CEO da Nvidia. O site Jacket Pop, por exemplo, vende um casaco com o nome do líder da empresa de chips. “Tal como Huang, também pode usar este casaco para qualquer evento, seja casual ou formal”, é possível ler na descrição do artigo de 105 dólares, onde o estilo do CEO é descrito como “ousado e com muita finesse”. No site Genuine Leather, também é possível encontrar a versão Jensen Huang de um casaco de cabedal, acompanhada de mais fotos do co-fundador da Nvidia durante uma apresentação.
Se o visual de Huang pode nem ser difícil de replicar, o estatuto de líder de uma das sete empresas mais valiosas dos EUA é bem mais difícil de alcançar.