O atual cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, teve conhecimento de uma denúncia de abusos sexuais de menores relativa a um sacerdote do Patriarcado e chegou mesmo a encontrar-se pessoalmente com a vítima, mas optou por não comunicar o caso às autoridades civis e por manter o padre no ativo com funções de capelania. Além disso, o sacerdote continuou a gerir uma associação privada onde acolhe famílias, jovens e crianças, com o conhecimento de D. Manuel Clemente. Tudo, porque, justifica o próprio Patriarcado ao Observador, a vítima, que alega ter sofrido os abusos na década de 1990, não quis que o seu caso fosse público e queria apenas que os abusos não se repetissem.
A atuação do Patriarca de Lisboa contraria tanto as atuais normas internas da Igreja Católica para este tipo de situações, que determinam a comunicação às autoridades civis de todos os casos, como os apelos repetidos feitos quer pela comissão independente liderada pelo psiquiatra Pedro Strecht quer pela Polícia Judiciária para que todos os casos, até aqueles que já se encontrem prescritos no plano judicial, sejam comunicados às autoridades, uma vez que a probabilidade de repetição deste tipo de crimes ao longo do tempo é consideravelmente elevada.
De acordo com informações recolhidas pelo Observador, os dados sobre este caso em concreto contam-se entre as mais de 300 denúncias já recebidas pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa — e o nome deste sacerdote é também um dos sete que já se encontram nas mãos da Polícia Judiciária para serem investigados.
Porém, foi preciso que passassem mais de duas décadas para que os eventuais crimes, que foram comunicados à hierarquia da Igreja Católica ainda durante a década de 1990 (e, por duas vezes, ocultados da polícia também pelo anterior patriarca, D. José Policarpo), chegassem às autoridades civis.
Um padre “alternativo”
O caso em questão remonta à década de 1990, altura em que o então jovem sacerdote, recém-ordenado, cumpria serviço em duas paróquias da zona norte do distrito de Lisboa.
Nessa altura, de acordo com relatos recolhidos pelo Observador, o padre tornou-se amplamente conhecido na região onde trabalhava, extravasando os limites das suas duas paróquias. Descrito como “uma pessoa que sempre gostou muito do que era alternativo” por um sacerdote que o conhece, o padre atraía às suas celebrações muitas pessoas, sobretudo jovens, das paróquias vizinhas.
“Era muito expansivo e atraiu muita gente pelo seu carisma diferente”, diz a mesma fonte ao Observador, sublinhando que o sacerdote presidia a “missas de quatro horas”, com muitos cânticos, muita guitarra e muito desrespeito pelas regras formais das celebrações. Eram também frequentes os convívios do sacerdote com as crianças e jovens da região, que conheciam o seu estilo alternativo.
Nos primeiros anos, a fama de padre rebelde não manchou a sua imagem. Pelo contrário, renovou a igreja e fez um bom trabalho na paróquia, o que lhe valeu uma muito boa impressão entre os fiéis, tanto da sua paróquia como das paróquias vizinhas.
Foi neste contexto de grande popularidade que surgiram, ainda no início da década de 1990, as primeiras suspeitas relativas a comportamentos estranhos do sacerdote relativamente a crianças. Segundo dados obtidos pelo Observador, foi a mãe de uma criança, à época com 11 anos, que habitualmente convivia com o padre quem reparou, pela primeira vez, nesses comportamentos suspeitos, nomeadamente a excessiva proximidade física, os convívios tardios e até o facto de o padre ir buscar algumas crianças diretamente à escola — em alguns casos, sem o consentimento dos pais.
Alguns anos mais tarde, essa mesma mãe, que já desconfiava dos comportamentos suspeitos do padre, ouviu da boca do seu filho (já no final da adolescência) a confirmação daquilo de que desconfiava: o sacerdote teria cometido abusos sexuais contra menores e o filho tinha sido uma das vítimas.
As reuniões com o patriarca
Quando ouviu o filho relatar-lhe o que tinha sofrido às mãos do padre, a mãe decidiu contactar a hierarquia da Igreja e, através do seu pároco, pediu uma reunião com o então patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, durante a qual a família do menor comunicou ao bispo aquilo que havia acontecido à criança.
Segundo o relato recolhido pelo Observador, esta primeira reunião foi infrutífera, uma vez que a família saiu do encontro com D. José Policarpo com a ideia de que a hierarquia da Igreja Católica não acreditava na denúncia. Seguiram-se vários contactos entre a família e a hierarquia do Patriarcado de Lisboa, que incluíram conselhos para que a mãe da criança tivesse acompanhamento clínico. Já depois, em 2002, o sacerdote saiu das paróquias onde trabalhava.
O Observador questionou extensamente o Patriarcado de Lisboa sobre este caso para obter explicações sobre o modo como a hierarquia da Igreja Católica lidou com a denúncia. Inicialmente, D. Manuel Clemente informou o Observador, através do seu gabinete de imprensa, de que não estaria disponível para uma entrevista presencial, mas mostrando-se disponível para responder por escrito às perguntas formuladas pelo jornal. O Observador enviou um conjunto de 11 perguntas detalhadas sobre o caso ao Patriarcado de Lisboa — mas a maioria delas ficou sem resposta. Ainda assim, o gabinete de D. Manuel Clemente confirmou a existência do caso.
“O Patriarcado de Lisboa confirma que recebeu, no final da década de 1990, uma queixa contra o padre […] por alegados abusos sexuais. Na altura, foram tomadas decisões tendo em conta as recomendações civis e canónicas vigentes”, confirma a instituição. O Observador voltou a questionar o Patriarcado de Lisboa para perceber quais as decisões tomadas na época, mas foi informado telefonicamente pelo gabinete de imprensa do Patriarcado que D. Manuel Clemente não pretendia dar mais respostas ao jornal.
Sem respostas por parte da hierarquia, restam os anuários da Conferência Episcopal Portuguesa, consultados pelo Observador na Biblioteca Nacional de Portugal, para ajudar a traçar o percurso do sacerdote em questão. Segundo esses anuários, o padre trabalhou naquelas duas paróquias até ao ano 2001. No anuário de 2002 já surge com novas funções de capelania, sem paróquia atribuída. O padre manteve-se apenas com essas funções durante duas décadas, e ainda é essa a informação que consta do anuário católico mais recente.
Durante as últimas duas décadas, o sacerdote não teve qualquer serviço paroquial, mantendo-se apenas como capelão. Fica por esclarecer se o afastamento do trabalho paroquial e a atribuição de uma capelania são as tais “decisões” tomadas pelo Patriarcado de Lisboa na década de 1990.
Por outro lado, de acordo com uma fonte ouvida pelo Observador numa das paróquias que o padre abandonou em 2002, a ideia que prevaleceu entre a população quando o sacerdote foi afastado foi a de que o padre estaria a ser punido pela sua rebeldia, que atraía às suas missas os paroquianos das paróquias vizinhas — onde os outros párocos estariam descontentes com a influência exercida por aquele sacerdote na região. Terá, inclusivamente, circulado em 2002 entre a população um abaixo-assinado para que o padre não abandonasse as paróquias.
Depois da saída do sacerdote das paróquias, a mãe que havia denunciado o caso ao Patriarcado voltou a reunir-se com D. José Policarpo. Nessa nova reunião, o cardeal-patriarca terá confirmado à mãe a denúncia dos abusos e revelado que o sacerdote estaria a ser submetido a um tratamento. O Observador também questionou o Patriarcado de Lisboa sobre este assunto, mas o gabinete de D. Manuel Clemente recusou responder.
A associação à margem da igreja, mas que é quase uma paróquia
Quando deixou o trabalho paroquial, o sacerdote não largou definitivamente o trabalho de proximidade com as populações, uma vez que não se limitou a cumprir o seu trabalho nas funções mais discretas em que o Patriarcado o colocou. Pouco depois de abandonar as paróquias, o sacerdote criou uma associação privada que tem como objetivo acolher famílias, crianças, jovens e idosos num grupo cristão.
Como explicou ao Observador uma fonte que testemunhou o processo de criação da associação, o sacerdote instalou-a num terreno na zona norte do distrito de Lisboa. A organização desenvolve atividades que podem ser comparáveis, na prática, às de uma paróquia, incluindo celebrações semanais e atividades de formação. Porém, embora seja uma organização legal, não é uma instituição católica no sentido estrito, na medida em que não foi fundada segundo as regras do Direito Canónico — não há rasto da associação no anuário da Igreja Católica.
Isto significa, em termos práticos, que aquela associação não está sob a jurisdição da Igreja Católica. Nenhum bispo tem autoridade sobre a organização e também não se aplicam as regras eclesiásticas que se aplicam a todas as outras instituições da Igreja. Ainda assim, a Igreja conhece bem a organização.
“O Patriarcado de Lisboa tem conhecimento” da existência da associação, que é “uma organização não canónica”, disse o Patriarcado de Lisboa em resposta ao Observador. Por responder ficaram várias perguntas relevantes sobre a situação desta organização, incluindo: o patriarca tem algum tipo de jurisdição sobre as atividades que ali ocorrem? Se sim, tudo opera normalmente como noutra paróquia? Se não — e sendo a organização do conhecimento público —, já foi feita alguma intervenção no sentido de regularizar o funcionamento da instituição? Tendo em conta que se trata de uma instituição com contacto com crianças, jovens e famílias liderada por um padre do patriarcado, as disposições relativas à proteção de menores e adultos vulneráveis em vigor no patriarcado aplicam-se? De que modo são fiscalizadas?
O encontro com D. Manuel Clemente
Depois da saída do padre das paróquias em que trabalhava, o caso ficou adormecido debaixo do tapete durante cerca de duas décadas. Na altura em que o sacerdote abandonou as paróquias, o atual patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, era bispo auxiliar de Lisboa (cargo que ocupou entre 1999 e 2007), mas não é claro qual o nível de conhecimento que tinha do caso.
De qualquer modo, não pode dizer-se que a história tenha ficado definitivamente enterrada no passado.
Em 2019, o Papa Francisco chamou os bispos de todo o mundo para uma cimeira em Roma para debater o assunto dos abusos de menores na Igreja e, na sequência dessa reunião decisiva, foi determinado que todas as dioceses do mundo teriam de criar, até ao verão de 2020, uma comissão de proteção de menores — e o Patriarcado de Lisboa foi o primeiro a avançar com uma comissão desse género em Portugal, em abril de 2019, ainda antes de a obrigatoriedade ser imposta a todas as dioceses. Nessa altura, mais de duas décadas depois de o caso ter sido denunciado a D. José Policarpo, a mãe da vítima convenceu o seu filho a reunir-se com o novo patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, para partilhar o seu caso.
A reunião aconteceu já depois de 2019, numa altura em que a Igreja estava a mudar os seus procedimentos internos para lidar com denúncias de abusos de menores — com D. Manuel Clemente a afirmar reiteradamente em público o seu apoio a uma maior transparência da Igreja em relação às denúncias de abusos.
Igreja. Comissão Independente estima terem existido acima de 1500 vítimas de abuso sexual
Em resposta ao Observador, o Patriarcado de Lisboa confirmou que a reunião aconteceu, embora não tenha esclarecido a data do encontro, e explicou porque não fez nada em relação ao caso. “O atual Patriarca encontrou-se com a vítima, que não quis divulgar o caso, mas sim que não se voltasse a repetir. Até este momento, o Patriarcado de Lisboa desconhece qualquer outra queixa ou observação de desapreço sobre este sacerdote”, explicou o gabinete de D. Manuel Clemente em resposta ao Observador.
Assim, o padre manteve-se nas funções que tinha e continuou a trabalhar na sua associação, com conhecimento do Patriarcado de Lisboa. Em todos estes contextos, o sacerdote continuou a contactar com crianças e pessoas fragilizadas — e por vezes até regressou às paróquias onde trabalhou há duas décadas, para visitar os antigos paroquianos e até para celebrar missas quando os atuais párocos não tinham disponibilidade.
Ao mesmo tempo, durante todos estes anos, o sacerdote cultivou alguma presença mediática, reforçando o carisma que já lhe era conhecido — e frequentemente invejado — nas paróquias onde trabalhou na década de 1990.
Regras da Igreja mandam denunciar todos os casos à polícia
Os detalhes desta história levantam sérias dúvidas quanto à atuação do Patriarcado de Lisboa em diferentes momentos.
Em primeiro lugar, logo na década de 1990, D. José Policarpo recebeu a denúncia e nada fez em relação a ela, à exceção das tais “decisões” não esclarecidas pelo Patriarcado de Lisboa — e que, a julgar pelos arquivos do anuário católico, parecem ter-se limitado a uma mudança de funções do sacerdote. Na época, contudo, as disposições canónicas e civis em relação aos crimes sexuais contra crianças eram diferentes. No plano canónico, ainda não tinham acontecido os escândalos de Boston, da Irlanda, da Austrália e do Chile (entre vários outros), que determinaram uma mudança radical de atitude da Igreja Católica em relação à crise dos abusos sexuais. Até então, era comum que as denúncias de abusos fossem desvalorizadas internamente e resolvidas com transferências geográficas.
Por outro lado, também no plano da lei civil, os crimes sexuais contra crianças eram na década de 1990 interpretados de modo muito mais permissivo. Como tem explicado várias vezes em público o juiz conselheiro jubilado Álvaro Laborinho Lúcio, que foi ministro da Justiça entre 1990 e 1995 e hoje integra a comissão independente que está a investigar os abusos de menores na Igreja portuguesa ao longo da história, foi só na reforma do Código Penal de 1995 que os crimes sexuais passaram a ser crimes contra as pessoas e deixaram de ser considerados sob os conceitos de respeito pela moralidade sexual.
Este contexto, até certo ponto relevante para enquadrar a inação de D. José Policarpo na década de 1990, não se aplica nos dias de hoje a D. Manuel Clemente.
No plano canónico, a Igreja Católica já tem regras muito claras sobre como os bispos devem lidar com denúncias de abuso sexual. Na sequência da cimeira de fevereiro de 2019 (de onde surgiu a ideia das comissões diocesanas), o Vaticano publicou um detalhado manual para os bispos que se vejam confrontados com relatos de abuso. Uma das grandes novidades desse novo manual foi a obrigatoriedade de comunicação à polícia de todos os casos que cheguem ao conhecimento do bispo, mesmo nos países em que não exista uma obrigação legal de denúncia de crimes, como em Portugal. Aliás, apesar de a lei não impor a queixa, recentemente o Ministério Público acusou um padre de Samora Correia precisamente pela omissão de denúncia. Ainda assim, o documento do Vaticano é claro: “Mesmo na ausência de uma explícita obrigação normativa, a autoridade eclesiástica apresenta denúncia às autoridades civis competentes, sempre que o considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos”.
Pároco de Samora Correia acusado de omissão por ocultar abusos de menores cometidos por catequista
Neste caso, a comunicação à polícia seria necessária para proteger eventuais outros delitos, uma vez que o sacerdote continuava em funções em contextos onde tinha contacto com crianças e jovens. Mesmo nos casos em que o crime já prescreveu, as situações de abuso devem ser comunicadas à polícia, segundo têm defendido a Polícia Judiciária e a comissão independente.
Como o Observador já noticiou antes, logo no início deste ano, quando a comissão começou o seu trabalho, a PJ alertou os membros do grupo de trabalho de que deveriam ser remetidos para as autoridades não apenas os casos que ainda pudessem ser investigados pela justiça civil, mas também os mais antigos, eventualmente prescritos, já que os suspeitos podiam continuar a praticar crimes. Raramente um predador sexual comete apenas um crime ao longo da sua vida, terão dito os elementos da PJ a Pedro Strecht numa reunião de trabalho.
Mais recentemente, numa entrevista ao jornal Público, o pedopsiquiatra que dirige a comissão independente reiterou a preocupação e explicou que até já entregou alguns nomes de padres à Polícia Judiciária. “Há um facto que preocupa a Comissão e que é o seguinte: nós podemos ter o testemunho que revela um alegado abusador num crime que aconteceu há mais de 20 anos, mas, a ser verdade, há um alto risco de prossecução do mesmo crime porque os abusadores, uma vez abusando, têm grande probabilidade de o continuar a fazer”, disse Pedro Strecht.
O Observador sabe que o nome deste padre é um dos sete que já chegaram às mãos da Polícia Judiciária apesar de o crime denunciado já ter prescrito, mas sem nomes de vítimas ou sem outros casos conhecidos, a PJ dificilmente poderá avançar com uma investigação. O Observador sabe, porém, que até à data nunca foi feita uma queixa contra este padre e que ele nunca foi investigado por qualquer crime.
Em abril deste ano, numa altura em que a comissão independente já tinha recebido 290 testemunhos de abusos de menores, D. Manuel Clemente garantiu que os membros do clero estavam “muito especialmente atentos” à questão da proteção de menores na Igreja. “Aqui estamos, com plena consciência e compromisso, para reconhecer e corrigir erros passados, pedir perdão por eles e prevenir convenientemente o futuro”, disse o cardeal na Sé de Lisboa.
Ainda assim, quando confrontado com a história que lhe foi apresentada pessoalmente pela vítima, D. Manuel Clemente optou por manter o silêncio que durante mais de duas décadas se abateu sobre o caso, mantendo o sacerdote em funções apesar de conhecer a denúncia.
Agora, de acordo com o Patriarcado de Lisboa, o padre está “hospitalizado e cessou funções”. O Observador tentou sem sucesso contactar o padre visado, dado o estado de saúde em que se encontra. O jornal contactou também a comissão independente, mas o seu coordenador, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, disse que a comissão não comenta casos concretos devido ao respeito pelo anonimato dos denunciantes.