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Depois de duas décadas a trabalhar no Hospital de São João, como especialista em medicina interna e intensiva, Paulo Mergulhão, 48 anos, decidiu sair para o setor privado. “Achei que estava na altura de dedicar mais tempo à família e de ter mais tempo disponível”, explica o médico, de 48 anos, após mais um turno de 24 horas na unidade de cuidados intensivos que coordena atualmente, no Hospital dos Lusíadas, no Porto. Saiu do São João em outubro de 2019, a Covid-19 chegou logo a seguir — “Saiu-me o tiro pela culatra claramente”, graceja, visivelmente cansado.
Desde que a pandemia começou, lotando as UCI de todo o país, tornou-se cada vez mais difícil poder contar com a disponibilidade dos colegas do público, que iam ao hospital ajudar nas escalas. Resultado: com apenas dois médicos intensivistas no quadro e com o hospital a reservar para a Administração Regional de Saúde do Norte 28 de um total de 100 camas de internamento para doentes agudos, Paulo Mergulhão, que é também secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, está a fazer turnos de 24 horas dia sim, dia não.
Nesta terceira vaga, e ao contrário do que aconteceu ao longo da primeira, mais significativa na região Norte, não está a tratar doentes Covid, mas de todos os outros, que de alguma forma viram o acesso aos cuidados de saúde dificultados pela pandemia. “A verdade é que as outras doenças não desapareceram e também precisam de tratamento, portanto estas camas têm tido uma rotação muito significativa e é uma carga de trabalho muito importante”, explica o médico ao Observador. “É importante haver lugares onde estes doentes possam ser admitidos e tratados da mesma forma que os outros.”
O que não significa, confessa, que pessoalmente não lhe custe não estar estar ao lado da grande maioria dos colegas de especialização, sabendo os recursos humanos são “um bem muito escasso” e que há uma pandemia para combater. Como não se pode “dividir”, assume que o seu papel é outro — e nem por isso será de menor importância. “Tanto nos doentes que internamos aqui diretamente, como nos que vêm transferidos, uma coisa que temos visto é a descompensação de doenças crónicas. Insuficiências cardíacas, insuficiências respiratórias crónicas, diabetes”, descreve.
Ponderado, Paulo Mergulhão defende que o tempo não deve ser de polémicas nem de críticas, mas de união de esforços — e isso significa ter hospitais públicos e hospitais privados todos a remar para o mesmo lado e a fazer o que quer que seja necessário. “O esforço que todos nós temos de fazer — e isto não é reservado aos médicos nem aos enfermeiros, é para todos mesmo —é tentar cumprir o melhor possível aquele que é o nosso papel.”
Neste sentido, agradece a ajuda alemã mas duvida da pertinência da solidariedade austríaca — e não apenas pelo risco que pode representar a transferência de doentes em estado crítico de Lisboa para o Porto; quanto mais para unidades a milhares de quilómetros de distância. “Seria inaceitável haver uma situação de rutura numa região do país e o resto do país — independentemente de ser setor privado, setor público, setor social —, tendo capacidade de dar resposta, não dar essa resposta”, argumenta o especialista. “Acho que transferir doentes para fora do país havendo ainda capacidade de resposta interna é um contrassenso.”
Ao longo deste último ano temos falado muito sobre a luta dos profissionais de saúde portugueses contra a Covid-19 e temos visto inúmeras reportagens dentro de hospitais e unidades de cuidados intensivos — sempre do Serviço Nacional de Saúde. O que é que se passa no setor privado?
O setor privado, com avanços e recuos próprios de uma situação para a qual ninguém estava preparado, tem dado o seu contributo, que me parece um contributo relevante. O meu hospital, neste momento, tem 20 e tal camas de medicina, que é uma proporção já muito significativa das nossas camas de internamento, adstritas à ARS Norte, num esforço de tentar descarregar os hospitais daqui da região de doentes não Covid. Este hospital, neste momento, tenta manter-se Covid free, mas a verdade é que as outras doenças não desapareceram e também precisam de tratamento, portanto estas camas têm tido uma rotação muito significativa e é uma carga de trabalho muito importante. Acho que é um esforço relevante. É importante haver lugares onde estes doentes possam ser admitidos e tratados da mesma forma que os outros.
Ouça aqui a entrevista na íntegra.
“Há um risco significativo de o sistema não conseguir dar resposta a todos”
Que tipo de doenças é que vos estão a chegar? E de que zonas? Sei que em novembro estavam a dar resposta às necessidades não Covid dos hospitais de Guimarães, Penafiel, Santo Tirso, Famalicão e São João, no Porto.
Acho que era mais do Santo António, e não do São João, mas, na prática, todos os hospitais da região da ARS Norte podem referenciar para cá doentes, dentro das vagas que temos disponíveis. Houve uma altura em que o Hospital de Penafiel estava bastante sobrecarregado mas isso entretanto, felizmente, melhorou; o Centro Hospitalar do Porto, do Hospital de Santo António, quanto mais não seja por uma questão de proximidade, também tem referenciado alguns doentes. A verdade é que na região Norte — porque estamos numa fase um bocadinho mais avançada daquilo que foi o pico da pandemia e já estamos em decréscimo de casos há algum tempo; e depois, por uma boa organização interna da ARS e dos hospitais que integram a rede — há neste momento uma situação clara de sobrecarga, mas não penso que seja uma situação descompensada. As coisas têm-se gerido de forma sensata.
Quando fala em sobrecarga, e estava a falar nas tais 30 camas adjudicadas à ARS Norte, são 30 num universo de quantas?
Num universo de 100 camas, são 28 que estão adjudicadas e sempre ocupadas com doentes da ARS.
Dizia-me que os Lusíadas Porto neste momento estão Covid free, mas na primeira vaga receberam doentes com Covid.
Sim, tivemos na unidade de cuidados intensivos para aí uma dúzia de casos, e devo dizer que nem todos críticos. Como tínhamos quartos que permitiam o isolamento mais fácil na unidade de cuidados intensivos, todos os doentes, pelo menos na fase inicial, passavam pela unidade. Dessa experiência devo dizer que os doentes Covid, quando chegam à fase de doença crítica, de precisarem de suporte das funções de órgãos, nomeadamente disfunção pulmonar grave, são doentes muito complexos e que realmente representam uma carga de trabalho muito grande para a medicina intensiva. Quando são ventilados invasivamente, ficam muito tempo entubados e ventilados e frequentemente precisam de técnicas de resgate, precisam de ser ventilados de barriga para baixo. Num doente que está sedado, muitas vezes paralisado e com vários tubos e cateteres, essa é uma manobra muito complexa, que gera uma carga de trabalho muito significativa para as equipas e que tem de ser repetida ao longo do tempo. Neste momento a perspetiva para a medicina intensiva, diria para as próximas 4 a 6 semanas, é muito complicada. Há aqui claramente uma desfasagem no tempo, o que se vai passar no próximo mês na medicina intensiva na prática já aconteceu.
As pessoas já estão infetadas.
Estamos a falar dos tais 70 mil por semana que tivemos nas últimas semanas. A nível nacional já estamos numa fase de quase exaustão do sistema.
Apesar disso, desta vez o seu hospital não recebeu doentes Covid. Foi uma decisão do Ministério da Saúde?
Foi uma decisão, julgo eu, do conselho de administração do grupo. Sei que há hospitais privados a tratar doentes Covid, inclusivamente na região de Lisboa. O hospital do grupo Lusíadas de Lisboa tem doentes Covid, tanto privados como doentes da ARS. Eles tiveram necessidade de aumentar de forma muito importante as vagas da unidade de cuidados intensivos e estão numa situação complicada neste momento.
Públicos e privados, cada um cumpre a sua parte
Como médico intensivista, que sabe que os seus colegas vão ter esse tal mês muito complicado pela frente, faz-lhe confusão não estar a participar desse esforço?
Do esforço Covid? Muito pessoalmente, faz. A verdade é que este Hospital Lusíadas Porto é um hospital relativamente pequeno e nós só temos dois médicos intensivistas no quadro, portanto eu participar do esforço fora do hospital implicava fechar a unidade de cuidados intensivos, o que comprometia de forma irremediável a atividade do hospital. Nós não podemos estar a receber 30 doentes de fora ao mesmo tempo sem ter a capacidade de os acudir se alguma coisa correr mal. Portanto é impossível estar em dois sítios ao mesmo tempo, as pessoas não se conseguem dividir assim. O esforço que todos nós temos de fazer — e isto não é reservado aos médicos nem aos enfermeiros, é para todos mesmo — é tentar cumprir o melhor possível aquele que é o nosso papel.
E neste caso não está propriamente fácil do seu lado também, dizia-me, antes de a entrevista começar, que estão cheios de doentes.
Tenho trabalhado em regime dia sim, dia não, e o hospital também sofreu as agruras próprias da Covid-19. Pessoas que vão para casa porque ou tiveram contactos de risco ou tiveram mesmo a doença, ou pessoas que têm de ir para casa porque estão em assistência às famílias; agora com o encerramento das aulas criou-se novamente uma situação de pressão muito grande, estamos a trabalhar numa lógica também de recursos muito escassos. Não queria falar em nome da direção clínica, mas a minha perspetiva é que a nossa equipa assistencial aqui do hospital, sem ser muito grande, tem dado uma resposta espetacular. E com um regime de trabalho que é muito mais intensivo do que aquilo que é habitual num hospital com estas características. A título pessoal faz-me confusão, é verdade, mas não tenho mesmo resposta para isso. É como digo, isso implicava fechar a minha unidade e não é um assunto que consiga ponderar assim.
Quando diz que está a trabalhar dia sim, dia não, isso com turnos, noites?
São turnos de 24 horas. Num regime normal, as unidades de cuidados intensivos privadas funcionam com poucos médicos do quadro e com o apoio de colegas de fora. Fazemos questão, como a maior parte das unidades de cuidados intensivos, de que esse apoio seja prestado por médicos especialistas em medicina intensiva, ou seja, o facto de vir um médico de fora não pode equivaler a um downgrading do padrão de cuidados. E, como deve calcular, os colegas de fora que trabalham connosco têm muita dificuldade em dar-nos disponibilidade de turnos, portanto a nossa construção de escalas é sempre um exercício complexo. E não é só aqui, é em todo o lado. Temos de juntar as poucas disponibilidades que vai havendo e depois eu e o Dr. Alexandre, que é o meu colega do serviço, cobrimos o resto do turno, porque não pode haver períodos de ausência.
Claro. E se são dois, está tudo explicado.
As unidades de cuidados intensivos são serviços de laboração contínua e quem fala de médicos, atenção, fala de enfermeiros, em que o problema é muito semelhante, e em auxiliares de ação médica. Os recursos humanos neste momento são um bem muito escasso, pelo menos na área da medicina intensiva, e admito que nas outras áreas de atividade hospitalar também.
Aliás, esta quarta-feira chega a Portugal a ajuda alemã, que traz essencialmente médicos de cuidados intensivos. Há aqui uma questão: além de médicos vão chegar ventiladores. Como secretário-geral da Sociedade talvez consiga ajudar: temos ouvido que não nos faziam falta mais ventiladores, afinal o que é que se passa?
Acho que neste momento temos um parque de ventiladores ajustado, digamos. Conheço mal esse processo da ajuda da Alemanha mas a impressão que tenho é que, na prática, vão deslocar uma unidade de cuidados intensivos quase pré-montada, portanto deve ser uma decisão de logística para não criar mais confusão; os colegas certamente já estão habituados a trabalhar com os ventiladores que vão trazer. Agora, que realmente houve um aumento significativo daquilo que era o parque de ventiladores nacional no último ano, houve. E neste momento não penso que haja faltas — pelo menos de ventiladores invasivos. Há outros equipamentos que podem ser muito úteis em doentes Covid que eventualmente são mais escassos.
Como por exemplo?
Estamos a falar de oxigenoterapia nasal de alto fluxo e coisas assim mais… digamos que a sua utilização ainda não está tão disseminada como a ventilação mecânica invasiva, portanto muitos hospitais podem não ter a disponibilidade de equipamentos que seria desejável.
Vacinas e outras polémicas: “Não estamos na fase de criar ruído”
Voltando um pouco atrás. Falámos do seu trabalho e da forma como está a funcionar. Porventura será uma das exceções no privado e já terá sido vacinado contra a Covid-19?
A vacinação no privado já começou há mais ou menos uma semana e aqui no grupo Lusíadas começou na segunda-feira.
E já recebeu a sua dose?
Já recebi a minha dose, fui vacinado na segunda-feira.
Fez-lhe sentido este interregno entre a vacinação no público e no privado?
Acho que temos de ser razoáveis nisto. O Hospital Lusíadas Porto é um hospital não muito grande e, como digo, Covid free; para mim é inteiramente lógico que a prioridade vá para os sítios de maior pressão e de maior risco. Não faria muito sentido nós estarmos na “linha da frente” da vacinação, portanto entendo perfeitamente a décalage de tempo que há entre os hospitais que são do sistema nacional de saúde e os hospitais do serviço privado. Sei que houve muita discussão sobre esta matéria e agora, mais para o fim, já começava a haver desconforto de muita gente, o que é compreensível. Mas o esforço de vacinar tanta gente em tão pouco tempo ia sempre ter os seus problemas. E o fornecimento das doses de vacina também não está a vir ao ritmo que inicialmente se previa. Não queria ser deselegante no que vou dizer, mas há alguns disparates sobre a distribuição das vacinas, quer dizer, na conversa sobre corrupção, na maior parte dos casos. Parece-me que é muito boa vontade das pessoas a tentarem não desperdiçar doses, porque o plano inicial pode não ter sido o mais adequado. Quando preparamos doses de vacinas para as administrar, a vida da vacina já preparada é muito curtinha.
São as tais 120 horas? Ou é menos do que isso?
Depende um bocadinho de que vacina estamos a falar, mas depois de preparada acho que é menos.
Ok, é que 120 horas são cinco dias, não é assim tão pouco quanto isso…
São 120 horas em frio. Mas depois as condições locais muitas vezes não são assim tão ideais. Acho que é isso que se está a passar: faltam pessoas e estão a sobrar doses, porque não estivemos bem preparados para dizer quem é o próximo. Tomam-se decisões ad hoc, o que não é o ideal, claramente. No Hospital de Penafiel demitiu-se a direção clínica, o diretor regional do INEM Norte também se demitiu por causa disso, mas quero acreditar que isto não é propriamente corrupção. Acho que é boa vontade de resolver uma situação, que se devia ter evitado de início. Acho natural que as pessoas se demitam, porque as situações deviam ter sido previstas, saltar disto para dizer que é corrupção parece-me um exagero.
Pode não haver dolo mas houve…
Houve falta de preparação. Mas a verdade é que falta de preparação é a nossa história a nível global no último ano. Ninguém estava preparado para esta pandemia.
Sim, mas entretanto passou um ano e as coisas já estarão mais organizadas.
Passou um ano de muito pouco tempo para refletir. Passou um ano de estar a correr atrás do prejuízo. E não é bem um ano de planeamento, é um ano de reação às pressões. Devíamos ter preparado melhor as coisas na altura do verão, sem dúvida nenhuma. Na altura ninguém sabia muito bem quando é que íamos ter as vacinas prontas, portanto admito que houvesse outras prioridades na cabeça de quem tinha a responsabilidade de o fazer. Penso que não estamos propriamente na fase de criar ruído e de fazer análises muito profundas sobre o que tem corrido mal; a fase em que nós estamos é a de cerrar fileiras e de todos tentarmos fazer o melhor, dentro daquilo que nos compete. Acho que o momento de analisar, de pensar no que devia ter sido feito diferente, tem de ser deixado para uma fase mais à frente, em que haja disponibilidade, até intelectual, para pensar nas coisas de forma sensata.
Presumo então que não concorde também com esta discussão ideológica que algumas partes da sociedade e da política têm feito em torno do setor privado e do público.
Confesso que essa discussão ideológica me faz muita confusão. Trabalhei 20 anos naquela que é a minha casa, que é o Hospital de São João. E vim-me embora porque achei que estava na altura de dedicar mais tempo à família e de ter mais tempo disponível — e saiu-me o tiro pela culatra claramente.
Saiu em 2020, certo? Ou já foi no final de 2019?
Em outubro de 2019. A regulação daquilo que é a atividade pública e privada em Portugal decorre da tutela, do Estado, portanto são decisões que todos nós tomamos ao elegermos os nossos governos. Dentro dessa lógica, não percebo muito bem como é que há dúvidas em relação àquilo que deve ser o contributo da medicina pública e da medicina privada. Todos nós somos regulados pelo mesmo organismo, que é o ministério da Saúde, portanto acho que é uma discussão que nesta fase não faz muito sentido. E que, volto a dizer, não entendo bem. Não entendo quais são os bloqueios, quais são os obstáculos para haver uma relação mais eficaz. Se bem que nos últimos tempos, parece-me que por força da pressão da pandemia, as coisas estão mesmo a acontecer. Pelo menos na Grande Lisboa, tenho falado com alguns colegas, quer do setor privado, quer do público, e a pressão está a ser mais ou menos idêntica nos dois lados, estão todos a dar o contributo possível e aquilo que conseguem.
Os “outros doentes” e as ajudas internacionais
Tem ideia como estão as coisas nestas unidades? O Hospital da Luz abriu uma enfermaria para servir os doentes do Amadora-Sintra, é uma coisa completamente nova.
Sim. Tanto quanto sei, tanto nos hospitais públicos como nos privados, neste momento a situação em Lisboa é de uma sobrecarga muito, muito significativa; é de gestão, nem vou dizer diária, mas de hora a hora, das vagas disponíveis. E com algum cansaço acumulado às vezes também se perde um bocadinho o discernimento. Às vezes há situações muito difíceis de gerir: como disponibilizar os recursos, que são muito escassos, ou escolher quem é o próximo doente a ter acesso a uma vaga de medicina intensiva. Não tem sido um exercício fácil. Há uma estrutura, que é a Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional da Medicina Intensiva, que tem feito um trabalho notável nessa área de centralizar um bocadinho aquilo por ARS.
Centralizam essas decisões sobre quem é que acede a essas vagas ou não?
É isso. Foi uma conclusão a que nós já há bastante tempo chegámos: esse tipo de gestão centralizada de vagas era necessária. A comissão tem feito esse esforço de saber quais são as vagas disponíveis, ou previsivelmente disponíveis, nos diferentes hospitais das ARS, e quais são os hospitais mais sobrecarregados em termos de doentes à espera ou com necessidades mais dramáticas. E depois faz essa distribuição de vagas da forma mais racional possível. É um trabalho angustiante para quem tem de o assumir, não há dúvida nenhuma disso.
São as pessoas que têm o poder de escolher quem tem uma oportunidade ou não…
Não é o poder, é a responsabilidade.
É como nos super-heróis, com grande poder vem grande responsabilidade.
Acho que o termo super-heróis não se deve aplicar neste contexto. Não se devem criar falsas expectativas em relação ao que as pessoas são ou não capazes de fazer. E acho que as pessoas têm dado — e acho que vão continuar a dar — tudo aquilo de que são capazes. Mas não há super-heróis, não há pessoas com capacidades sobre-humanas. Há pessoas a fazer esforços muito para além daquilo que seria expectável e exigível — e é importante reconhecer isso —, mas também temos de ter a noção de que as coisas não esticam até ao infinito. E que há um risco significativo de o sistema não conseguir dar resposta a todos.
E isso não será apenas na zona de Lisboa mas a nível nacional, porque vamos sempre tentar distribuir esse peso?
Exatamente. Seria inaceitável haver uma situação de rutura numa região do país e o resto do país — independentemente de ser setor privado, setor público, setor social —, tendo capacidade de dar resposta, não dar essa resposta. Penso que isso seria incompreensível. É claro que transferir um doente, principalmente um doente crítico, ao longo de distâncias muito grandes — sei lá, transferir um doente de Lisboa para o Porto —, nunca é um exercício fácil e é preciso pensar muito bem em termos de relação risco-benefício porque, por muito bem que a coisa seja planeada, acresce risco para o doente. Dito isto, se não houver outra solução, temos todos de nos organizar para garantir que isso aconteça da forma mais segura e eficaz possível.
E quem diz Lisboa-Porto, diz Lisboa-Viena, por exemplo?
Viena?!
Como é que acha que pode resultar esta ajuda do governo austríaco?
Sobre essa história da transferência de doentes para a Áustria só tenho ouvido falar nas notícias, portanto a informação que tenho é muito insuficiente. Primeiro, acho que transferir doentes para fora do país, havendo ainda capacidade de resposta interna, é um contrassenso. Depois, acho que mesmo em termos de cuidados aos doentes, e mais do que isso, às famílias, também nos coloca problemas que têm de ter resposta. Muitos dos doentes, ou uma proporção significativa dos doentes que têm de ser tratados em medicina intensiva neste contexto da Covid, infelizmente vão acabar a falecer e os que forem para a Áustria não vão estar protegidos desse risco. Ainda não percebi muito bem se as famílias vão acompanhá-los, se têm acesso a visitas, se vão conseguir ver os doentes numa fase muito complicada da vida. Depois vai pôr-se inevitavelmente a questão da barreira da língua. Um doente português acordar na Áustria numa unidade de cuidados intensivos de forma imprevista não será propriamente fácil… Separo um bocadinho as coisas: com todas as críticas que se lhe possam fazer, entendo a oferta alemã de deslocar para cá uma equipa como um gesto de boa vontade, que não vejo minimamente com maus olhos. Não estou a dizer que seja má vontade da Áustria, mas estarmos a transferir doentes a milhares de quilómetros de distância não percebo bem. Não sei como é que está pensado, mas o próprio exercício logístico da transferência… Transferir um ou dois doentes é uma irrelevância, não é isso que nos vai ajudar. Transferir um volume significativo de doentes, até pela parte logística, não vejo que possa ser uma oferta que vá acrescentar uma ajuda significativa, sinceramente.
Neste momento o que é que acha que podia ser uma ajuda significativa?
Acho que a grande ajuda que podemos dar é quebrar a transmissão. Se nós não formos capazes de ir a montante do problema e de deixarmos de ter o número catastrófico de casos que temos tido, a situação não vai melhorar. Isso passa por não fazer ruído, seguir as recomendações da Direção-Geral da Saúde e perceber que estamos a lidar com uma doença nova, portanto as recomendações, por necessidade, vão mudar ao longo do tempo. É preciso perceber que, se nós no início não recomendávamos máscaras, é porque a melhor evidência que tínhamos ia nesse sentido, e que se eventualmente vamos mudar a recomendação para máscaras com uma capacidade de filtração diferente, é porque a evidência científica que temos disponível neste momento sugere que essa é uma boa estratégia. E quem fala sobre máscaras fala sobre o plano nacional de vacinas, ou sobre estratégias de higienização das mãos. Não estou envolvido na elaboração destas recomendações, portanto acho que sou neutro naquilo que vou dizer, mas é muito fácil criticar a posteriori as decisões que se tomam com base em conhecimento muito insuficiente. Como disse, acho que não estamos nessa fase. Qual é a melhor coisa que podemos fazer? Controlar a incidência de novos casos. No fim, é isso que nos vai ajudar a controlar isto. Felizmente, nos últimos dias parece que estamos finalmente a conseguir diminuir os números de novos casos.
Estamos a diminuir agora, o impacto nas unidades de cuidados intensivos vai acontecer umas semanas mais à frente, isso significa que vamos conseguir voltar a respirar de alívio quando?
Se esta trajetória dos últimos dias se mantiver — passámos de 10/12/13 mil casos por dia para 5/6 mil casos por dia —, espero que o panorama nos cuidados intensivos comece finalmente a acalmar daqui a 4/5/6 semanas. Diria que as próximas seis semanas ainda vão ser de muita sobrecarga.
Entretanto, ficam todas as outras doenças. O que é que lhe está a aparecer? As pessoas estão a chegar tarde?
Tanto nos doentes que internamos aqui diretamente, como nos que vêm transferidos, uma coisa que temos visto é a descompensação de doenças crónicas. Insuficiências cardíacas, insuficiências respiratórias crónicas, diabetes… Não há dúvida nenhuma de que a pandemia criou um problema de acesso aos cuidados de saúde. Isso obviamente é muito mais gravoso nas pessoas que têm doenças crónicas ou doenças evolutivas. Ainda ontem ouvi o diretor da oncologia do Santo António a falar sobre isso, e que há um problema grave neste momento com o diagnóstico precoce de doenças oncológicas. É claro que este tipo de doenças, quanto mais tarde forem diagnosticadas, mais difícil é o seu tratamento. Ainda há bem pouco tempo o ministério da Saúde mandou suspender tudo quanto fosse atividade cirúrgica não urgente nos hospitais. É claro que isso vai criar um número muito elevado e muito importante de pessoas que necessitam de tratamento, seja por doenças não letais, mas que comprometem a qualidade de vida, seja por doenças potencialmente fatais. E estou só a falar da atividade cirúrgica, se formos para o lado das patologias médicas, estamos a acumular e a empurrar para a frente muito trabalho que vai ter de ser feito pelo sistema nacional de saúde — e não só pelo serviço nacional de saúde. Quando tivermos a pandemia controlada e, mais cedo ou mais tarde, havemos de ter, vamos ter de lidar com as consequências das coisas que necessitavam de ter sido feitas e não foram, por absoluta falta de capacidade. E isto vai ser um problema transversal ao mundo todo. Quando se dá uma ordem tão categórica como mandar parar tudo quanto é a produção cirúrgica dos hospitais, é claro que se vai criar uma pressão assistencial muito grande. As doenças não desaparecem por decreto.
Mas era inevitável?
Era, da minha perspetiva, era inevitável. Não estou a fazer uma crítica, temos de ter a noção da realidade.
Como é que perspetiva o próximo ano, ou os próximos anos, para todos estes doentes?
Não perspetivo. Estou a acabar de preparar uma reunião sobre controlo de infeção para apresentar logo à tarde e uma das coisas que vou argumentar é que é impossível perspetivar o ano de 2021. Estou com muita esperança de que consigamos finalmente — entre implementar o programa de vacinação e cumprirmos de forma rigorosa o nosso papel e conseguirmos achatar a curva — ter uma incidência de novos casos gerível. Mas em maio ou junho nós também achámos que o problema estava ultrapassado; e na segunda fase, em dezembro, achámos que o problema estava controlado. Apesar de já termos a noção de que janeiro iria ser complicado, ninguém estava à espera deste drama de novos casos. O que temos visto é que esta pandemia tem muita capacidade de nos surpreender e de nos trocar as voltas. Acho que a situação das novas variantes que têm surgido é preocupante. Felizmente aquela que está em circulação mais alargada, a famosa estirpe inglesa, parece ser controlável com as vacinas que temos disponíveis.
Mas começam a surgir evidências de que as outras possam não ser, não é?
Não há nada de conclusivo, mas há alguma preocupação sobre isso. É muito difícil criar expectativas concretas de que vamos ter sucesso ou não no controlo da pandemia. Nesta fase acho que mais vale manter uma monitorização muito apertada da situação e não fazer planos, pelo menos ao meu nível, de muito longo prazo. Acho natural que a tutela esteja a preparar os planos A, B e C de recuperação de atividade, mas também temos de ter a noção de que nesta fase há muitas incertezas nesse tipo de planeamento a longo prazo. Por agora tem de ser uma semana de cada vez.