Em Portugal mais de metade da população tem excesso de peso, sendo que um quarto das crianças sofre deste problema de saúde que se tem vindo a agravar. Em entrevista ao Observador, neste Dia Mundial de Combate à Obesidade, o coordenador da Plataforma Nacional contra a Obesidade e diretor do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável, da Direção Geral da Saúde (DGS), dá pistas de como, em todo o mundo, se chegou a este problema de saúde pública. E é preciso recuar muito no calendário.
Com um historial de milhões de anos de carência alimentar, o organismo humano ficou treinado para armazenar energia e não para a gastar. Ou seja, o natural é o homem engordar e não emagrecer. O problema é que o organismo não se alterou, mesmo quando os alimentos passaram a estar mais acessíveis. E o excesso de peso e obesidade começaram a escalar. A isso somou-se no último século o aumento do sedentarismo e o abandono da dieta mediterrânica, no caso de Portugal.
O professor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto fala ainda da responsabilidade das famílias e do Estado nesta luta contra a obesidade e o excesso de peso e desconstrói alguns mitos em torno, por exemplo, do leite.
Mais de metade da população portuguesa tem excesso de peso ou obesidade. Um problema de saúde que atinge mais de um quarto das crianças. Como chegámos aqui?
Talvez começasse pela perspetiva global. Estamos em crer que a obesidade tem vindo a crescer ou a estabilizar nos últimos 40 ou 50 anos em todos os países do Mundo. O que quer dizer que, provavelmente, não há nenhum país no mundo que tenha tido sucesso no combate à obesidade. E por uma razão que me parece simples ideologicamente: os seres humanos na sua evolução de dois milhões de anos lidaram com a carência alimentar, a carência energética. São dois milhões de anos a lutar contra a carência energética e as pessoas que foram sobrevivendo foram aquelas que tiveram capacidade de armazenar, com muita qualidade, toda a energia que tinham em excesso em determinados períodos. Os nossos organismos estão preparados para acumular gordura e energia e não para perder. Somos seres iminentemente obesos. Acontece que nos últimos 60 ou 70 anos passámos a ter excesso de calorias: uma maior facilidade no acesso aos alimentos; produtos que até ao século XVIII eram produtos de farmácia, como o açúcar, passaram a estar completamente disponíveis a um preço baixíssimo e a energia deixou de ser um produto caro. Além disso, com a automação das nossas cidades e o advento da Era Industrial o nosso esforço braçal desapareceu e tornámo-nos sedentários. A balança virou, mas continuamos a ser seres habituados a acumular energia. Estes são fatores que fazem com que em nenhuma sociedade no mundo inteiro a obesidade deixe de ser um problema.
Passando desta visão mais global para o caso específico português. Como é que os portugueses chegaram a este ponto?
Temos tudo o que disse atrás e em duplicado. Os países do Sul da Europa nunca viveram verdadeiramente a Revolução Industrial. As máquinas e o know how apareceram no Norte da Europa. E além de nos ter sido vedado o acesso a essa inovação, vivemos ditaduras que também nos fecharam à Revolução Industrial. Mantivemo-nos sociedades rurais e quando a industrialização finalmente chegou aos países do Sul esses começaram a aspirar a ser iguais aos do Norte, desde logo na comida. Iniciou-se em massa o consumo de manteigas e margarinas e desapareceu um bocadinho a ligação à dieta mediterrânica. Aspirámos a ser citadinos também nos hábitos de locomoção, passando a usar carro para todo o lado. Isso fez com que, de repente, fugíssemos todos da agricultura para as cidades e adotássemos hábitos que fizeram com que ficássemos muito sedentários e muito afastados da dieta mediterrânica.
Sedentarismo esse que foi crescendo.
Sim, e muito também, recentemente, por causa de uma falsa ideia de insegurança. Achamos que as nossas ruas são inseguras e as crianças deixaram de brincar na rua. As crianças estão a viver num mundo muito protegido e com pais com pouco tempo e vontade para partilharem com eles atividade física.
E também com menos tempo para pensar em alternativas alimentares e para cozinhar de forma saudável?
Claramente. Portugal é um dos países onde se vendem muitas revistas sobre culinária, mas há efetivamente muito pouco tempo destinado a questões relacionadas com alimentação. E outro aspeto que contribui para a iliteracia alimentar é a ideia de que se pode poupar na comida quando há dificuldade em poupar no resto. A comida é dos pouco setores da nossa vida onde se consegue fazer poupanças porque tudo o resto praticamente é despesa fixa. E a verdade é que estamos dispostos a gastar 300 euros num telemóvel e não gastamos mais três euros por um produto alimentar.
Já que fala em dinheiro. O excesso de peso está muito associado ao baixo nível socioeconómico. A Organização Mundial de Saúde até fala da necessidade de introduzir medidas que permitam um maior capacitação para adquirir alimentos com baixa densidade energética. O que se pode fazer? Está a ser planeado algo neste sentido?
Durante décadas aquilo que fizemos foi tentar educar as pessoas e tentar capacitá-las. Essa luta tem de continuar. Mas, apesar do esforço desenvolvido nesses países, o combate à obesidade está a ser um insucesso. A ideia, cada vez mais, é que os Estados têm de fazer um esforço para que o ambiente obesogénico à volta das pessoas seja cada vez mais reduzido.
Como?
Desde logo não podemos permitir que se quisermos beber água numa estação de metro tenhamos de ir a uma máquina quando bastava ter água da rede pública. Ou que numa escola seja mais fácil e barato comprar refrigerante do que água ou um croissant seja mais barato do que um pão. Tem de haver capacidade de quem governa algumas áreas para permitir que seja fácil aceder às opções saudáveis. A questão passa por uma alteração radical do espaço urbano e da relação com as pessoas. Podia continuar com os exemplos. Numa praia, as concessionárias não têm obrigação de ter água disponível; num cinema também não há obrigação de haver ofertas saudáveis. As últimas vezes que fui ao cinema estive com uma pessoa a enfrascar-se de pipocas ao lado e a ingerir 300, 400 ou 500 calorias enquanto viu um filme. Os próprios pais quando colocam na lancheira da escola um bolo e um refrigerante estão a fazer com que o ambiente escolar não seja saudável.
A julgar pelas imagens divulgadas esta semana, com rissóis por cozinhar, por exemplo, o ambiente escolar já deixa muito a desejar em termos de alimentação saudável.
Nós temos um bom conjunto de normas para aquilo que é a oferta alimentar nas escolas. O que é que falha? Duas coisas: os concursos são ganhos por empresas que cumprem com as normas, mas como não existe patamar mínimo de custos, muitas ganham com preços a roçar ganhos mínimos. Deveria existir uma contratualização pública mais transparente, que pode variar de região para região, com um teto mínimo que garanta um custo mínimo para matéria-prima. Isso aumentava a transparência e melhorava a qualidade. A segunda questão é que muitas empresas dizem que têm nutricionistas que garantem a qualidade das refeições, mas apesar de terem código de ética esses profissionais obedecem àquelas empresas. Por isso tem de haver maior fiscalização. As autarquias deviam contratar nutricionistas. Sobre os rissóis em específico, acredito que as imagens sejam verdadeiras e mereçam inspeção, mas acho que essa árvore não faz a floresta. Não acredito que aconteçam com regularidade. É preciso dizer ainda que a maior parte das escolas abre, ocasionalmente, espaço para os pais irem lá comer no refeitório e os pais podem participar ativamente na construção das ementas. Agora se me perguntar quantos o fazem com regularidade e quantos lá foram provar a comida… Continuo a achar que a maior fonte de alimentação de má qualidade das crianças são as famílias. Há muitos pais que não querem que os filhos comam peixe ou fruta nas escolas porque depois têm mais fome à noite.
E quanto aos produtos com excesso de gordura, sal e açúcar vendidos nos bares e nas máquinas de vending? O que fazer?
Tal como existem regras bem definidas para os refeitórios, também existem para os bares das escolas e para as máquinas de vending.
Mais uma vez, são orientações…
São orientações e acho que deviam ser obrigações. Mas não sendo, quando há uma má prática os pais devem reclamar. O problema é que há um grande abandono da responsabilidade dos pais nestas situações. Os diretores escolares podem ser chamados à atenção em relação aos produtos vendidos.
Já que estamos a falar destes produtos nefastos à saúde. Não poderia a “fat tax” ajudar a torná-los menos acessíveis?
Não se pode reduzir as medidas à “fat tax”. Isso seria fácil. Além de que há um ponto desde já negativo nessas taxas: podem afetar os cidadãos mais pobres. Agora há uma grande vantagem nestas taxas: elas colocam a indústria debaixo de pressão. Veja-se o que aconteceu com taxa sobre as bebidas açucaradas. Como não há nenhuma indústria que queira perder, o que aconteceu foi que nos últimos meses houve uma modificação brutal, com uma aceleração nunca vista no passado, da composição nutricional das bebidas, sem que as pessoas tivessem dado conta. As empresas já estavam preparadas para estas taxas há muitos anos. As composições das bebidas já estavam todas preparadas para ter logo menos açúcar. Quando foi dado o pontapé de partida houve uma série de companhias que reduziram dos oito para os sete ou seis gramas por 100. Provavelmente as pessoas não reduziram drasticamente o consumo de refrigerantes, o que acontece é que há milhares de toneladas de açúcar que deixaram de ser consumidas.
Se tem essa vantagem porque tarda tanto em avançar a taxa sobre os alimentos com elevados teores de açúcar, sal e gordura?
É que se para o açúcar isto é fácil de fazer, é mais difícil quando implica mudar açúcar, sal e gordura. Mas valeria a pena fazê-lo até porque a maior parte da indústria portuguesa competitiva não se pode contentar em vender para 10 milhões de pessoas. E os consumidores fora de Portugal cada vez estão a suportar menos o excesso de sal. Os italianos já estão a reduzir a quantidade de sal na charcutaria; os gregos a pôr menos sal nos queijos, e há um mercado europeu e mundial a favor da alimentação saudável. Temos de aproveitar isso. Mas claro que qualquer tentativa tem de ser muito discutida.
Até aqui temos estado a falar de maus comportamentos alimentares. Passando agora do 80 para o 8. Começamos cada vez mais a ver as pessoas a preocuparem-se com a alimentação, a cortarem ano açúcar, no sal, nas gorduras, nos hidratos, no glúten, na lactose. Há mil dietas e conselhos. Isto também pode ser perigoso?
Tem-se assistido a um aumento da consciência em torno da alimentação. Há muita gente a constituir-se em grupos da sociedade para promover a alimentação saudável e o consumo de frutos e hortícolas. Isso é uma mudança que vai beneficiar muito o país e estou muito contente por esse movimento estar a acontecer nos últimos anos. A vontade e o interesse de chefs de renome, que começam também eles a ter preocupações com questões de saúde e a sustentabilidade ambiental, também é importante. Mas se, por um lado, a alimentação virou uma coisa sexy, em paralelo os media e outros modelos de comunicação viram aqui oportunidades de negócio e isso fez com que muita gente de repente começasse a escrever sobre alimentação e nutrição e e muitas empresas com interesse de promover determinados produtos se aproveitassem.
E há muita informação errada a circular?
Sim. E neste momento nós, enquanto autoridades de saúde, estamos perante um novo desafio que é ajudar a perceber como é que no meio da torrente comunicacional se pode encontrar algumas ilhas de independência, bom senso e conhecimento científico para tirar dúvidas e ler com qualidade e não ser influenciado pelas tais fake news. Isto merece um interesse redobrado. Precisamos de filtros de bom senso. Seja através do jornalismo, da DGS ou do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA).
Por exemplo, banir o leite da dieta alimentar, por causa da lactose, é uma boa opção?
Existem razões relacionadas com a proteção do bem estar dos animais, que é justa, e há também questões ambientais, na medida em que um excesso de consumo de proteína animal tem um impacto brutal e poderíamos colocar em risco o planeta se consumíssemos todos a quantidade de carne que os ocidentais comem. Isso são motivos justos para algumas pessoas reduzirem as quantidades de carne e de peixe, por exemplo, ou até deixarem de comer carne. Sobre o leite não há informação suficiente, com base em evidência científica pura, para que se recomende a redução do consumo de leite. Quanto muito há trabalhos que relacionam o consumo de leite com um ou outro cancro. Mas sabemos também que é protetor para a doença cardiovascular e não tem relação evidente com outro tipo de patologias. Além do mais o leite é um produto de baixo custo e de alto valor nutricional.
Há quem argumente que somos o único mamífero que bebe leite depois de adulto.
Também somos os únicos mamíferos a falar ao telemóvel em adultos. O organismo do ser humano adaptou-se e deu um salto enorme aqui há uns milhares de anos. Quando esta mutação aconteceu o ser humano começou a conseguir digerir o leite de vaca e as vantagens foram muito evidentes, desde logo ao nível da capacidade física e intelectual. Agora uma coisa que se pode colocar é que à medida que envelhecemos o organismo vai tendo menos capacidade de digerir a lactose. Felizmente temos produtos lácteos sem lactose que já foram convertidos, como os queijos e iogurtes.
E sobre o combate ao glúten?
O número de pessoas com dificuldade em digerir o glúten é diminuto pelo que vejo isto como uma moda. Há um falso conceito relativamente ao pão, que é um dos grandes fornecedores de glúten. O pão é um fornecedor de energia de uma qualidade extraordinária. Se olharmos para os hidratos de carbono que o nosso cérebro precisa para trabalhar e quando olhamos para os fornecedores desses hidratos há uma série de produtos isso sim com aditivos enormes (pastelaria, doces, variações de cereais … ). Mas o pão o que é que tem? Tem o cereal (onde está a percentagem de glúten), água, sal e fermento. Alimento mais puro e genuíno não pode existir. Substituir por outros sem glúten, muitos nem são europeus e cruzam oceanos com carga de poluição enorme. Os gregos, os romanos e os egípcios consumiam pão e agora nós descobrimos que não devemos comer…
Mas fala-se na forma como o pão é feito hoje, com a alteração dos fermentos.
Sim, é verdade. Mas o pão fabricado nas nossas padarias tem o mínimo de aditivos possível. O embalado sim é altamente industrializado.
Caminhando para o final, mas por nunca ser demais repetir. Pergunto-lhe: quais são os principais riscos associados ao excesso de peso e obesidade?
A obesidade é um problema de saúde per si. Está associado à obesidade um maior risco de mortalidade. Quando esta quantidade de tecido adiposo se acumula sobretudo em torno da barriga faz com que processos endócrinos e metabólicos se alterem, nomeadamente a sensibilidade à insulina, o que condiciona muito o aparecimento da diabetes, que é o problema de saúde em Portugal que mais cresce em comparação com a Europa. Um em cada 10 portugueses sofre de diabetes. A obesidade está também muito associada ao aparecimento de uma grande percentagem de cancros. A falta de fibra, por exemplo, está muito associada ao cancro do cólon. E em terceiro lugar as doenças cérebro-cardiovasculares.
E por onde deve começar uma pessoa que queira perder peso?
Para a perda de peso a criação de um balanço energético negativo (ou seja menos energia ingerida e mais gasto com atividade física) é a única condição imprescindível. Sempre reduzindo os alimentos muito densos energeticamente (pastelaria, folhados, sobremesas doces…), as bebidas alcoólicas e bebidas doces e aumentando o consumo de alimentos com grande riqueza nutricional e pouco valor energético como são a maiorias dos hortícolas, por exemplo. Mas o apoio personalizado e objetivos realistas a médio prazo são decisivos.
E o Serviço Nacional de Saúde (SNS) dá resposta no que toca ao tratamento da obesidade?
Não tenho dúvidas que teremos de melhorar a capacidade do SNS não só de diagnosticar e prevenir, mas também evitar apanhar estes doentes no final da linha. As pessoas têm de procurar ajuda e o sistema tem de estar preparado. Vamos lançar um manual que tem como objetivos discutir a terapêutica da obesidade. Apesar de ser muito importante, infelizmente, não existe ainda um medicamento que possa curar a obesidade, mas temos conjunto de práticas que é importante passar aos profissionais de saúde e infelizmente não existia um documento que uniformizasse. Apesar da obesidade ser um problema importantíssimo, o que se passa é que no SNS não existia ainda um documento que consensualizasse as terapêuticas.