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Há 20 anos que as opiniões de Pedro Mexia circulam pelo espaço público. Desde então, o seu nome é constantemente falado quando se pensa num possível ministro da Cultura de um governo de direita. O poeta, crítico literário e cronista diz que é difícil que isso venha a acontecer. Por enquanto, satisfaz-se com o cargo de consultor do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa para a área da cultura. E continua a dar as suas opiniões sobre política e religião e a falar sobre poesia, melancolia e a passagem do tempo. Uma conversa a propósito do lançamento do mais recente livro de crónicas, Lá Fora (Tinta-da-China).
Vamos começar pelas suas actuais funções. Como é que é trabalhar com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa?
Nas funções que desempenho é particularmente fácil porque há uma apetência natural dele pelos assuntos das artes e da cultura. Portanto, não é como se eu tivesse que suprir uma lacuna que o Presidente tem, ou contrabalançar uma falta de apetência dele. Pelo contrário. Procuramos que haja uma atenção democraticamente distribuída pelas várias artes e pelas várias instituições. Desse ponto de vista tem sido muito fácil.
É difícil acompanhar o ritmo do Presidente?
Isso é. É muito difícil. Há um lado grande de imprevisibilidade.
Até porque têm personalidades muito díspares.
Sim. Aliás, o Inimigo Público fez uma coisa muita engraçada quando foi anunciado que eu ia para Belém, a dizer que eu ia tentar converter o Presidente ao lado mais soturno, sombrio, pessimista, urbano-depressivo. Mas não dá. Nem eu tentaria.
Foi o Pedro que se converteu à rapidez, à imprevisibilidade.
Do ponto de vista da dinâmica da Casa Civil todos são convertidos, por definição, à lógica e à velocidade daquele Presidente, e isso não tem que ver com a personalidade de cada um.
Quais são as suas funções? O que é que faz no dia-a-dia?
Na cultura somos duas pessoas, a Helena Nogueira Pinto e eu, e basicamente as três coisas que nós fazemos são responder a cartas e convites, que chegam a toda a hora e por todos os meios de comunicação, tentando, no caso dos convites, propor ao Presidente que vá a esta exposição ou àquela antestreia. Essa é uma das dimensões.
Na resposta aos convites, qual é o critério?
Há o lado do interesse objetivo e da importância objetiva dos eventos e dos artistas, mas também há esse lado de distribuição geográfica e de outra natureza. Seria absurdo que o Presidente fosse sempre ao mesmo teatro ou visse sempre os filmes do mesmo realizador, tem de haver uma distribuição sensata.
E além das respostas aos convites?
Há muitas coisas que partem de sugestões nossas, que não nos chegam através de convites, mas que somos nós que achamos que aquilo é interessante e vale a pena. Depois há todo aquele lado de escrever textos, obituários.
As notas de pesar.
Sim, há muitas notas de pesar.
É o Presidente que diz que tem de se fazer uma nota de pesar sobre determinada personalidade?
Depende, mas passa sempre tudo pelo Presidente. É óbvio que não pode escrever ele tudo o que diz, mas altera muita coisa. Além disso, há uma dimensão de eventos, como a Festa do Livro de Belém, que são eventos feitos por Belém em Belém, mas essa dimensão não tem sido preponderante até agora. Embora aí haja uma entidade que não é tutelada pela cultura, mas que está na Presidência, que é o Museu da Presidência, que tem as suas atividades próprias. Da parte da cultura, o evento mais visível terá sido a Festa do Livro, que teve estas duas edições.
Houve alguma situação em que o Presidente quisesse ir a um evento e em que o tenha desaconselhado a ir?
Deixe-me pensar… Às vezes por causa da duração, sim, isso já aconteceu algumas vezes. Já aconteceu dizer “olhe que este filme tem três horas e meia”. Só porque sei que ele não gosta de espetáculos muito longos. Acontece muitas vezes que há escolha que têm que ver com o facto de o Presidente conhecer os artistas, ou gostar dos artistas. Há também um lado subjetivo, mas nunca desaconselhei.
Houve algum processo de sintonização com esses gostos particulares?
Sim, lá na assessoria da cultura pensamos sempre se aquilo interessará ao Presidente, se será conveniente. Há sítios em que pode ser inconveniente ir por qualquer razão, porque há uma polémica qualquer. Essas coisas normais que são de bom senso. Não têm nenhuma ciência especial. Não tem havido nada de particularmente problemático. O Presidente tem sido sempre bem recebido em todos os lados. Por um lado é assim porque não houve uma conversão à cultura. Ele já costumava ir aos sítios. Isso para mim foi absolutamente fundamental quando o convite, surpreendente, chegou. Sabia que não ia suprir uma lacuna e, como todas as outras pessoas que lá estão, iria tentar ajudar no que me fosse pedido. Até porque, em última análise, este Presidente também nem sequer precisaria de um assessor jurídico, nem de um assessor político. (risos)
O que é que o levou a aceitar o convite? Olhando para o seu percurso, isto é o mais próximo que já esteve do poder político, mas ao mesmo tempo tem uma grande vantagem que é de ser uma função sem o desgaste habitual dos cargos políticos.
Para já não é um cargo de poder.
Daí eu dizer que é o mais próximo que já esteve.
A minha função é aconselhar, é dar uma opinião. Não há nada que seja feito por alguém da Casa Civil que decida as coisas. As pessoas encaminham, sugerem, e o Presidente é que decide.
Daí a pergunta do que é que o levou a aceitar o convite.
Talvez precisamente por isso. Como não tenho nenhum interesse pela política mais “linha da frente”, esta é uma função quase de backbencher, em que faço algo que acho que consigo fazer. A principal razão para ter aceitado foi porque acho que consigo fazer o que me foi pedido e porque foi um convite insólito. Não estava nada à espera. E não é um daqueles convites que apareça duas vezes. Já aceitei convites nessa base, de que não me iriam convidar duas vezes para aquilo.
“Não tenho qualquer ambição”
Muitas vezes, em ocasiões diferentes, se tem falado no seu nome como um potencial ministro da cultura.
Isso não faz sentido.
Mas percebe por que razão isso acontece?
Isso acontece por uma razão muito simples e não tem nada que ver com mérito, tem que ver com escassez. Há muito poucas pessoas na minha área política que tenham uma posição minimamente conhecida e pública sobre questões culturais. Não há mais nada para além disso. Não tenho qualquer ambição, nem eu seria uma escolha acertada. Aliás, nem prevejo que isso possa acontecer [ser convidado]. E o Ministério da Cultura tem uma coisa terrível que é o constrangimento orçamental que torna praticamente impossível que haja um bom ministro da Cultura em Portugal.
Qual é a avaliação que faz deste ministro?
Bom, não vou fazer uma avaliação deste ministro da Cultura. Como imagina, há certas coisas que estou mais inibido de fazer, e sobretudo sendo assessor da cultura não vou fazer uma avaliação política do ministro da Cultura.
Mas dizia que é praticamente impossível haver um bom ministro da cultura em Portugal.
O que vou dizer é que este ministro tem uma vantagem que é a de ser diplomata, uma característica muito importante para lidar com os agentes culturais. Mas, como se viu recentemente em toda esta contestação do teatro e do cinema, a política tem constrangimentos orçamentais, por um lado, e procedimentos burocráticos discutíves, por outro, que não dependem deste ou daquele ministro.
Portanto, acha que, independentemente de quem ocupe o cargo, está condenado a correr mal?
Está condenado a deixar insatisfeitas as pessoas cuja vida é as artes e o espetáculo. Dito assim, acho que é uma apreciação factual. Não é possível apoiar todas as artes que não existem em Portugal sem o Estado – e não vale a pena fugir desta parte, não existem. Cinema, teatro, bailado – estas três claramente. E depois há uma escolha política, quase civilizacional, que é a de saber se se deve deixar morrer aquilo que não sobrevive no mercado. Isso é uma escolha. Eu não tenho problema nenhum, ou tenho problema na medida em que discordo, mas não tenho problema que uma pessoa diga: “Se o mercado não sustenta é deixar morrer”. Pouca gente diz isto, desta forma, mas muita gente o pensa. Se o Estado tem essas funções, mais a função clássica da proteção do património, as contas não aguentam. Quando se diz que o 1% [do PIB] é uma meta utópica – 1%! – percebemos do que é que estamos a falar.
Mesmo que haja pessoas a assumir essa posição, a de deixar morrer aquilo que não é sustentado pelo mercado, a maioria das pessoas concorda que há áreas que precisam do apoio do Estado para existir. A questão não será a de como é que o Estado deve apoiar?
Eu gostava de ser assim tão otimista, mas a verdade é que se nos guiarmos pelo vox populi, pelas caixas de comentários e coisas do género, tudo o que seja despesa do Estado no apoio às artes gera um chinfrim muito superior ao dos estádios inúteis e outras coisas do género. Mas dando como boa a sua impressão, a questão de como é que o Estado deve apoiar é fundamental porque entronca na chamada, bem ou mal, política do gosto. Embora não seja totalmente impossível dizer que há coisas melhores e outras piores, porque há, a verdade é que na área da cultura é tudo mais fluido. Os apoios financeiros do Estado passam por júris, é natural que esses júris, que são muitas vezes pessoas dos respetivos meios, muitas vezes também eles criadores, com uma rede de contactos, de amizades e de inimizades, com uma estética conhecida, suscitem reservas a muitas pessoas, desde logo aos não contemplados pelos apoios, mas também a quem está de fora. Não vale a pena fingir que isso não é um problema. Mas não é um problema irresolúvel se houver regras claras de transparência, de escrutínio. Tem a ver com as regras de composição dos júris e em todas as áreas há um número suficiente de pessoas consideradas independentes e credíveis. Não é impossível constituir um júri assim, mas é muito difícil porque isto é muito pequenino.
Não sendo um problema irresolúvel, também não é um problema que se sinta motivado para tentar resolver a breve prazo em termos institucionais.
É como lhe respondi há pouco: aceitei este convite porque achei que era capaz de desempenhar estas funções. Não creio que fosse capaz de ser ministro da Cultura.
“Não estou a ver que a ultrapassagem do PSD se possa realizar”
Recentemente foi convidado a participar na elaboração do programa do CDS. Há pouco falava das inibições inerentes às funções que desempenha, essa não foi uma delas? Ponderou isso?
Não só ponderei como informei. Isto é, informei antes.
Quem é que o convidou?
Foi a Assunção Cristas, que conheço há vinte e cinco anos e por quem tenho amizade e apreço pelo seu trabalho. Essa foi a principal razão pela qual aceitei, mantendo-me não só independente, mas sem qualquer atividade partidária que não seja a de participar nessas reuniões. Por outro lado, é o partido do meu espaço político e acharam que eu teria algum contributo a dar. Eu também acredito que posso ter, para este efeito concreto, que é o de fazer um programa eleitoral. Aliás, não é bem fazer um programa eleitoral, é o de coordenar os vários contributos quer do partido, quer de independentes, que cheguem ao Adolfo Mesquita Nunes, que é quem está a coordenar esta equipa.
Também tem que ver com este momento, que alguns consideram chave, para a definição do espaço político português, nomeadamente à direita, com a possibilidade de o CDS disputar a liderança desse espaço?
Sim, isso é verdade, mas não pesou para eu aceitar o convite. Reconheço isso que diz e embora eu não esteja nesse grupo para falar especificamente de assuntos culturais, mas é evidente que são assuntos de que falarei, acho que se pode dizer sem grande exagero que com este líder o PSD não está muito inclinado para matérias culturais. Mas isto são tudo raciocínios a posteriori, não tiveram qualquer peso na minha decisão de aceitar o convite.
Peço-lhe então uma leitura política desta situação que se vive à direita.
Bem, eu sou muito amigo da Assunção Cristas, e partilhamos muitas ideias, mas não partilhamos o otimismo. A ideia de que o CDS pode repetir a nível nacional aquilo que aconteceu em Lisboa é uma espécie de pensamento positivo, que acho positivo (risos) numa líder partidária, acho normal que os militantes do CDS estejam entusiasmados com essa hipótese, acho que há potencial de crescimento do partido, mas não estou a ver que a ultrapassagem do PSD se possa realizar. Demonstra um certo espírito ousado e as pessoas valorizam essa ousadia, mas quanto maior for a ousadia maior será a responsabilidade na noite eleitoral.
Falou-se muito no facto de o sistema político português não ter sofrido as mudanças que se verificaram noutros países…
E de facto não sofreu.
…mas também há o risco de, a haver alguma mudança, essa mudança atingir negativamente o PSD e de o CDS eventualmente beneficiar com isso. O que vimos foi o PS a virar à esquerda, mas sem alienar o centro.
É verdade. Aliás, na entrevista que deu esta semana à Visão, António Costa fala várias vezes de moderação e sensatez, e tem havido entendimentos com a direita, nomeadamente em matérias de legslação laboral. O PS tem sabido manobrar isso bem. E neste momento tem condições favoráveis até para ter maioria absoluta, o que diria que não seria pior do que repetir a geringonça.
Mas com essa aproximação do PS aos partidos que estão à sua esquerda sem alienar o centro, não seria de esperar que o PSD virasse à direita?
Vamos lá ver, o PSD está muito traumatizado com o ter sido o polícia mau durante estes anos todos.
Só que o papel de polícia bom já está ocupado.
Pois, é isso. Aliás, o CDS soube muitas vezes exercer essa função. Neste momento, com a saída de cena de Passos Coelho e o desanuviar do clima político e social dos tempos da troika, a fação do PSD que ganhou as primárias achou, e já achava antes disso, que devia ter aquela postura, que eu acho francamente fantasiosa, que é a de ser um partido social-democrata. Não vejo como é que pode ser social-democrata um partido que é membro do PPE, mas vamos usar o jargão, e vamos fingir que eles são sociais-democratas. É claro que há sociais-democratas no PSD, um grupo pequeno de pessoas.
Menos que os liberais?
Eu tinha simpatia pela palavra e pelo chamado liberalismo clássico. Depois fui tendo, por um lado, pouca simpatia pelo que auto-intitulados liberais diziam sobre certas matérias e depois fiquei muito cansado com o chavão do neoliberalismo, que a certa altura já não quer dizer nada – é outra das palavras usadas e abusadas. Às vezes chama-se neoliberal, por exemplo, a alguém que defende os mercados e a sociedade aberta. É uma palavra que quer dizer pouco. Mas acho que há liberais no PSD. Há liberais num certo sector académico e intelectual.
Mas sentem-se representados?
Não se sentem porque é complicado. Há até um setor libertário, no sentido norte-americano, e essas ideias libertárias, do Estado mínimo, são muito atraentes intelectualmente, mas não são muito viáveis, sobretudo num país como Portugal. Não estou a ver como é que de repente, com as necessidades todas que o país tem, o Estado mínimo possa ser aplicável. Portanto, essa fação dos liberais, tal como os esquerdistas ultra, são pessoas que estão sempre dececionadas porque a política concreta não está à altura das suas aspirações intelectuais. Há aí um lado de pureza conceptual. Muitas deles são académicos, estrangeirados, e digo estrangeirados sem nenhum sentido pejorativo, e as ideias são interessantes no papel, mas o país não corresponde às ideias deles.
Não tendo eles uma representação…
Bem, agora há um partido, a Iniciativa Liberal. Não sei quanto isso valerá nas urnas. Presumo que pouco.
O que queria perguntar era se seria natural tentarem apoderar-se do PSD.
Sim, mas quem é que protagoniza isso no PSD? Mesmo o estatuto liberal do passismo no PSD é muito discutido pelos liberais.
Por causa do aumento dos impostos.
Exatamente. E a ideia de que ele seria um liberal nas palavras e não nos atos. Mas também não sei se se pode ser liberal no meio de uma intervenção externa, não sei. Não estudei o suficiente para saber como é que se pode ser liberal quando o país está intervencionado por instituições internacionais. (risos). Há uma frase do Gandhi de que gosto muito. Perguntaram-lhe o que é que ele achava da civilização ocidental e ele respondeu que seria uma boa ideia. Eu acho que o liberalismo seria uma boa ideia, se chegássemos lá, ao momento em que o Estado pode desaparecer das nossas vidas. Não desgosto da ideia, mas não estou a ver um horizonte em que esse tipo de liberalismo seja viável. Em Portugal.
“Dizerem a esquerda ou a direita não me interessa muito. Quem é a pessoa?”
Falemos da sua atividade literária enquanto poeta e cronista, enquanto escritor. Há quase duas décadas que intervém no espaço público.
Sim, comecei a escrever no DNa há vinte anos.
Sente que agora há mais constrangimentos?
Acho que hoje em dia o número de coisas que não se pode dizer é maior, mas não noto isso no que escrevo. Houve períodos em que senti mais isso, mas que não tinha a ver com o ar do tempo. Vejo que há coisas que se podiam dizer tranquilamente que hoje não se pode dizer. Não estou a dizer que isso seja mau, mas não sinto esse clima para o que escrevo.
Quando começou a escrever em blogues, no Coluna Infame, havia uma grande clivagem esquerda/direita, muito por causa da invasão do Iraque. Hoje, com as ditas guerras culturais, parece que o fosso aumentou e que também há uma maior violência.
Essa diferença de clima tem a ver com o desaparecimento dos moderados, nomeadamente a total extinção do centro-esquerda, que em Portugal neste momento é o Francisco Assis. (risos) Não há mais ninguém de centro-esquerda. As posições moderadas tornaram-se mais escassas e, por outro lado, a transferência de boa parte da discussão política para as redes sociais exige uma resposta imediata e, por definição, não mediada, nem adiada para o número seguinte do jornal ou para as cartas ao diretor, significa um aumento da conflitualidade. Esses dois fatores que coincidiram não ajudam a que haja clima de racionalidade kantiana na discussão política. Isso não existe neste momento e se calhar nunca existiu. E se calhar é bom que não exista.
No seu caso, fez o caminho inverso, no sentido de uma maior moderação?
Há duas razões para isso, mas é verdade, sim.
Quando apareceu, a sua imagem era de alguém mais contudente.
Isso tem a ver com dois fatores. Um tem a ver com o que escrevo. Eu tinha a Coluna Infame, que foi pouco tempo, mas teve um grande impacto, e escrevi sobre política, primeiro no Independente e depois no Diário de Notícias. As minhas opiniões políticas eram mais regulares do que são hoje. O segundo fator teve a ver com uma escolha. A certa altura, achei que a violência verbal estava a ser excessiva e com uma coisa que não tem só a ver com o ruído no espaço público. Comecei a aperceber-me que isso estava a afetar as relações pessoais. Comecei a ver isso à minha volta.
Alguma vez aconteceu consigo, alguém afastar-se de si por razões políticas?
Não, mas eu afastei-me. Foi a única vez que me lembro de me ter afastado de alguém por essas razões. Foi uma pessoa que reagiu com algum regozijo ao 11 de Setembro. Regozijo talvez seja excessivo. Terá dito qualquer coisa como “estavam mesmo a pedi-las”. Logo naquela altura. Mas foi a única vez.
Mas fez esse movimento de retração, uma espécie de recuo estratégico.
Não sei se foi estratégico. Foi a ideia de dizer “eu não quero fazer parte disto”. Uma vez vi dois amigos, aparentemente de longa data, a cortarem relações na caixa de comentários de um blogue. Pensei: “isto é grotesco”. Ainda por cima, discordavam de uma qualquer coisinha política.
Essas coisinhas é que são importantes.
Certamente. Depois há uma coisa que é muito engraçada que é essa minha suposta moderação ser elogiada ou criticada por causa do Governo Sombra, por causa do João Miguel Tavares, que não sendo uma pessoa à minha direita parece uma pessoa que está muito mais à direita que eu. Isto acontece por causa do estilo dele, que é totalmente oposto ao meu.
Ele é o polícia mau da direita e o Pedro é o polícia bom?
Não sei, nunca pensei dessa maneira, mas se formos ver assunto a assunto ele não está à minha direita, mas é conhecida a animosidade que ele gera em certos setores, que eu acho que tem a ver com o facto de o estilo condicionar a perceção que se tem das opiniões da pessoa.
Por causa do estilo o João Miguel Tavares parece mais à direita?
Parece mais à direita do que é. Mas ele acha que a moderação e a ponderação são defeitos políticos e eu não, pelo contrário.
É esse estilo que desperta a simpatia da esquerda?
A simpatia por mim?
Sim.
A simpatia da esquerda por mim é consoante, mas isso não me interessa muito porque a minha relação com isso é one to one. Dizerem a esquerda ou a direita não me interessa muito. Quem é a pessoa? Estão a falar de quem?
Mas tem a noção de que, em termos gerais, existe essa simpatia?
Tenho a noção de que sou, nalguns casos, aceite. E a palavra é mesmo essa.
Que sentimento é que isso lhe provoca?
Nenhum.
Quando se recebe elogios do adversário é sempre perigoso. Fica mais alerta?
É como lhe dizia, depende da pessoa. Tanto os elogios como as críticas são coisas que me afetam durante uns minutos. Não fico traumatizado nem eufórico e não fico a pensar de que área política é que vem. Registo, tomo boa nota. (risos) E até há casos de resistências grandes, de instituições. Até me desconvidaram uma vez.
Desconvidaram-no?
Sim, por causa de um texto político que eu tinha escrito. Não tinha nada a ver com o convite. Aconteceu duas vezes e depois disseram-me “isso que escreveu caiu mal aqui nas pessoas e tal.” Não me vou armar em mártir de coisa nenhuma, até porque tenho sido genuinamente bem tratado. O que há às vezes é um paternalismo irritante, que é o apesar de.
“É um gajo de direita…”
“… mas ainda assim come de faca e garfo” (risos) Já é um pequeno passo em frente. Eu esperava que já tivesse passado esse trauma, mas pelos vistos ainda vai demorar um bocadinho.
“Uma pessoa que confunda a literatura com a vida tem uma patologia”
Nesse período de recuo, também se foi afastando da poesia, pelo menos da publicação.
Sim, mas aí por razões totalmente privadas. Literárias, por um lado, e privadas, por outro. Não tem nada a ver com o mundo ou o ambiente.
O que é que o afastou da poesia?
Foi o facto de, em certo momento, ter deixado de acreditar naquilo. Uma pessoa que confunda a literatura com a vida tem uma patologia, mas tem que haver uma pequenina presunção de que há alguma ligação entre as duas. E houve um momento em que eu achei que aquilo era uma espécie de linguagem privada sem qualquer ligação com a maneira como as coisas se passam, como as pessoas se portam. Tive aquela sensação das pessoas que não gostam de poesia e que acham que aquilo são só palavras, que não tem qualquer sentido. Durante seis ou sete anos não sei se escrevi seis ou sete poemas, quando antes escrevia todos os dias.
Foi como perder o ouvido para poesia?
Não foi por achar que os poemas eram melhores ou piores. Foi uma espécie de descrença. É uma coisa muito parecida com perder a fé. Por razões biográficas e outras literárias. E não publiquei porque não escrevi, mesmo.
Isso foi antes de se tornar editor de poesia?
Sim, foi muito antes. Essa foi outra coisa que me surgiu inesperadamente. Entretanto, voltei a escrever poesia, foi uma crise superada, sem necessidade de intervenção externa. Mas devo dizer que isso é algo completamente irrelevante. Alguém estar cinco anos sem escrever não tem qualquer interesse. Ninguém estava à espera dos poemas, ninguém sentiu a falta deles.
E das crónicas, há leitores que sentem falta?
No que eu escrevo, o que tem feedback são as crónicas. É muito interessante, porque o feedback é constante e muito variado, do ponto de vista etário, de assuntos, etc. Uma das reações mais frequentes tem a ver com a variedade temática das crónicas.
Essa variedade é procurada?
É procurada. É natural, mas também é procurada porque quem escreve todas as semanas, se escreve sempre o mesmo artigo não se aguenta, embora tenha a noção de ter certas obsessões temáticas, como toda a gente tem. É curioso que as pessoas escrevem-me de pontos de vista muito diferentes. Umas escrevem-me porque estou a falar de uma coisa que conhecem. Outras porque querem descobrir o autor de uma frase que citei. Outras são pessoas que contam histórias. Talvez o melhor mail que recebi até hoje foi na sequência de uma crónica em que eu falava de um verso de uma canção que dizia “como os canários nas minas”, uma canção [“Maybe Sprout Wings”] dos norte-americanos The Mountain Goats e eu nunca tinha ouvido aquela expressão. A crónica era sobre outro assunto e depois recebi uma carta de um mineiro – ou de alguém a fazer-se passar muito convincentemente por mineiro – a contar como tinha sido a transição do tempo em que usavam pássaros para o tempo em que já não usavam pássaros. O mail era muito melhor que a minha crónica. As crónicas é o que gera mais reações. A crítica literária é irrelevante, não tem impacto nenhum, exceto nos autores e nos editores, mas a crónica sim.
Os leitores não reagem às recensões?
Nunca.
E os autores?
Reagem mais os editores. Mas procuro não saber, até para ter mais liberdade.
Em relação às crónicas deste livro, são muito crónicas sobre lugares.
Eu estava a tentar que cada um destes livros de crónicas tivesse um tema: as crónicas de cinema, sobre livros, biográficas, sobre pessoas que morreram, sobre fait-divers. Quando comecei a fazer a ordenação de textos, percebi que havia vários sobre sítios onde tinha ido e outras sobre sítios que foram importantes para determinadas pessoas.
Nota-se uma diferença na escrita entre os sítios de que tinha alguma memória e os sítios que visita pela primeira vez. Onde é que se sente mais em casa?
Gosto muito de escrever sobre sítios como a Figueira da Foz, onde passava férias, onde depois deixei de ir durante vinte anos e onde depois voltei a ir. Não quero dizer que esses sejam os mais interessantes, mas suscitam mais memórias e emoções do que se estiver a escrever um texto sobre, por exemplo, o Lampedusa e a Sicília, quando nunca fui à Sicília. Não tem a mesma vibração.
Há uns tempos dizia que tem uma péssima memória.
Por isso é que tento escrever sobre isso.
Quando está a escrever sobre esses lugares da memória, há algo que regressa nesse momento?
No momento em que estou a escrever não, mas já aconteceu ler em público esses textos e ficar um pouco afetado. Isso acontece mais na poesia, com aquele mistério das frases que vêm não sei de onde. Em relação às crónicas, sou um fanático do deadline, escrevo sempre com o relógio em contagem decrescente e por isso não tenho tempo para me emocionar com o que escrevo. No entanto, algumas dessas crónicas supõem uma emoção que não é propriamente a característica mais evidente naquilo que escrevo, que geralmente é bastante resguardado emocionalmente.
Naquilo que escreve, bem como na sua persona pública, parece haver uma tensão entre a exposição e a intimidade, entre o lá fora e algo íntimo. Mesmo quando escreve sobre um filme é como se estivesse a falar de uma coisa íntima.
Isso é muito engraçado porque muitas vezes sinto que me exponho demasiado, mas sou muito protegido pelo facto de a interpretação dos textos ser um processo tão bizarro que faz com que ninguém tenha dado por alguns dos textos que achei mais melindrosos, e alguns textos que não eram minimamente biográficos ou melindrosos tenham sido lidos como sendo coisas pessoais ou confessionais. Isso aconteceu-me muito quando escrevi aquela série de textos que está num livro que se chama As Vidas dos Outros, em que escolhia episódios da vida da pessoa de que estava a falar, e que tinha a ver com o facto de na altura ler muitas biografias, e muitos daqueles textos não eram sobre mim e foram lidos assim. E o contrário também aconteceu. Textos que quase me arrependi de os ter enviado por serem tão confessionais e ninguém os leu dessa maneira. Esse nevoeiro interpretativo protege.
Funciona como um biombo?
Isso tem a ver com dois factos verdadeiros e aparentemente contraditórios. O primeiro é a presunção de que aquilo que escrevemos interessa a alguém. É a presunção básica do escritor. Por outro lado, há a ideia de que aquilo que se escreve é importante justamente por não ser apenas sobre nós. Se me disserem que um texto é pessoal e intransmissível então é um mau texto. De alguma maneira, tem de ser transmissível.
Acha que um texto se define pela capacidade de comunicar?
Sim, absolutamente. E até de uma certa clareza, embora talvez não seja a palavra mais adequada, que um texto de jornal tem de ter. Se me disserem que um poema não é compreensível não me preocupa nada. Se me disserem que uma crónica não é compreensível fico a pensar que fiz alguma coisa errada. A não ser que a incompreensão seja propositada. Gosto muito daquela frase que o Cruyff disse numa conferência de imprensa: “se eu quisesse que você percebesse tinha dito de outra maneira.” Gosto muito disso como princípio de escrita.
Destes lugares por onde foi passando, algum alterou a sua maneira de ver as coisas? Nas viagens, levamo-nos sempre a nós, mas houve alguma viagem em que tenha recebido mais do que aquilo que levou? Em vários textos fala dos livros que leu antes de fazer uma viagem.
Há aquelas pessoas que fazem muito bem a mala, eu leio coisas. Não é algo completamente inútil. Há pelo menos dois textos sobre cidades que eu conhecia da literatura e que fui para lá com essa imagem: Maputo e Havana. Em Havana até fui, numa espécie de heroísmo microscópico, com Cabrera Infante na mala, como se fosse um statement. (risos) Era uma cidade que conhecia dos livros e há um certo confronto com aquilo que nós achávamos que sabíamos. Há um texto sobre Auschwitz, onde fui por acaso. Aconteceu estar na Polónia e fui lá, apesar de não ter ido lá com essa intenção. Evidentemente não me trouxe nada de novo, no sentido em que eu sabia o que me disseram lá e o que vi lá, mas senti que, para mim, foi subjetivamente diferente ter visitado Auschwitz do que apenas ter lido livros sobre o Holocausto. Também me aconteceu o mesmo com a Sinagoga de Amesterdão. Foram experiências que não me mudaram como pessoa mas onde houve um sentimento do sítio, como nesses dois casos de lugares históricos. O que também há no livro é textos sobre sítios onde não ia há muito tempo.
Esses lugares têm mais impacto do que os lugares que visita pela primeira vez? Será que uma das coisas que pode definir uma sensibilidade conservadora é sentir mais quando se regressa do que quando se visita um lugar novo?
Uma das coisas que define a sensibilidade conservadora é a melancolia perante o fim das coisas e a mudança. Quando vamos a um sítio muitos anos depois, ele não está igual. Houve ali coisas que, mesmo que tenham mudado para melhor, sentimos como uma ofensa pessoal. Um prédio que já não existe, por exemplo.
Nem que seja pelo simples facto de nos lembrarmos desse prédio.
Justamente. Há um texto em que vou ao café do Império que é sobre essa experiência. Apesar de este livro ser sobre o “lá fora”, a ideia fundamental na minha cabeça é a de tempo, não é a de espaço. O tempo é que é o assunto que me interessa.
E o tempo é sempre interior?
O tempo é sempre percebido interiormente. Não temos uma noção calendarizada do tempo que passou. Há textos em que a mudança interior é percebida pela mudança dos sítios. Alguém pode pensar que não mudou assim tanto, mas vendo a mudança do lugar pensa que também deve ter mudado alguma coisa. Há um poema que se chama “Torre do Relógio”, incluído no Uma Vez Que Tudo se Perdeu, que é um poema sobre isto de que estamos a falar, é sobre a Figueira da Foz e é sobre o relógio da praia, e há um diálogo em que o relógio me conta coisas sobre a minha vida. Há muitas crónicas deste género. E depois há textos sobre factos que a literatura nos ajuda a perceber. Há um texto sobre o massacre de Utøya em que vou buscar duas referências literárias – que são os trolls do Ibsen e o conto do Poe, do Maelström – para tentar perceber algo que não é muito compreensível, que é como é que um massacre daqueles acontece naquele país e tentar encontrar uma certa mitologia cultural que, de certa forma, explique aquilo.
Que ajude a descodificar.
Naquele momento, pareceu-me que sim.
Isso é algo que desenvolve, olhar para a realidade e ir à procura de “instrumentos” literários para a analisar?
Costumo sempre dizer que, seja qual for o assunto, há sempre bibliografia. O meu impulso, que é de outra época e, se calhar, está condenado, é quando não sei uma coisa ir aos livros. Não só aos livros, claro, também às pessoas, à experiência, mas certamente aos livros. Quase sempre que há um assunto que me interessa e quero perceber, aquilo que faço é ir à estante ou comprar um livro. Embora a vida e os livros sejam coisas diferentes, saudavelmente diferentes, não são radicalmente diferentes e houve alguém que já pensou sobre o assunto de uma maneira que nos seja, e esta é uma palavra temerária, útil. Não é a utilidade prática, mas a utilidade de compreender, que apesar de tudo é uma utilidade, que diabo!
“As pessoas estão sempre a descobrir novidades na igreja”
Uma última pergunta, sobre o seu catolicismo.
Dessa não estava à espera.
À primeira vista, dir-se-ia que o Pedro Mexia é mais Bento XVI do que Francisco.
Não vejo isso dessa maneira porque acho que isso é pressupor duas coisas que me parecem erradas, embora saiba que existe esse clima.
Mesmo no interior da igreja.
Sim, existe na igreja. Uma é ignorar que cada papa é uma personalidade, uma história, um passado. Não seria de esperar que um papa vindo da Alemanha, que viveu o nazismo, e um papa que veio da Argentina, tivessem uma sensibilidade e um olhar igual.
Mas há aqui questões que tornam especial esta situação: por um lado, Francisco sucedeu a Bento XVI, por outro, Bento XVI não morreu. E depois há a diferença nas propostas.
Aí acho que não é tanto assim. As pessoas, quer as de boa vontade, quer as de má vontade, estão sempre a descobrir novidades na igreja. Vou dar um exemplo. O papa Francisco não disse nada crítico em relação ao capitalismo que não tivesse sido dito por todos os papas desde o final do século XIX. Se lermos algumas encíclicas sociais da igreja parece que estamos a ler o programa do Bloco de Esquerda. A relação difícil da igreja com o capitalismo é conhecida, não é uma novidade.
Também será um caso em que o estilo condiciona a perceção da mensagem?
Bem, é verdade que em matéria de costumes, este papa tem feito declarações aparentemente mais liberais ou compreensivas.
Aparentemente?
Aparentemente no sentido em que na igreja a mudança não se faz por causa do que o papa diz num avião aos jornalistas. Não houve nenhuma novidade. Quando o papa, sobre os homossexuais, diz: “Quem sou eu para julgar?” é uma frase bombástica porque nenhum outro papa disse aquilo, mas isso não acrescentou grande coisa à doutrina do catolicismo em relação à homossexualidade, que foi mudando nos textos, passando de uma coisa aberrante para uma condição que não é em si mesmo pecaminosa. Essas mudanças, que não são muito visíveis, são mais importantes do que aquela frase, que tem um impacto grande. Acho que todas frases misericordiosas ditas por um católico são boas. Tudo o que revele compreensão pela fraqueza humana, sem que isso signifique pôr as convicções em leilão ou seguir a última sondagem, é bom. Temos de ver que o Papa Bento XVI era um intelectual alemão e a probabilidade de um intelectual alemão ser popular era zero. Tinha tudo contra ele. E como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé tinha sido inflexível, muito mais inflexível do que foi como papa, e este é um papa simpático da América Latina. Não digo isto para o diminuir, mas acho que é muito redutora a ideia de que por haver uma personalidade diferente mudou muita coisa. Não mudou.
É mais sensível às continuidades do que às diferenças?
Sim, porque é muito diferente olhar, por exemplo, para 108 anos da República Portuguesa e comparar os presidentes e ver vinte séculos de cristianismo. Essas variações que vistas noutro contexto podem parecer sísmicas não têm tanta importância.
São pequenas variações de temperatura?
Bem, é óbvio que houve mudanças. Por exemplo, o papado de João XXIII foi sísmico e nada do que este Papa tenha feito é comparável. Agora, este papa gerou uma reação muito interessante, gerou boa vontade. Não havia boa vontade para ouvir um papa. Era uma figura historicamente condenada. Tenho ouvido pessoas para quem a religião era quase uma coisa como o professor Karamba a dizerem que é preciso ter atenção ao que o papa diz.
Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015, e “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”.