Petra Costa, realizadora de Democracia em Vertigem (filme que em 2019 apresentou uma visão sobre a chega de Dilma e Lula ao poder e consequente queda), levou Apocalipse nos Trópicos a estrear no festival de Veneza deste ano, não como reação ativista contra o Bolsonarismo, não a propósito de crises económicas e sociais no Brasil. É, explica, um documentário sobre o impacto da religião na vida de milhões de brasileiros que, defende a realizadora, pode ditar o fim da democracia ou “o regresso da teocracia ao país”.
Petra Costa olha para “o evangelismo como doutrinação política”, capaz de transformar pastores em “líderes que influenciam a política e o mais pobre dos pobres em fanático religioso”. “Comecei a perceber a influência evangélica durante a pandemia de Covid-19, sobretudo na favela de Paraisópolis, onde a religião fazia o papel do Estado. Estávamos diante de um apocalipse político, sanitário e climático. Como ainda parece estarmos”, diz numa conversa com o Observador. O filme foi o escolhido para abrir o festival Porto Post Doc, esta sexta-feira, 22 de novembro (festival que decorre até ao próximo dia 30 de novembro).
A viagem de padres norte-americanos até ao Brasil durante a Guerra Fria contra o comunismo. O crescimento do papel dos pastores como empresários, a par e passo com o crescimento económico do país no século passado. A importância de figuras como o pastor Silas Malafaia, muito próximo de Jair Bolsonaro, que Petra Costa diz ter sido “fundamental” para a eleição de 2018, um comunicador que usa a “Bíblia como formação política”, defende. E o crescimento que descreve como “abismal” de evangélicos naquele país. São estas peças que Petra Costa foi juntando para desenhar Apocalipse nos Trópicos: “Há quem diga que o evangelismo não é uma religião, mas sim uma cultura. Transforma a visão política das pessoas. A conduta. Tudo”, garante.
Petra Costa parece ter procurado uma espécie de terapia para com o próprio país, muito dividido entre ideologias políticas e manifestações religiosas. Mas também procurou explicar como acredita que a esquerda também tem “culpa” pelo “estado a que o país chegou”. E acredita que o Bolsonarismo não terminou com a tomada de posse de Lula a 1 de janeiro de 2023: “O Bolsonarismo é maior do que Bolsonaro, tal como Lula é maior do que a esquerda. Existe a convicção de que a onda da extrema direita ainda esteja a meio. E não sabemos quanto tempo vai durar. E esquerda está um pouco adormecida para essa ameaça”.
Porque é que, depois de Democracia em Vertigem, fez Apocalipse nos Trópicos? O que é que motivou este filme e como se relaciona com o anterior?
Surge do desejo de explicar o fenómeno da infiltração religiosa na política brasileira. Mas quase que desejei até que outra pessoa o fizesse. Fui “sequestrada” pela política brasileira, depois de ter começado com filmes mais intimistas. Em 2020, depois do impeachment, senti a História a correr nas ruas. Começa a pandemia, temos a pior crise sanitária e o pior Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. O Murilo Salazar, fotógrafo que estava connosco, começa a fotografar Paraisópolis, estava clara a presença evangélica a fazer o que o Estado não fazia, a dar material espiritual durante a pandemia. Era um momento em que a palavra “apocalipse” estava presente. Estávamos diante de um apocalipse político, sanitário e climático. Como ainda parece que estamos. Comecei a investigar essa palavra, virou um mote desde o início para o filme. Tentar encontrar a origem, a influência que o livro do Apocalipse exerce. É dos livros mais fundamentais do movimento evangélico fundamentalista. No início, íamos falar apenas do presente, do pastor Silas Malafaia, mas, à medida que filmávamos, percebi que só mostraríamos como as pessoas se movem, mas não o que as move, como dizia Pina Bausch. A influência dos Estados Unidos da América, por exemplo, foi fundamental para o que existe hoje na política brasileira. E é tudo muito pouco discutido no Brasil.
No filme Retratos Fantasmas, de Kléber Mendonça Filho, as igrejas substituíram os cinemas no Recife. Em Apocalipse nos Trópicos, essa influência vai até à raiz social e familiar de milhões de brasileiros.
Há quem diga que não é uma religião, mas sim uma cultura. Transforma a visão política das pessoas, a conduta, tudo. De formas muito positivas também, claro. Conheci muitas mulheres cujos maridos deixaram a bebida depois de entrarem na Igreja. Conseguiram muito apoio para pagar a renda da casa. É o papel de coach, de psicólogo, assistente social…
… numa só pessoa ou, neste caso, instituição.
Exato. É realmente impressionante. Os cultos do Malafaia surpreenderam por serem cultos de formação política, acima de tudo. Usa a Bíblia para fazer formação política. “Vocês vão ser a geração que vai mudar a História”, vão-se tornar juízes, advogados, diretores, presidentes. É uma frase muito forte. Essa é a nova teologia no pentecostalismo.
Falando do pastor Malafaia, que neste filme diz estar muito na sombra de Jair Bolsonaro. Como é que uma figura destas não lida mal com perguntas mais incómodas?
É uma pessoa que gosta de falar publicamente. De dar entrevistas. Até de países europeus. Tem na parede da sala as capas de todos os jornais que já o citaram, a falar bem ou mal. Gosta que percebam a importância que tem. Há uma sensação no mundo evangélico que, durante muito tempo, foram tratados de forma muito respeitosa pela imprensa tradicional. Essa atenção vem desse desejo de reconhecimento.
Este seu novo filme tem também um lado ativista, mas há uma diferença para o Democracia em Vertigem. É que aborda também a relação da Igreja Evangélica com o partido de Lula da Silva. Ou seja, também questiona o lado que defende politicamente.
Os evangélicos cresceram quase 95% durante os governos do Partido dos Trabalhadores [PT]. Deram acesso à rádio, à televisão, ajudaram os evangélicos a entrar em África. Já sabia quanto o PT ajudou nesse crescimento. Lula esteve na inauguração da Record News, canal de notícias que viria, anos mais tarde, a apoiar Jair Bolsonaro. A verdade é que nenhum político está imune a esta influência.
No filme também mostra pastores evangélicos que estão contra o que dizem ser a “espectacularização da religião em prol da política”. Foi difícil encontrá-los?
Há muitos, mas não são lideranças de peso. Todas as lideranças evangélicas de peso ainda hoje estão alinhadas com o Bolsonarismo. Claro que há muitos dissidentes, quase todos estão a ser perseguidos, a pensar sair do país porque a Igreja Evangélica consolidou-se nessa convicção política de apoio a Jair Bolsonaro.
Alguém tentou travar a realização do filme?
Não, não aconteceu. A campanha de 2022 teve muita perseguição política dentro da igreja. Muitos fiéis foram ameaçados, houve um caso de um fiel assassinado por ter dito que ia votar no Lula da Silva. Muitos pastores perseguidos e expulsos, tal como um que nós filmámos. As guerras religiosas que ocuparam e mataram tanta gente na Europa acabaram só com a separação entre a Igreja e o Estado. Agora que essa união voltou, vemos outra vez a perseguição política a aumentar. Quem acaba a sofrer mais são os cristãos dissidentes. São a minoria. Como os protestantes foram em certos lugares. Gostava que o filme comunicasse também esse lado. A separação entre Igreja e Estado é importante para que os cristãos exerçam a sua fé. E nunca esquecer que o Bolsonarismo é maior do que Bolsonaro.
Como justifica essa afirmação?
O Lula é maior do que a esquerda brasileira. Nas eleições municipais, a extrema-direita saiu forte. O Pablo Marsal, que é pior do que Bolsonaro, surgiu agora em São Paulo. Existe a convicção de que essa onda da extrema-direita, que achávamos já ter terminado, ainda esteja a meio. E não sabemos quanto tempo mais vai durar. Seja na figura de Bolsonaro ou de outro extremista que surja, o efeito continua a ser grande. De que volte a ter tração em 2026. A esquerda está um pouco adormecida para essa ameaça.
E tendo em conta essas movimentações políticas de que fala, como tem corrido a viagem deste filme?
As pessoas saem assustadas com toda a influência religiosa. Os dois filmes, este e o Democracia em Vertigem, têm um pouco de terror. Saem assustadas mas também inspiradas. Revigoradas. Com a possibilidade de uma revelação. Os dois projetos também geram uma identificação. Mundialmente, estamos todos num barco muito parecido.
Durante a rodagem do filme, questionou-se sobre a sua própria relação com a religião?
A minha família é muito laica, eu tenho uma vida espiritual maior do que eles. Uma busca que não passa pela religião, mas sim pela filosofia. Desde nova que tenho respeito pela religião, maior até do que os meus pais. Ou seja: não questionei a minha relação com a religião, mas a do meu país sim. Aliás, a relação entre o Estado e a Igreja, em abstrato.
De que modo?
No Brasil, podemos voltar a ser uma teocracia. É um risco real. Não é hipotético. A arrogância da esquerda, ou dos seculares em relação à religião, de que a sua influência está a diminuir, é errada. A maior parte das guerras no mundo são religiosas ou têm relação com a religião. Vemos presidentes a adotar uma postura religiosa à volta do mundo. A força que a esquerda já teve no Brasil teve muita ligação com movimentos religiosos, como a Teologia da Libertação. Se a esquerda não fizer esse trabalho de base está, realmente, muito em risco de desaparecer. A esquerda desligou-se das carências espirituais das pessoas, de projetos transcendentais. De ajudar a sonhar outro futuro, que transcende o lado material.
Sabemos que por vezes foi difícil sentar-se e conversar com alguns entrevistados no filme Democracia em Vertigem, aqueles com quem discordou. E desta vez?
No Democracia em Vertigem foi de facto difícil. Às vezes chegava e gritava com o entrevistado. Percebi que não era uma estratégia inteligente, fui aprendendo e comecei a ficar curiosa. Quem vota em Bolsonaro não o faz por querer eliminar o outro, por ódio, mas sim por medo real de perderem os filhos para outras ideologias. É comovente ouvir uma mãe a dizer que, se o PT ganhar, os filhos mudam de sexo, que vão aprender a ser homossexuais. Esse medo é muito profundo. Se tratarmos as pessoas como idiotas, não se chega a lado nenhum. Temos de trabalhar com esse medo. E com o carisma que Bolsonaro exerce sobre muitas pessoas.
Esse carisma de que fala, continua a ter efeitos?
Depende de quem vê o quê. Quem é progressista só vê ódio. Para os seus seguidores, transmite autenticidade porque vivemos num mundo cheio de hipocrisia. Muitos bolsonaristas dizem que ele diz a verdade. Além de tudo, acham que ele é realmente escolhido por Deus. Esse é o lado profético.
O que se segue em termos de projetos? Vai continuar com a política?
Vou entrar por um lado mais íntimo e pessoal.