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PISA 2018 descodificado: as novidades, os desafios e as leituras políticas

Por mais que os anos passem, o problema do costume mantém-se e a batalha contra as desigualdades sociais na Educação está longe de ser ganha em Portugal. Ensaio de Alexandre Homem Cristo.

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Antes de apresentar a análise dos dados do PISA 2018, um aviso: se pensa que tudo está mal na Educação em Portugal ou se julga que o ensino nas escolas públicas anda pelas ruas da amargura, prepare-se para ser surpreendido. Um outro aviso: se acredita nas promessas de que Portugal está a liderar um movimento internacional de promoção do sucesso educativo, ultrapassando a Finlândia e outros países escandinavos, prepare-se para ficar desiludido. Sim, a história de Portugal nas avaliações do PISA tem sido a de um contínuo sucesso, com melhorias evidentes e consolidadas ao longo dos anos. Ora, neste PISA 2018, a história manteve-se (mais ou menos) feliz, embora com menos motivos para celebrar: Portugal continua a evidenciar desempenhos alinhados com a média da OCDE, embora com uma descida face aos últimos resultados (2015) que, em Ciências, levou mesmo à retoma de níveis de 2009. O desafio maior é o de sempre: as desigualdades sociais continuam a ser preponderantes para o sucesso escolar e para o bem-estar dos alunos.

Comece-se a análise pelo princípio. De três em três anos, a OCDE publica os resultados do PISA (a sigla para “Programme for International Student Assessment”). Trata-se de uma grande avaliação internacional e comparada, que mede a literacia dos alunos de 15 anos de idade em três áreas-chave: Leitura, Matemática e Ciências. A iniciativa teve o seu primeiro relatório em 2000 e, agora com a publicação desta edição referente a 2018, há uma linha contínua de sete avaliações (o que permite observar a evolução de cada país e compará-lo com os seus parceiros internacionais). A escala fala por si: nesta edição, participam 79 países e foram avaliados cerca de 600 mil alunos de 15 anos, representantes de 32 milhões de jovens da mesma idade. Nenhum outro instrumento avaliativo tem amostras tão alargadas. E, por isso, para todos os efeitos, o PISA assume-se como o instrumento internacional de referência na Educação, que permite aferir a eficácia das respectivas políticas públicas — o seu impacto no sector é tremendo, tanto a nível político como na esfera da investigação académica.

Portugal continua a evidenciar desempenhos alinhados com a média da OCDE, embora com uma descida face aos últimos resultados (2015) que, em Ciências, levou mesmo à retoma de níveis de 2009. O desafio maior é o de sempre: as desigualdades sociais continuam a ser preponderantes para o sucesso escolar e para o bem-estar dos alunos.

Toda a gente olhará primeiro para as médias de desempenho dos alunos, na famosa classificação que a OCDE faz dos países participantes. No entanto, é fundamental sublinhar que, mais do que simplesmente classificar os países por ordem do desempenho dos seus alunos, o PISA cruza esses desempenhos com vários outros indicadores explicativos, que contribuem para uma análise profunda e detalhada sobre o desempenho do próprio sistema educativo. Assim, perguntas que ocupam o dia-a-dia do debate público na Educação encontram, geralmente, as suas respostas nos relatórios do PISA — seja sobre aspectos relacionados com os alunos (por exemplo, o peso das condições socioeconómicas na probabilidade de sucesso escolar) ou sobre aspectos organizacionais (por exemplo, a relação desses desempenhos com a dimensão das turmas, com o volume orçamental dedicado à Educação ou com a utilização dos recursos humanos e financeiros nas escolas). Ou seja, independentemente das suas opções e limitações metodológicas, o PISA da OCDE recolhe dados de grande valor, que são decisivos para o diagnóstico dos pontos fortes e dos pontos fracos dos sistemas educativos.

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A edição deste ano, o PISA 2018, tem um enfoco particular na Leitura, à semelhança do que aconteceu com os PISA 2000 e PISA 2009 — em cada edição, a análise cobre todas as áreas-chave, mas aprofunda rotativamente uma das três áreas-chave. Isso permitirá, do ponto de vista da avaliação nesta área, avaliar resultados das várias medidas e reformas no espaço (pelo menos) dos últimos 10 anos. Parece muito tempo, mas, no cronómetro dos sistemas educativos, passa num ápice.

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Então, o que nos diz o PISA 2018 sobre a Educação em Portugal? São tantos os dados, que o melhor é ir por partes. Neste dia 3 de Dezembro, a OCDE divulgou apenas uma parte da informação (três relatórios), deixando para 2020 a publicação da restante avaliação (na qual consta a “novidade” da avaliação das competências globais dos alunos). Portanto, neste breve ensaio, onde se lança um primeiro olhar sobre os resultados do PISA 2018, não encontrará todas as respostas às perguntas que geralmente inquietam a opinião pública sobre o sistema educativo português. Mas encontrará a síntese das novidades e dos sinais de alarme que disparam em alguns dos indicadores.

E, claro, se está desejoso por saber o que aconteceu e não consegue esperar, aqui vai o resumo: face a 2015 (a avaliação PISA anterior), Portugal apresentou resultados similares, enquadrados na média da OCDE, embora seja perceptível uma descida mais relevante na literacia em Ciências. O que é que isso significa? Já lá iremos. Por enquanto, fixe esta ideia: por mais que os anos passem, o problema do costume mantém-se e a batalha contra as desigualdades sociais na Educação está longe de ser ganha.

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Os resultados de Portugal numa perspectiva comparada

Na escala do PISA, nesta avaliação de 2018, os alunos portugueses tiveram um desempenho idêntico para as três áreas-chave: 492 pontos. Este desempenho não difere estatisticamente da média da OCDE em nenhuma das áreas-chave. Dito assim, soa tudo bem. Mas basta olhar para a evolução dos resultados de Portugal no PISA, desde 2000, para perceber que as notícias também têm um lado menos bom: os desempenhos de Portugal no PISA estagnaram e, em Ciências, até regrediram (gráfico 1).

Em Matemática, o PISA 2018 repete o resultado do PISA 2015 — o mais alto desde 2000. Em Leitura, o desempenho dos alunos só fica ligeiramente abaixo (-6 pontos) dos da avaliação de 2015, sem que aí se possa apontar significância estatística para a variação. O caso muda de figura em Ciências, onde a pioria de 9 pontos é acentuada e, por isso, tem significância estatística: coloca Portugal de novo a níveis de 2009. De resto, só 5 países na OCDE tiveram uma pioria em Ciências superior a esta queda, sendo que dois (Finlândia e Canadá) estão no top-5 de países com melhores resultados e três estão abaixo de Portugal (Suíça, Itália, Espanha).

Traduzindo os resultados para conclusões concretas, há duas visões igualmente válidas. Primeiro, é possível constatar que os resultados de Portugal estão consolidados a níveis coincidentes com a média da OCDE há cerca de uma década, o que tem de ser visto como positivo tendo em conta que Portugal arrancou as avaliações do PISA 2000 muito abaixo dessa meta. Segundo, é, apesar de tudo, preocupante que, nos últimos 10 anos, a melhoria nos desempenhos do PISA tenha sido lenta (Leitura e Matemática) ou inexistente (Ciências). É forçoso, no mínimo, questionar a eficácia de tantas alterações legislativas nesse período temporal, assim como sucessivas mudanças de rumo nas políticas públicas de educação.

A análise não acaba aqui. Aliás, ainda mal começou, e a comparação internacional acrescenta alguma perspectiva a estes resultados. Como se coloca Portugal no contexto da OCDE? Perfeitamente na média (gráfico 2). Isso não é mau, mas atenção que isso também não é assim tão bom. Repare-se: Portugal é o único país participante cujos resultados não diferem estatisticamente dos da OCDE em nenhuma das áreas-chave. Dito de outro modo, em 37 países da OCDE, há 24 que têm pelo menos uma das áreas-chave (ou mesmo todas) acima da média da OCDE. Por outro lado, há 15 países que têm pelo menos uma das áreas-chave (ou mesmo todas) abaixo da média da OCDE. Portugal é o unicórnio entre os países participantes: o ponto de equilíbrio que corresponde à média quase na perfeição. Agora, para o veredicto final, tudo fica a depender do ângulo: o copo está meio-cheio ou meio-vazio? Certo é que, com base nas expectativas geradas por anos de melhorias, estes resultados saberão sempre a pouco.

Os resultados de Portugal apontam para uma consolidação e estagnação dos resultados desde 2009. Isso tem um lado positivo, mas seria irresponsável desvalorizar alguns sinais de alarme (nomeadamente em Ciências). De qualquer modo, no contexto internacional, nomeadamente no contexto europeu e sobretudo entre os países com que Portugal mais se relaciona e é associado, Portugal apresenta níveis de desempenho competitivos.

Claro que as comparações podem ser afinadas para realidades mais próximas da portuguesa, com as devidas leituras. Por exemplo, usar-se como referência comparativa os países da União Europeia (UE) — afinal, é com os seus parceiros europeus que Portugal se compara nos vários domínios das políticas públicas. Em 28 países da UE, Portugal classifica-se em 12.º lugar em Leitura, em 16.º lugar em Matemática, e em 14.º lugar em Ciências (tabela 1). Ou seja, Portugal está a meio da tabela no contexto europeu. Mas, só para ir um bocadinho mais fundo, mesmo dentro do contexto europeu há países com que Portugal se compara mais vezes noutros domínios das políticas públicas, nomeadamente de natureza económica ou financeira, tais como os países europeus vizinhos ou com aqueles com que é geralmente associado — Espanha, Itália, Grécia, Irlanda, França, Reino Unido. Nessa comparação (gráfico 3), Portugal surge apenas abaixo do Reino Unido e da Irlanda, empatado com a França, à frente de Espanha e muito à frente de Itália e Grécia. Se a famosa sigla dos tempos da troika “PIGS” (Portugal-Italy-Greece-Spain) ainda estivesse na moda, Portugal ganharia nesse campeonato mediterrânico.

Assim, resumindo, os resultados de Portugal apontam para uma consolidação e estagnação dos resultados desde 2009. Isso tem um lado positivo, mas seria irresponsável desvalorizar alguns sinais de alarme (nomeadamente em Ciências). De qualquer modo, no contexto internacional, nomeadamente no contexto europeu e sobretudo entre os países com que Portugal mais se relaciona e é associado, Portugal apresenta níveis de desempenho competitivos.

Antes de mudar de assunto, uma nota final nesta secção é necessária para apontar uma dificuldade metodológica na avaliação do PISA 2018 em Portugal, que eventualmente causará algum desconforto: a amostra portuguesa obteve apenas 76% de taxa de respostas válidas, percentagem inferior aos mínimos exigidos (80%) pela OCDE para a validade dos resultados e devida comparação internacional. Essa falha na recolha dos dados foi, para além disso, mais incidente em escolas onde os alunos obtiveram resultados abaixo da média nacional em exames finais nacionais — ou seja, a ausência destes alunos na amostra ajudaria a subir artificialmente os resultados de Portugal no PISA 2018. O IAVE, responsável em Portugal pela execução dos testes PISA, corrigiu estatisticamente a amostra, em conformidade com os resultados esperados face ao perfil das escolas em falta. Obviamente, mesmo que feito com rigor, este é um exercício falível, pelo que as médias de desempenho de Portugal no PISA 2018 requerem uma cautela reforçada na sua utilização. Ou seja, para todos os efeitos e apesar dos esforços do IAVE, não é certo que os resultados não estejam ligeiramente inflacionados.

O desafio de sempre: as desigualdades sociais continuam decisivas para os desempenhos

Se algum dia lhe perguntarem por uma característica marcante do sistema educativo português, uma resposta segura será esta: o perfil socioeconómico de um aluno é um factor fortíssimo na previsão sobre o seu desempenho e sobre a sua probabilidade de sucesso escolar. Ou seja, em Portugal, as desigualdades sociais contam muito na Educação, mostrando que, nas escolas, ainda não se consegue contrariar o background social com que os alunos entram na sala-de-aula. Consequentemente, os alunos de contextos desfavorecidos são aqueles que se encontram sucessivamente no fundo da tabela dos resultados escolares, das retenções e do insucesso escolar.

O PISA 2018 veio confirmar a tendência. A diferença entre um aluno favorecido (quartil mais elevado de perfil social) e um aluno desfavorecido (quartil mais baixo de perfil social) é de 95 pontos de desempenho na avaliação do PISA (gráfico 4) — o 10.º valor mais alto no contexto da UE —, sendo que o perfil socioeconómico explica 13,5% da diferença entre os desempenhos dos alunos em Leitura, 17% em Matemática e 16% em Ciências (valores que superam a média da OCDE, embora de forma não significativa). Ou seja, Portugal está entre os países onde o perfil socioeconómico do aluno mais conta para a sua progressão. Nada que não se soubesse, claro. Mas, mesmo assim, não deixa de ser relevante constatar que a situação piorou (um pouco), em vez de melhorar: em comparação com o PISA 2009, a distância entre os alunos favorecidos e os desfavorecidos aumentou de 87 pontos para 95 pontos, enquanto a média da OCDE se manteve estável entre os 87 e os 89 pontos de diferença. Evitando dramatismos e adoptando uma visão mais benevolente, neste assunto das desigualdades sociais estamos na mesma (pelo menos) desde 2009.

Vale a pena mergulhar um pouco mais nos dados e perceber o que está por detrás destes números. A primeira evidência a fixar é que, ao contrário do que sucede noutros países da OCDE, estas diferenças de desempenho explicadas pelo perfil socioeconómico em Portugal não resultam de um tratamento discriminado a esses alunos. De facto, em alguns países, verifica-se que, nas escolas onde os alunos matriculados têm em média um perfil socioeconómico mais baixo, há casos de segregação na composição das turmas, na contratação dos professores ou até na distribuição dos recursos disponibilizados (humanos e materiais) — prejudicando os alunos que mais necessitam de apoio. Em Portugal, o cenário é outro: o nosso país surge entre aqueles que tem um tratamento mais indiferenciado entre escolas, no sentido em que não as distingue especialmente em função do perfil socioeconómico dos alunos. Tanto quanto possível, as escolas são tratadas como iguais.

E isso é bom? Mais ou menos. É bom que não haja discriminação negativa — e, infelizmente, há em vários países. Mas, por outro lado, é também prova de que as escolas que têm alunos com maiores necessidades de aprendizagem (e com maior risco de insucesso escolar) não estão a ser devidamente apoiadas pelo ministério da Educação — por exemplo, com (ainda) mais recursos humanos. Ou seja, pode-se afirmar que o ministério está a falhar no reconhecimento de que as escolas em contextos mais difíceis precisam de apoio suplementar. Aliás, como provam os questionários aos directores de escolas neste PISA 2018, o sentimento de falta de recursos não é exclusivo a uma ou a outra escola: o sentimento de falta de recursos é generalizada — e supera a média da OCDE.

Conclua-se, contudo, com uma nota positiva. O perfil socioeconómico, mesmo sendo um forte preditor de sucesso escolar, não pode ser lido como uma condição determinística, da qual não há fuga possível. De facto, há 10% de alunos portugueses no PISA 2018 que são considerados “resilientes”: alunos que, estando no mais baixo dos níveis dos perfis socioeconómicos, conseguem desempenhos a Leitura no quartil mais elevado (gráfico 5). Esta percentagem não é particularmente diferente da de outros países, nem se distingue da média da OCDE (11%). O que potencia a resiliência dos alunos? No cômputo geral, há vários factores relevantes, tais como o apoio dos pais e um ambiente disciplinado (i.e. ordeiro) nas escolas. Curiosamente, em ambos os factores, o seu poder explicativo para o caso português é diminuto.

O peso esmagador das condições sociais e dos estereótipos de género nas ambições dos alunos

A relação entre o perfil socioeconómico e os desempenhos escolares é conhecida há longos anos. Mas as desigualdades sociais não se manifestam apenas nos desempenhos dos alunos. Como veremos de seguida, as características dos alunos (sociais e de género) também explicam expectativas e atitudes face à educação. Em Portugal, isso sucede de forma muito acentuada e gravosa.

Em geral, independentemente dos seus desempenhos, quase todos (93%) os jovens com perfil social favorecido pretendem ingressar no ensino superior, enquanto, entre os alunos desfavorecidos, somente 50,1% tem essa ambição.

O exemplo mais directo pode ser dado pela expectativas em frequentar o ensino superior e conseguir um emprego de alto nível. Se olharmos para os alunos com desempenhos elevados e com aspirações assumidas de ter uma carreira bem-sucedida, e os diferenciarmos em função do seu perfil social (favorecido ou desfavorecido), os resultados são gritantes (gráfico 6). De um lado, 39,4% dos alunos desfavorecidos não equacionam frequentar o ensino superior, apesar de terem altas ambições de carreira e desempenhos escolares para isso. Do outro lado, isso sucede com apenas 5,1% dos alunos favorecidos. Ou seja, há um abismo a separar estes alunos, que não se explica pelos seus desempenhos escolares (pois são similares) mas pela sua condição social, que influencia fortemente as suas expectativas educativas.

Não é só nos alunos com desempenhos elevados. Em geral, independentemente dos seus desempenhos, quase todos (93%) os jovens com perfil social favorecido pretendem ingressar no ensino superior, enquanto, entre os alunos desfavorecidos, somente 50,1% tem essa ambição (gráfico 7). A diferença de 43 pontos percentuais entre alunos favorecidos e alunos desfavorecidos coloca Portugal no topo dos países europeus com maior discrepância social — juntamente com Lituânia, Letónia, República Checa, Roménia, Itália, Polónia, Hungria e Alemanha.

O que explica este abismo social? Só se pode conjecturar, havendo duas explicações predominantes — para além dos estereótipos sociais que possam inibir os alunos mais desfavorecidos. Primeiro, os custos relacionados com a frequência do ensino superior, que constituem barreira à entrada para os jovens de famílias socialmente desfavorecidas. Custos estes que muito ultrapassam as propinas per se, na medida em que há alimentação, alojamento, material de estudo e um período em idade adulta sem emprego e respectiva remuneração. Segundo, uma compreensão deficiente destes alunos sobre as vantagens económicas de médio e longo prazo da frequência do ensino superior — a probabilidade de emprego é superior, assim como as remunerações. Há, portanto, muito espaço para as políticas públicas investirem na sensibilização destes jovens em relação à frequência do ensino superior.

O peso dos estereótipos ultrapassa a dimensão social e entra, com estrondoso, nas diferenças entre rapazes e raparigas. Já num outro ensaio, esse tema foi desenvolvido, sendo certo que as diferenças de desempenho e expectativas entre rapazes e raparigas não é um assunto novo na Educação. Mas é sempre arrepiante ser confrontado com dados actualizados de uma realidade que muito ultrapassa as diferenças naturais entre meninos e meninas. E que, em Portugal, assume a dimensão de um pequeno escândalo.

É sabido que as raparigas tendem a obter melhores resultados escolares do que os rapazes. O PISA 2018 confirma a tendência, que em Leitura é absolutamente imparável: em todos os países participantes, as raparigas tiveram desempenhos (muito) superiores aos rapazes — em alguns países, como a Finlândia, a diferença chega a ser de 50 pontos na escala do PISA (o que, diga-se, é uma enormidade). Em Matemática e Ciências, é um pouco mais dividido e depende dos países, sendo que, em média, as raparigas levam a taça. Em Portugal, as raparigas ganham aos rapazes em Leitura por 24 pontos, perdem para os rapazes em Matemática (por 9 pontos) e empatam em Ciências.

Não dá para olhar para o lado: em Portugal, as raparigas estão a escolher as suas carreiras em modo “auto-censura”, não só ponderando os seus desempenhos, mas permitindo que as suas ambições fiquem reféns de “normas sociais” que as menorizam (inconscientemente).

Ora, o facto de as raparigas terem, em média, melhores desempenhos do que os rapazes é algo que se pode considerar uma diferença natural e não justifica qualquer preocupação — ou seja, não é uma desigualdade resultante de um tratamento discriminatório, mas apenas fruto das diferenças biológicas e de estádios de desenvolvimento entre meninos e meninas. Por exemplo, as raparigas tiram mais satisfação da leitura do que os rapazes, da mesma forma que os rapazes tendem a ser mais competitivos do que as raparigas.

Contudo, persistem outras diferenças entre rapazes e raparigas que, aí sim, qualificam para a desigualdade de género, nomeadamente em relação às expectativas futuras — e é nesse campo que a atenção das famílias e das escolas se deverá focar. É disso esclarecedor a avaliação que o PISA 2018 faz para as carreiras nas áreas científicas. Vejamos. Entre os alunos com desempenhos de alto nível em Matemática e Ciências, as expectativas de uma carreira nas áreas científicas são fortemente marcadas pelo género (gráfico 8). De um lado, os rapazes apontam para essa via, com 48% a confirmarem a sua ambição numa carreira científica — o valor mais alto entre os países participantes no PISA 2018. Do outro lado, só 15% das raparigas têm igual ambição. A diferença de pontos percentuais entre rapazes e raparigas, que é de 33%, é incomparavelmente superior à de qualquer outro país participante no PISA 2018. Não dá para olhar para o lado: em Portugal, as raparigas estão a escolher as suas carreiras em modo “auto-censura”, não só ponderando os seus desempenhos, mas permitindo que as suas ambições fiquem reféns de “normas sociais” que as menorizam (inconscientemente). É uma responsabilidade de todos — famílias, escolas, professores e autoridades públicas — fazer os possíveis para contrariar esta tendência.

Faz diferença a escola que o aluno frequenta?

Indo directo à resposta: sim, mas menos do que se possa pensar. Expliquemos. As desigualdades sociais existem e devem, na medida do possível, ser anuladas pelas escolas, de modo a que todos os alunos tenham as mesmas oportunidades e as mesmas probabilidades de sucesso escolar — o que, forçosamente, implica que não se trate todos os alunos da mesma forma, mas sim cada um correspondentemente às suas necessidades. Como vimos acima, não é fácil consegui-lo e, de resto, esse é um desafio de longa data no sistema educativo português. Dito isto, há características das escolas que podem potenciar ou anular as desigualdades sociais, promovendo o sucesso escolar dos seus alunos. No caso português, até que ponto a escola que o aluno frequenta é preponderante para os seus desempenhos? Em média, as escolas não diferem acentuadamente.

À primeira vista, é possível dizer que, mesmo sendo conhecidas situações de elevadas disparidades sociais na distribuição de alunos nas grandes cidades, o sistema português é geralmente equitativo e frequentar uma ou outra escola é, em média, pouco significativo para os desempenhos dos alunos.

Primeiro: existem diferenças relevantes entre desempenhos das escolas? A resposta do PISA 2018 está em linha com a de edições anteriores desta avaliação da OCDE. No sistema educativo português, há uma variação de desempenhos dentro da própria escola (71,1%) que está alinhada com a média da OCDE (70,8%) — ou seja, dentro da mesma escola, a variação de resultados é suficientemente grande para evidenciar a presença de alunos bons e alunos menos bons (ou, transpondo, de alunos mais favorecidos e alunos mais desfavorecidos). Melhor indicador é que, entre escolas, as diferenças de resultados não aparentam ser significativas: só há 13,4% de variância nos resultados entre escolas do território nacional — um dos melhores resultados a nível internacional, sendo que, na OCDE, a média é mais de o dobro (29%) – ver gráfico 9. Portanto, à primeira vista, é possível dizer que, mesmo sendo conhecidas situações de elevadas disparidades sociais na distribuição de alunos nas grandes cidades, o sistema português é geralmente equitativo e frequentar uma ou outra escola é, em média, pouco significativo para os desempenhos dos alunos.

Segundo: há segregação social e, se sim, qual o papel das escolas privadas? Um indicador complementar e muito interessante sobre a desigualdade entre escolas é o contraste entre o sector público e o sector privado em termos de segregação social. Aqui, dupla cautela com as leituras apressadas. Em Portugal, é habitual reduzir-se (no debate público) a frequência do ensino privado a uma escolha reservada para as elites — e, de facto, por via da cobrança de propinas e da falta de financiamento público, os colégios só estão ao alcance das famílias que conseguem cobrir o valor das propinas. Agora, o que o PISA 2018 vem demonstrar é que a segregação social não existe entre escolas públicas e escolas privadas — ou seja, vistas como um todo, não há rivalidade nem diferenças sociais entre os alunos que frequentam estas escolas (ou seja, tanto nas privadas como nas públicas há alunos muito pobres ou muito ricos). Consequentemente, o índice de segregação social construído pela OCDE aponta, para Portugal, que a origem da segregação social é, sobretudo, entre escolas públicas (10 pontos) ou entre escolas privadas (5 pontos), mas não da diferenciação das públicas com as privadas (0 pontos). Para comparação, olhe-se para um país como Malta: o índice de segregação social é mais baixo do que em Portugal, mas vem em grande parte da diferenciação entre escolas públicas e escolas privadas — mostrando que os alunos que frequentam umas ou outras são socialmente muito diferentes, e que existirá aí, de facto, um ensino destinado às elites sociais (no ensino privado).

Terceiro, há diferenças nas escolas “desfavorecidas”? Assinale-se que, em Portugal, as escolas consideradas “desfavorecidas” (i.e. as escolas cujos alunos têm maioritariamente um perfil socioeconómico baixo, como são as escolas TEIP) usufruem de alguns instrumentos “extra” para lidar com as necessidades dos seus alunos. De acordo com os questionários preenchidos pelos directores escolares no PISA 2018, haverá uma diferenciação positiva para essas escolas em termos de gestão da dimensão das turmas e em termos de recursos humanos disponíveis (em termos de rácio professor-aluno) — à semelhança do que é feito em vários países. Após esta afirmação, importa acrescentar duas informações complementares. Por um lado, é importante sublinhar que essa diferença se exprime em número, e não em “qualidade” — em termos de qualificações, o perfil dos professores das escolas “desfavorecidas” é idêntico ao das outras escolas no país. Por outro lado, esse reforço de meios permanece insuficiente, aos olhos das escolas, para lidar com as necessidades dos seus alunos — e por isso essa é uma queixa recorrente dos directores escolares.

Professores: o entusiasmo dos heróis anónimos

Não é possível cobrir todos os ângulos num ensaio como este, que oferece um primeiro contacto com os resultados do PISA 2018, em cima do acontecimento da sua publicação. Muito ficará sempre por dizer ou, até, por repetir (porque muitos desses assuntos já não constituem novidade). Por exemplo, explicar que o orçamento da educação não compra bons desempenhos (ou seja, que não basta aumentar o investimento na educação para que os resultados dos alunos melhorem). Por exemplo, explicar que os desempenhos dos alunos não estão directamente relacionados com o número de horas de instrução (na escola e em casa), sendo que a partir de determinado momento é até contraproducente insistir no estudo (em detrimento dos momentos de lazer). Ou, por exemplo, explicar que a dimensão das turmas é relevante mas só para reduções significativas — nenhum milagre acontecerá se as turmas tiverem menos 1 ou 2 alunos.

Obviamente, estes dados não podem ser interpretados como querendo sugerir que, em Portugal, os professores não têm impacto na melhoria dos seus alunos — há dezenas de evidências de que tal assunção estaria errada. O que estes dados sugerem, por omissão, é que os professores portugueses têm o seu entusiasmo na mó de baixo e que, por isso, não foi possível detectar uma relação com os desempenhos dos alunos

Assim, como não é possível desenvolver todos os temas, há que fazer escolhas. E, para esta secção (quase) final, a escolha consiste em apresentar (os poucos) dados sobre os professores que constam no PISA 2018 — porque, afinal, pouco se fala de professores e estes são a peça-chave para a promoção do sucesso escolar dos alunos. Entre uns dados ditos “secundários”, no volume III do relatório PISA 2018, surge uma análise ao entusiasmo dos professores de línguas e à relação desse entusiasmo com a aprendizagem dos alunos. Mais interessantes do que possa parecer à primeira vista, no mínimo, estes dados servem para relembrar a primazia do papel dos professores na aprendizagem e na abertura de horizontes aos seus alunos.

A comparação dos dados mostra que, em média na OCDE, os professores que leccionam em escolas tidas como “favorecidas” se apresentam como mais apaixonados pelo seu trabalho. Em Portugal, de facto, são os professores das escolas privadas que se enquadram nesse perfil, confirmando o padrão. Onde Portugal se afasta do padrão é na relação entre esse entusiasmo e a melhoria dos desempenhos dos alunos em Leitura. Efectivamente, essa relação está consolidada por todos os países da OCDE, variando apenas a escala — quanto maior o entusiasmo dos professores, maiores os ganhos no score em Leitura dos alunos no PISA (gráfico 10). A média da OCDE é de um ganho de 9 pontos no score do PISA por cada nível de entusiasmo dos professores, embora em alguns países esse ganho seja bastante maior: 16 nos EUA ou 13 na Suécia e na Finlândia. Ora, em Portugal, esse ganho é de 2 pontos, mas sem relevância estatística. Sim, isso mesmo: na prática é zero (!). Portugal é o único país da OCDE onde não se confirma esta relação entre entusiasmo e melhoria dos alunos. É um resultado tão surpreendente quanto extraordinário.

Obviamente, estes dados não podem ser interpretados como querendo sugerir que, em Portugal, os professores não têm impacto na melhoria dos seus alunos — há dezenas de evidências de que tal assunção estaria errada. O que estes dados sugerem, por omissão, é que os professores portugueses têm o seu entusiasmo na mó de baixo e que, por isso, não foi possível detectar uma relação com os desempenhos dos alunos — o que será mais o caso na generalidade das escolas da rede pública e, em particular, nos contextos mais desfavorecidos. Tal situação anómala de Portugal no contexto da OCDE, para além de assinalar um factor de desgaste emocional e profissional, traduz um prejuízo efectivo para os alunos: privados do bem-estar e do entusiasmo dos seus professores, os alunos estão igualmente a ser privados de desenvolver ainda mais a sua aprendizagem e melhorar os seus desempenhos.

So what? O que é que tudo isto diz sobre os nossos governos e ministros da Educação?

Se iniciou esta leitura em busca de julgamentos políticos, é melhor resfriar os ânimos. Primeiro, porque o exercício em si é por definição infrutífero: as políticas públicas de educação caracterizam-se pelos seus efeitos lentos. É caso para dizer que tudo demora tempo: os processos de aprendizagem demoram tempo a ser adquiridos pelos alunos, as reformas e revisões de currículo/ metas demoram tempo a ser assimiladas pelos professores e os novos enquadramentos legislativos demoram tempo a ser devidamente implementados pelas escolas. É, portanto, completamente ilusória a ideia, na Educação, de que existem soluções milagrosas, rápidas e de relações causa-efeito explosivas. Assim, sendo o PISA uma avaliação que se repete a cada 3 anos, é no mínimo precipitado fazer balanços assertivos com base num único relatório sobre políticas ou medidas recentes.

Em segundo, convém perceber qual é o trajecto dos alunos portugueses que compõem a amostra do PISA 2018 e de que modo esse trajecto se cruza com grandes alterações legislativas. Neste caso, tudo indica que não se cruzam com as medidas emblemáticas do governo PS (2015-2019). Repare-se: estes resultados correspondem aos alunos que, em 2018, tinham 15 anos de idade e, portanto, teriam 13 anos, em 2016. Assim sendo, os alunos avaliados no PISA 2018 não foram alvo das decisões estruturais do mandato de Tiago Brandão Rodrigues (desde final de 2015) no ministério da Educação — tais como o fim das provas finais (4.º e 6.º anos), a revisão de programas/ metas ou os projectos da Autonomia e Flexibilidade Curricular. Não significa isto que a actuação do governo nos últimos 4 anos passe completamente ao lado da avaliação do PISA 2018, até porque o ambiente nas escolas em 2018 é decisivo para a aplicação dos alunos. Mas, simplesmente, é erróneo estabelecer relações causa-efeito definitivas.

Na discussão política que marcará a publicação do PISA 2018, só uma coisa é certa: falar-se-á demais dos ministros da Educação, e de menos dos professores e do trabalho das escolas que, com imensas dificuldades e falta de recursos, todos os dias trabalham para que os seus alunos tenham as oportunidades que merecem.

No ângulo das políticas públicas, é aliás mais plausível estabelecer uma relação lógica entre os resultados do PISA 2018 e algumas das medidas mais marcantes do mandato de Nuno Crato (2011-2015) — apesar de não ser uma relação perfeita pois, entretanto, muita coisa mudou nas escolas e algumas dessas medidas foram revertidas. Por exemplo, os alunos de 15 anos avaliados no PISA 2018 foram, por coincidência, os últimos a realizar (em 2015) as provas finais do 6.º ano (enquanto prova obrigatória) e os primeiros a ter realizado as provas finais do 4.º ano (em 2013). Ao mesmo tempo, estes alunos fizeram todo o seu percurso no ensino básico em contexto de crise económica, elevada contestação social e muitas carências de recursos financeiros nas escolas (que ainda existem) — algo que interferiu com o funcionamento das escolas e, pode-se supor, poderá ter tido algum tipo de impacto negativo nos processos de aprendizagem.

Ou seja, é difícil fazer veredictos políticos e decidir qual dos múltiplos factores foi o mais preponderante. No limite, pode-se afirmar que, nestes resultados, há mais de Nuno Crato do que de Tiago Brandão Rodrigues — mesmo, lá está, se essa herança política foi adulterada entre 2016 e 2018.

Em forma de balanço, na discussão política que marcará a publicação do PISA 2018, só uma coisa é certa: falar-se-á demais dos ministros da Educação, e de menos dos professores e do trabalho das escolas que, com imensas dificuldades e falta de recursos, todos os dias trabalham para que os seus alunos tenham as oportunidades que merecem. Como vimos, Portugal está ainda longe de o conseguir, em grande medida porque as autoridades públicas (e aí seja Nuno Crato ou Tiago Brandão Rodrigues, por razões diferentes) não têm conseguido estabelecer uma visão de longo prazo, que dê mais condições às escolas para combater as desigualdades sociais e para ajudar todos alunos — em particular os mais desfavorecidos. Portanto, apesar de haver um longo caminho por percorrer, no que o PISA 2018 tem de bom, eis uma medalha que os professores podem orgulhosamente prender ao peito.

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