“Chamo-lhe trauma. A cada confronto vosso, cada vez que tu, João, eras bruto com a mãe. Esse sofrimento que a mãe carrega, é o meu trauma, chama-se o meu trauma, o trauma da minha vida. Queria poder arrancá-lo.”
A árvore de Natal ainda estava por desmontar quando, nos últimos dias de 2021, Miguel Branco decidiu escrever as duas primeiras páginas do que viria a ser esse silêncio que determina o almoço, que se estreia esta sexta-feira, 18, na Casa da Música Jorge Peixinho, no Montijo. “Iniciei o gesto numa ótica de dizer: preciso de fazer isto, preciso de fazer qualquer coisa em relação a isto.”
“Isto” era verter para o papel o que lhe enchia o peito e ficava preso na garganta. A peça resulta “desta coisa de, ao longo do meu crescimento, ter visto sempre uma relação muito tensa entre a minha mãe e o meu irmão. A dor da minha mãe perante uma incapacidade de fazer com que o meu irmão se sentisse melhor, que não entrasse sempre em conflito com ela… Apercebi-me tarde como isso me marcou muito. Foi sempre como se tivesse sentido que tinha de tentar, de alguma forma, reparar aquela dor que ela sentiu e que ela sente”. “Eu não te admito que fales assim à tua mãe, ouviste? Eu não te admito, João.” Ao escolher mergulhar na história familiar, vasculhar o arquivo fotográfico, remexer em memórias, Miguel Branco propôs-se a trabalhar sobre a realidade — não será acaso o facto de ser ex-jornalista (i, Time Out, Observador) —, na esperança de encontrar um alívio qualquer, mas que ainda não chegou. “Se isto não resultar, pelo menos tentei. Esta é a minha tentativa”, crê. Se pode uma peça de teatro reparar o que acontece fora do dele é discutível, mas Miguel Branco está disposto a tentar.
No espaço cultural do Montijo, programado pela Companhia Mascarenhas-Martins (na qual Branco faz comunicação e assessoria de imprensa), observa um dos últimos ensaios antes da estreia. Sabe o risco que corre ao usar o teatro para contar nada mais do que a verdade e o texto, que escreveu e rescreveu e sobre o qual trabalhou durante meses, não reverbera menos por isso.
Até então, a carreira de Miguel Branco como dramaturgo conta-se pelas peças Até Parece (2019) e Há dois anos que eu não como pargo (2020), ambas encenadas por Levi Martins, sempre com um cunho biográfico — “é muito pouco provável que um autor escreva sem algo seu lá”, considera. Assumindo, pela primeira vez, a encenação, não se escudou em metáforas e personagens. “Não é que o João [protagonista] não represente uma personagem, mas ela é mais direta, ela é mais concreta. Estou a falar sobre mim, sobre a minha família, estou altamente exposto, está toda a gente muito exposta, Senti que precisava fazer isto nesta altura da minha vida.”
Impõe-se a pergunta: “Porquê agora?”. “É como se fosse uma última tentativa”, contesta. “E se através da arte pudéssemos tentar transfigurar as nossas relações e a forma como nos relacionamos?”, lança.
Miguel assume que se fosse ator seria o próprio a levar à cena o monólogo, um texto que “parte de uma vontade enorme de tentar exorcizar problemas através da arte e da escrita”, “das entranhas, direto, assumidamente terapêutico” e que, findo o processo de criação, ainda o abala. “A cada ensaio levo uma chapada de um sítio diferente do texto, porque aquilo me salta qualquer coisa. Nesta medida não me apaziguou nada”.
Um ponto rosa numa imensidão negra desloca-se pelo cenário. João Jacinto, “uma pessoa próxima e um grande amigo”, é o ator que interpreta o monólogo de quase três horas, com intervalo. “Sempre imaginei que fosse ele. Há ainda a curiosidade extra de ter o mesmo nome do meu irmão, inclusive o primeiro e o segundo, que é João Tiago”. O cor-de-rosa-pastilha-elástica vai além do guarda-roupa, pinta os acessórios e restantes elementos do cenário. “Adoro rosa. E há uma coisa muito naif do rosa ligado, na minha cabeça, a uma ideia de crescimento”. Além disso, confessa, “quando comecei a pensar no guarda-roupa pensei que gostava de usar em cena roupa que não sou capaz de usar na rua.”
Numa primeira encenação que é, inevitavelmente, concorda, um espetáculo de afirmação, que referências carrega o jovem natural de Almada, “onde começou a observar o quotidiano e a ser gente”? Elenca o francês Édouard Louis, em particular o espetáculo Quem Matou o Meu Pai, mostrado no Teatro Nacional D. Maria II no âmbito do festival de Almada, em 2020. A versão do encenador belga Ivo van Hove da adaptação para a cena do livro homónimo de 2018 assinado por um ainda jovem Édouard Louis, “foi um espetáculo que me desconcertou”. “Chorei a sério do primeiro momento até ao último”, admite.
Não se sabe quantos chorarão na estreia, tampouco quem estará na plateia. “Gostava muito que eles vissem o espetáculo, mas do ponto de vista do gesto que me levou a escrever, ele está cumprido. O meu gesto já lá está.” O que pretende com ele: purga, conciliação, reparação? Talvez haja “uma inocência um bocado esperançosa demais”, reconhece. “Se fizer isto será que conseguimos transformarmos e mudar a forma como comunicamos e como lidamos e como coabitamos? É como se tivesse uma inocência qualquer que me dissesse: se calhar isto resulta”, solta com um otimismo que nem sempre o acompanhou, numa viagem de carrossel emocional sem fim à vista. “No momento em que a minha família leu o texto tive um embate: se calhar foi muito estúpido. Se calhar foi muito parvo achar que isto tinha esse potencial. Entretanto, os meses passam e se calhar vejo vislumbres do efeito do texto nas nossas relações. Ou posso ser eu imaginar, mas é qualquer coisa.”
A brutalidade da exposição biográfica é defendida com o consentimento. Todos foram avisados, garante o dramaturgo, que relata como pediu autorização a todas as pessoas visadas neste espetáculo em que “é tudo verdade”. Fez entrevistas aos pais e ao irmão, o mais implicado de todos. Então emigrado na Noruega, disse-lhe, do outro lado do ecrã: “é a tua profissão, se achas que tens de fazer isto, não tenho nada contra. Fazes uma entrevista e está tudo bem”, recorda Miguel. “Provavelmente não está. Mas ele acedeu rapidamente ao meu desejo, e percebeu isso.”
Com os pais foi diferente. “Foi uma conversa intensa, dura, emocionante e emocional”, porque na história cada um tem as suas versões e verdades. Pediram-lhe alterações, nuances, reservas de alguns nomes. “Algumas acedi, outras não.” “É difícil. Não é que não haja artistas a fazer este tipo de trabalho, mas isto é uma coisa que não camufla grande coisa. Isto é um sítio de exposição grande.” “É sempre a minha família, são sempre memórias, é sempre mais um mergulho sobre o que é que é isto da minha história e como é que isto me marcou.” Em palco, o solitário João vai sendo interpelado pelas vozes dos pais e irmão de Miguel, interpretadas por André Alves, Luís Madureira e Maria Mascarenhas. Três vértices de um triângulo que amparam uma figura cheia de arestas por limar.
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“Um filho nunca é o filho que se sonhou” ouve-se a dada altura. É o constatar de um facto, mas também a evidência da resignação como única conclusão do conflito. A frase repete-se e sobre ela indagamos o encenador. A resposta é vaga. Na manhã seguinte à entrevista do Observador, Miguel Branco conclui que talvez não tenha respondido à pergunta. “Essa frase refere-se à ideia de um filho nunca corresponder à ideia que, antecipadamente, criamos dele, que vai ser isto ou aquilo, ser de determinada maneira, ter certos ideais”, escreve. “Depois um filho é o que é, o que pode ser, o que quer ser, e isso pode ser difícil para um pai ou uma mãe, sobretudo quando este se torna azedo, agreste, pouco afetivo, como acho que a cena onde está essa frase tenta reproduzir”, nota. Em relação à filha do próprio, que nasceu durante o processo de criação do espetáculo, e cujo nome é, propositadamente, excluído deste, “ela é de facto a filha que eu sonhei, pelo menos para já”. “Hoje é amorosa e dá-me carinhos, mas um dia também ela vai ser dona de si, do seu discurso, vai ser irónica, provavelmente, desagradável”, diz sem ilusões. “Isso vai ser difícil.”
Casa da Música Jorge Peixinho (Montijo). 18 de outubro a 3 de novembro, sexta e sábado, às 21h30, domingo, às 16h30. Bilhetes a 10€.