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Oficialmente, Kiev não disse nada. Oficiosamente, disse tudo. Na Rússia, Vladimir Putin disse o que era esperado: o ataque da Ucrânia à ponte do Estreito de Kerch, esta segunda-feira, terá resposta e o plano já está em marcha. Fontes anónimas do SBU, as secretas ucranianas, detalharam como o ataque aconteceu, mas o mesmo Serviço de Segurança limitou-se a publicar versos enigmáticos nas redes sociais: “Soloveyko [rouxinol], querido irmão, a ponte adormeceu novamente. Mais uma vez… Duas.” Soloveyko não é um pássaro usado por acaso — o rouxinol é um símbolo da liberdade na Ucrânia. Com todos os indícios de que havia mão ucraniana na explosão que matou um casal de russos e deixou ferida a sua filha, acabou por ser um ministro de Volodymyr Zelensky o primeiro a dizer frontalmente que o ataque tinha sido levado a cabo por drones ucranianos.
No imediato, o ataque à ponte é também um ataque pessoal ao Presidente russo, responsável por uma obra com que czares sonharam, mas apenas debaixo da sua liderança foi construída. Para o esforço de guerra russo torna tudo mais complicado, já que as tropas estacionadas no sul da Ucrânia dependem do abastecimento que é feito através da ponte que liga a Rússia à Crimeia, anexada em 2014. Para os ucranianos é simbólico: consideram que a ponte não devia existir e é um sinal de que recuperar a península ucraniana continua a estar na sua mira.
De resto, é de esperar que Putin cumpra a sua palavra com uma grande ofensiva contra território ucraniano, enquanto que de Kiev se espera que volte a atacar a ponte, mas focando-se na ferrovia, essencial para o transporte de alimentos e munições para a frente da batalha.
A ponte da Crimeia, ou ponte do Estreito de Kerch, tem 18,1 quilómetros de comprimento e é a ponte mais longa da Europa, ultrapassando a Ponte Vasco da Gama (12,3 km de comprimento), que é a segunda maior. É um conjunto de duas pontes paralelas, uma com quatro vias rodoviárias, outra com duas vias ferroviárias. Liga Kerch, na Crimeia, a Taman (Krasnodar), na Rússia.
O ataque desta segunda-feira danificou apenas a ponte onde circulam carros. A 8 de outubro, quando a ponte foi atacada pela primeira vez, tanto a ferrovia como a rodovia ficaram destruídas. A primeira voltou a reabrir em fevereiro deste ano, a segunda em maio. Desta vez, os russos preveem que os trabalhos de reconstrução durem três meses.
A reação da Rússia: ataque terrorista que merece resposta “desumana”
Em outubro de 2022, Vladimir Putin considerou o primeiro ataque à ponte de Kerch um atentado terrorista. Agora, o Presidente russo voltou a afirmar o mesmo e prometeu vingança. “Haverá resposta da Federação Russa”, disse, citado pela agência estatal Ria Novosti. “O Ministério da Defesa está a preparar um plano de ação adequado”, acrescentou Putin.
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“Este é um crime sem razão, do ponto de vista militar não tem significado, uma vez que a ponte não é usada para transporte militar há muito tempo. E cruel, porque civis inocentes ficaram feridos e morreram”, sublinhou o Presidente da Rússia. Às autoridades locais, que dirigem a península anexada à Ucrânia há nove anos, pediu especial atenção para a criança que ficou órfã, depois de os seus pais terem morrido na explosão.
Já o antigo Presidente russo Dmitry Medvedev defendeu que os atacantes merecem tratamento desumano. “O mundo e a nossa experiência mostram que é impossível lutar contra terroristas com sanções internacionais”, escreveu, no Telegram, Medvedev. “Apenas percebem a linguagem do poder. Apenas percebem métodos desumanos. Assim, é preciso rebentar com as suas casas e com as dos seus familiares.”
É preciso “procurar vingança” pelo ataque à ponte, diz governador russo da Crimeia
Medvedev defendeu ainda ser necessário eliminar os cúmplices dos terroristas e abandonar a “ideia insípida” de julgá-los, já que o mais importante é “destruir a liderança” das formações terroristas. “É difícil, mas possível”, concluiu.
O simbolismo de destruir a ponte e a mensagem que não pode ser apagada
O analista militar Sean Bell, veterano britânico, encontra três motivos para o ataque à ponte de Kerch. “Foi construída em território ucraniano ocupado. Foi construída sem autorização da Ucrânia e é provavelmente por isso que os ucranianos a consideram um alvo legítimo”, começou por explicar no seu comentário habitual na Sky News.
Se para os ucranianos simboliza a opressão russa, para os russos simboliza quase o contrário: uma dádiva da Rússia à Crimeia. “Um indício de como esta ponte é importante para Putin é que ele a atravessou, ao volante do seu Mercedes, em maio”, detalhou Sean Bell. Nessa altura, terminavam as obras de reconstrução, em tempo recorde, da ponte destruída em outubro de 2022. Antes disso, em 2018, Putin também atravessou a ponte, inaugurando-a. Nessa altura, conduzia um camião.
Voltando aos três motivos, o primeiro apontado pelo militar britânico é a questão estratégica. “A luta no norte, no Donbass, é muito próxima da fronteira da Rússia, mas as forças que lutam no sul estão muito longe”, argumentou. Assim, disse Sean Bell, a ponte de Kerch é muito importante para abastecimentos.
“Segundo, é altamente simbólico. Putin tem imenso orgulho naquela ponte e um ataque à ponte é um ataque a Putin. Ele não ficará nada feliz. Terceiro, é uma mensagem. Putin controla as comunicações sobre o que se passa na guerra, mas é muito difícil esconder o facto de que a ponte foi atacada.” Para as pessoas que estão na Crimeia e querem sair, “será assustador, porque leva a guerra até à porta de casa dos moscovitas ricos que fazem férias nas praias desta região”.
Ao longo do dia, a imprensa russa foi relatando que havia filas de trânsito de várias horas de pessoas que tentavam sair da Crimeia.
A dimensão dos estragos aponta para uma explosão debaixo da ponte
As fotografias mostram danos que parecem extensos, disse Sean Bell, mostrando as imagens que foram correndo nas redes sociais. No entanto, e ainda antes de isso ter sido assumido, o militar afirmou que tudo apontava para um ataque de UAV (veículo aéreo não tripulado, como drones).
“Chegou a especular-se que a ponte foi atingida com misseis entregues pelo Ocidente, mas se olharmos bem podemos ver que as barricadas não foram atingidas e, portanto, o ataque não foi de cima, mas por baixo, ou seja, devem ter sido usados drones submarinos, ou algo do género, para causar a explosão. Mas, tal como em outubro, poderemos nunca vir a saber”, concluiu o analista militar.
Também na CNN, o militar e analista Cedric Leighton falou de um ataque “altamente simbólico”, já que a ponte é a única coisa que liga a Rússia à Crimeia. “Os estragos são de uma dimensão que tornam impossível o trânsito passar”, explicou Leighton, defendendo que o ataque “vai ter um enorme impacto no abastecimento” das tropas russas estacionadas no sul da Ucrânia.
O passo seguinte? Phillips P. OBrien, historiador norte-americano e professor de estudos estratégicos na Universidade de Saint Andrews, na Escócia, deixou a sua previsão no Twitter: “Sim, parece que a estrada está destruída. Agora, imagina-se, os ucranianos irão atacar a ferrovia.”
A ponte é estrategicamente importante e está ao alcance de Kiev
A ponte de Kerch é uma infraestrutura logisticamente significativa, explica George Barros, um dos principais analistas do Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla em inglês) e um dos investigadores que assina com regularidade os briefings diários da guerra daquele think tank.
“A Rússia terá apenas uma linha de abastecimento terrestre — a rodovia costeira no Mar de Azov — para abastecer (ou evacuar) as suas dezenas de milhar de soldados nas regiões ocupadas de Kherson e da Crimeia, se Kiev conseguir degradar/destruir a ponte”, escreveu no Twitter.
The Kerch Strait Bridge is a logistically significant object.
Russia will only have 1 ground supply line – the costal highway on the Sea of Azov – to sustain (or evacuate) its tens of thousands of troops in occupied Kherson & Crimea if UKR manages to degrade/destroy the bridge. pic.twitter.com/f2Uaj6XE5u
— George Barros (@georgewbarros) July 17, 2023
Essa ideia, de que Kiev vai continuar a tentar destruir a ponte, é defendida por Tymofiy Mylovanov, presidente da Kyiv School of Economics e que chegou a fazer parte de um Governo ucraniano. “A Crimeia é vulnerável e com o tempo a Rússia não conseguirá segurá-la. Este episódio mostra o porquê: a Crimeia está ligada à Rússia através desta ponte Kerch e ligada por uma faixa de terra ao leste da Ucrânia. A ponte terrestre está dentro da linha de fogo da Ucrânia. Além disso, as forças armadas ucranianas têm feito progressos lentos, mas constantes, para cortar esta ponte.”
Assim, o homem que chegou a ter a pasta do Desenvolvimento Económico e do Comércio (2019-2020) acredita que a infraestrutura é “vulnerável à sabotagem” ucraniana. “Independentemente do que aconteceu esta noite, a Ucrânia é capaz de tornar esta ponte insustentável com o tempo”, defende Mylovanov.
Alternativas existem, como os ferries que ligam a Rússia à península, mas, como Mylovanov frisou, também estes podem ser atacados por drones.
“Se a Ucrânia continuar a pressionar as ligações logísticas entre a Rússia e a Crimeia, eventualmente a Rússia terá de abandoná-la.” Juntamente com ataques de drones e mísseis a bases militares importantes, a Ucrânia pode tornar a Crimeia um lugar que não é seguro para os militares russos, defende o ucraniano. “Sem poder manter militares na Crimeia, não há razão para a Rússia e os russos ficarem lá. E a Ucrânia pode levar o tempo que for necessário para atingir esse objetivo. De muitas maneiras, libertar a Crimeia é mais fácil do que libertar Donbass.”
O que aconteceu, afinal? As reações que chegam de Kiev
No seu habitual discurso televisivo, Zelensky não falou da ponte. Dedicou todo o tempo de antena a falar sobre o acordo de cereais, a que os russos puseram fim no mesmo dia em que a ponte foi atacada.
Dmitro Kuleba, em entrevista à CBS, disse ter sabido do ataque pelas notícias. “Soube pela imprensa devido à diferença do fuso horário”, esclareceu o ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia. “Não tenho nenhuma informação oficial, mas a verdade é que uma ponte russa destruída significa menos vidas ucranianas destruídas, porque esta ponte é usada para reabastecer o exército russo com recursos adicionais na Crimeia ocupada e nos territórios ocupados no leste da Ucrânia”, acrescentou ao canal norte-americano.
“Stop playing hunger games”: Ukraine’s foreign minister, @DmytroKuleba, says Russia is “using hunger as an instrument” as it “slowly kills the grain initiative” that has helped Ukraine export grain across the globe since early in the invasion. pic.twitter.com/orrnCXXe9F
— CBS Mornings (@CBSMornings) July 17, 2023
Um dos principais conselheiros de Zelensky, Mykhailo Podolyak, foi mais sucinto. “Quaisquer estruturas ilegais usadas para entregar instrumentos russos de destruição em massa têm necessariamente curta duração… independentemente das razões para a destruição”, escreveu no Twitter.
Entre os serviços secretos, nada se ouviu, a não ser das fontes anónimas que, à imprensa internacional, explicaram que “foi difícil chegar à ponte, mas no final foi possível”.
A explicação final acabou por chegar via Telegram pela mão de Mykhailo Fedorov, que detém a pasta da Transformação Digital no Governo de Zelensky. “Hoje, a ponte da Crimeia foi explodida por drones navais”, escreveu Fedorov. “É melhor agir e não revelar fotos das nossas instalações de produção”, disse, explicando que o tipo de drones usados ficaria em segredo. No entanto, deixou um recado: de onde saíram estes, sairão muitos mais. “A produção já aumentou mais de 100 vezes em algumas categorias em relação ao ano passado. Precisamos de ainda mais drones. E haverá mais.”