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Ricardo Salgado, Carlos Santos Ferreira, Armando Vara e Jardim Gonçalves. Ilustração: ANA MARTINGO/OBSERVADOR
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Ricardo Salgado, Carlos Santos Ferreira, Armando Vara e Jardim Gonçalves. Ilustração: ANA MARTINGO/OBSERVADOR

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

Ricardo Salgado, Carlos Santos Ferreira, Armando Vara e Jardim Gonçalves. Ilustração: ANA MARTINGO/OBSERVADOR

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Por onde vai a banca em Portugal (e os casos de desgoverno que nos trouxeram até aqui)

Pré-publicação. Jorge Braga de Macedo, Nuno Cassola e Samuel da Rocha Lopes escrevem sobre o passado, o presente e o futuro do setor bancário nacional, num livro que ilustra o "desgoverno" que existia

O ex-ministro das Finanças Jorge Braga de Macedo é um dos autores de “Por onde vai a banca em Portugal?“, um livro publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos que descreve o passado, o presente e antecipa o futuro do setor bancário nacional, além de dar propostas para melhorar a supervisão financeira.

O trio de autores é composto por Braga de Macedo, Nuno Cassola, ex-quadro do Banco de Portugal e do BCE, e Samuel da Rocha Lopes, que está na Autoridade Bancária Europeia (EBA) e já foi economista no BCE e no Banco de Portugal. O Observador faz a pré-publicação de uma parte deste livro – que já está à venda – que resultou de entrevistas e discussões com vários profissionais sobre o sistema bancário português e que ajuda a perceber como aconteceram os “exemplos de desgoverno” que nos trouxeram até aqui.

O livro, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, já está à venda.

Exemplos de casos de desgoverno na banca em Portugal

O sistema bancário português apresentou entre 2000 e 2019 várias situações de desgoverno em vários bancos. Realçamos apenas alguns exemplos dos maiores bancos do sistema bancário.

BES — O fim de uma era

O Grupo Espírito Santo constituía em 2013 um conglomerado prosseguindo uma estratégia de concentração vertical e horizontal a partir do, e apoiado no Banco Espírito Santo (BES).

Gestão e supervisão bancárias ineficientes

Temos uma história de governo societário concentrado, com pouca discussão interna, e um líder carismático intocável (eram razões mais que evidentes para a necessidade de supervisão bancária activa). O BES mais parecia, a certa altura, uma máquina de distribuição de crédito concentrado e relacionado, sem qualquer gestão dos riscos assumidos (empréstimos concedidos ao grupo BES — empréstimos intragrupo não financeiro eram considerados sem risco), consequentemente com provisões subestimadas e uma subcapitalização crónica para estes riscos potenciais que se iam acumulando e concentrando. Para além disso, o grupo não financeiro expandiu‑se de forma impressionante, com o suporte da parte financeira e do banco BES, nomeadamente em zonas geográficas “quentes” e pouco transparentes: Venezuela, Líbia e Angola.

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Os créditos estavam em larga medida concentrados nas actividades: imobiliária, hotelaria, agro‑pecuária, saúde e telecomunicações. O grupo tinha uma estrutura complexa com inúmeras sociedades localizadas em abrigos fiscais, interligadas ao que parece desenhadas para escapar à atenção do supervisor bancário.

Acresce que o supervisor autorizou o BES a proceder ao cálculo de requisitos de capital para risco de crédito, o que naturalmente significava uma aprovação sobre a adequação de procedimentos de análise e gestão de risco de crédito do BES, que afinal não correspondia à realidade.

Segundo se percebeu das audiências parlamentares, nos anos antes da grande crise financeira ainda parece ter sido pensada por parte do supervisor bancário uma tentativa de percepção da estrutura do grupo. No entanto, esse projecto parece ter ficado adormecido talvez por ser “muito complicado”. O que é certo é que o supervisor acordou com um pesadelo. Tão complicada era a estrutura do grupo que provavelmente também escapava à compreensão dos gestores e accionistas, até que um deles decidiu fazer o trabalho e juntando as peças apresentou a solução do puzzle.

Segundo se percebeu das audiências parlamentares, nos anos antes da grande crise financeira ainda parece ter sido pensada por parte do supervisor bancário uma tentativa de percepção da estrutura do grupo. No entanto, esse projecto parece ter ficado adormecido talvez por ser “muito complicado”. O que é certo é que o supervisor acordou com um pesadelo.

Através de um grande e complexo conglomerado (Espírito Santo Group), com uma elevada opacidade na estrutura e na gestão, ocultaram‑se elevadas perdas financeiras. A estrutura de conglomerado foi sendo aceite sem medidas de supervisão e fiscalização de operações entre países e sem um contacto mais próximo com outras autoridades de supervisão estrangeiras, muitas delas da UE. A qualidade da governação do conglomerado podia também ter sido desafiada e melhorada através de acções preventivas por parte do supervisor bancário. Tais situações não precaveram e propiciaram o avolumar de problemas financeiros e dificultaram depois a revelação desses mesmos problemas e perdas significativas como foi realçado pelo FMI em 2016.

Desgoverno desesperado

Na fase de desgoverno desesperado o BES colocou papel comercial na rede de retalho, directamente ou através de um fundo de investimento de liquidez (ES Liquidez), onde manifestamente não se cumpriam os critérios legais de diversificação de carteira, o que originou mais tarde a intervenção da CMVM, naquele que terá sido o mais famoso jogo de Ponzi da história financeira portuguesa e levou uma empresa de telecomunicações, a PT, a comprar quase um milhar de milhão de papel comercial do grupo BES não financeiro numa operação que viria a comprometer a própria expansão estratégica da PT no Brasil. É uma história ainda não concluída onde se parecem revelar fraudes contabilísticas comprovadas, delapidação de património, conflitos de interesses, e ainda a possibilidade de branqueamento de capitais e corrupção.

Tratou‑se, no entanto, de um processo prolongado, que deveria ter permitido a actuação atempada da CMVM e do Banco de Portugal.

Contexto histórico

É curioso notar que em 1973, nas vésperas do 25 de Abril, o grupo Espírito Santo constituía um conglomerado prosseguindo também uma estratégia de concentração vertical e horizontal a partir do, e apoiado no Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL). Por exemplo, a parte não financeira integrava verticalmente o cultivo da cana‑de‑açúcar (em Angola e Moçambique) com a refinação de açúcar em Portugal (SORES); a plantação de café (em Angola) com a torrefacção de café em Portugal (TOFA); e a extracção de petróleo em Angola (PETRANGOL; em associação com capitais belgas) com a refinação de petróleo em Portugal (SACOR).

Como exemplo de integração horizontal em Portugal temos o caso das actividades da construção imobiliária e do fabrico do cimento (esta só depois do levantamento do condicionamento industrial); e do comércio automóvel e fabrico de pneus (Firestone Portugal, em parceria com capitais estrangeiros). Não é difícil imaginar o papel da parte financeira do grupo (BESCL e Tranquilidade Seguros) no financiamento das actividades e na expansão nacional e internacional do grupo.

Dada a estreita proximidade pessoal e interesses económico‑financeiros entre o regime político e o grupo Espírito Santo é legítimo perguntar qual seria a cultura de risco do BESCL (se protegido politicamente) e qual o tipo de supervisão bancária exercida (e politicamente viável) nessa altura. Entretanto, enquanto os tempos mudaram a cultura interna e o estilo de governação e gestão do grupo parecem ter‑se cristalizado, até ao fim de uma era.

BCP — Da expansão agressiva à “Guerra dos Tronos”

Contexto histórico

Em 1985 o BCP é criado sob a liderança de Jardim Gonçalves com capitais de empresários do Norte do país. O BCP vai prosseguir uma estratégia agressiva de expansão. Em finais de Abril de 1998 cada acção do BCP estava cotada em Bolsa a 22,28 euros, o máximo histórico. Em finais de Abril de 2003 cada acção do BCP estava cotada a 5,15 euros. No virar do século havia a ideia de proteger os potenciais campeões nacionais, de modo a preparar o sistema financeiro para os novos desafios como a adesão ao Euro.

Governação ineficiente

A partir de 2005 desencadeia‑se uma “guerra de Tronos” para substituir Jardim Gonçalves na liderança do banco. Nessa guerra entram e saem accionistas tendo alguns deles sido financiados pela CGD, pelo BES e pelo próprio BCP. De um banco com capitais portugueses disperso pelos accionistas e sob controlo dos gestores acabou‑se num banco controlado por capitais chineses (Fosum: 27%) e angolanos (Sonangol: 19,49%). Pelo caminho ficou uma montanha de créditos incobráveis. (…)

Entretanto a história da cotação do BCP em bolsa é paradigmática, com uma quebra acentuada da cotação das acções a partir de meados de 2007.

Expansão agressiva com accionistas sem capital

Em finais de Junho de 2007 cada acção do BCP estava cotada a 16,78 euros. Em finais de Abril de 2017 cada acção valia em Bolsa apenas 21 cêntimos (uma quebra de quase 100%). A volatilidade das cotações do BCP ilustra as peripécias de uma expansão agressiva com accionistas sem capital para tais aventuras, e que provavelmente estavam a contar com a obtenção de mais‑valias bolsistas para fazer face ao seu endividamento crescente. (…)

De facto, num curto espaço de tempo, o BCP adquiriu bancos (Banco Português do Atlântico, e com ele o Banco Comercial de Macau e a União de Bancos Portugueses, o Banco Mello, e o Banco Pinto & Sotto Mayor), e seguradoras (Bonança e Império) e lançou‑se num projecto segurador europeu (Eureko).

Em finais de Junho de 2007 cada acção do BCP estava cotada a 16,78 euros. Em finais de Abril de 2017 cada acção valia em Bolsa apenas 21 cêntimos (uma quebra de quase 100%). A volatilidade das cotações do BCP ilustra as peripécias de uma expansão agressiva com accionistas sem capital para tais aventuras, e que provavelmente estavam a contar com a obtenção de mais‑valias bolsistas para fazer face ao seu endividamento crescente.

Desgoverno cosmético

Em Março de 2006 lança uma OPA sobre o BPI que, porém, não tem sucesso. O BPI considera a OPA como sendo hostil e o seu presidente Fernando Ulrich declara em público que “o BCP tem uma estrutura accionista frágil, sendo legítimo admitir que parte do capital é financiada com empréstimos do próprio banco”. Mesmo assim o BCP chega a deter 12,1% do capital do BPI que acabará por ser vendida a Isabel dos Santos (filha do presidente de Angola). Em 2004 o BCP vende à CGD as seguradoras Bonança e Império e ao Fortis as seguradoras do ramo vida. Com isso obtém alguma liquidez.

Desgoverno fraudulento

Em 2007 vêm a público notícias sobre a existência de 17 sociedades‑ecrã (offshore) que compraram acções do BCP com financiamentos do próprio BCP tendo sido criadas, entre 1999 e 2000, precisamente na altura da aquisição do BPSM e do Banco Mello. Em Dezembro de 2007 um dos accionistas do banco (Joe Berardo) denuncia manipulação de mercado e falsificação de contas por vias das sociedades‑ecrã. Um caso clássico de um esquema de Ponzi. (…)

CGD — Influência política e negócios duvidosos

A CGD apresentou ao longo do tempo vários casos que mereciam destaque como exemplos de desgoverno. Limitamo‑nos aqui a referir duas situações em concreto.

Governação ineficiente

A CGD viu‑se, recentemente, no centro de uma situação caricata. A nomeação de um banqueiro com currículo poderia ter reduzido a politização na CGD (embora não fosse de certeza suficiente dadas
as várias décadas acumuladas de problemas deste género). Parecia haver o potencial para adoptar um modelo de governação que pudesse seguir de perto as regras do sector privado mas seguiu‑se um episódio rocambolesco que culminou na nomeação de um banqueiro que tinha tutelado um ministério no governo anterior, após um período de avanços e recuos, entre diferentes modelos de governação, com disputas de poder entre membros do Conselho de Administração.

Desgoverno fraudulento

A acusação da Operação Marquês refere como a CGD terá praticado irregularidades na concessão de crédito. No caso de Vale do Lobo há suspeitas de crédito concedido para satisfazer as clientelas partidárias e pessoais de um administrador. A CGD injectou quase todo o dinheiro — como financiadora e accionista — num empreendimento imobiliário de rendibilidade duvidosa, conforme parecer da Direcção de Gestão de Risco que foi convenientemente ignorado pela administração. Feitas as contas à negociata, a CGD entrou com 97,4% do financiamento e ficou com 25% dos direitos de propriedade enquanto os amigos do administrador tendo contribuído com 2,6% do financiamento ficaram com 75% dos direitos de propriedade.

CGD e estruturas financeiras à luz de Minsky

Num artigo publicado nos Thames Papers in Political Economy em 1978 (Minsky, 1982), que havia caído no esquecimento até à grande crise financeira internacional de 2007‑2009 (Shefrin, 2016), Minsky avança a ideia de que a estabilidade de um sistema financeiro depende da estrutura dos passivos dos agentes económicos (bancos, empresas e famílias).

Minsky considera três tipos de estrutura financeira: 1) Prudente (hegde finance) quando, em cada momento, os influxos de caixa gerados pelos activos são superiores (em expectativa) aos fluxos de pagamentos devidos pelas responsabilidades contraídas (dívida; passivo); neste caso, a soma actualizada dos fluxos de caixa líquidos (recebimentos menos pagamentos) é, em cada momento, positiva. Numa estrutura financeira prudente, os passivos serão constituídos tipicamente por dívida de longo prazo e capitais próprios embora a existência de algum crédito de curto prazo (por exemplo para financiar capital circulante) seja compatível com uma estrutura financeira prudente; 2) especulativa (speculative finance) quando, no curto prazo, os influxos de caixa são inferiores aos fluxos de pagamentos totais devidos pelas responsabilidades contraídas, apesar da parte do rendimento nos influxos de caixa ser superior aos juros da dívida; numa estrutura especulativa, será necessário ir refinanciando a dívida, pelo menos no curto prazo; o valor actualizado dos fluxos de caixa líquidos poderá ser positivo ou negativo conforme o nível e a evolução das taxas de juro, baixas ou altas respectivamente; uma estrutura financeira será 3) Ponzi quando os influxos de caixa são inferiores aos fluxos de pagamentos totais devidos pelas responsabilidades e a parte do rendimento nos influxos de caixa é também inferior aos juros da dívida; numa estrutura Ponzi, será necessário aumentar o endividamento para satisfazer os encargos da dívida; neste caso o valor actualizado dos fluxos de caixa líquidos só poderá ser positivo se houver uma “bonança” no futuro, devido à valorização dos activos; e só a venda destes é que eventualmente permitirá o reembolso da dívida; este tipo de estrutura financeira é muito vulnerável a subidas de taxas de juro e/ou quedas nos preços dos activos.

Em suma temos:
1) estrutura financeira prudente: reembolso de dívida e pagamento de juros com recurso aos fluxos de caixa gerados pelo investimento;
2) estrutura financeira especulativa: pagamento de juros com recurso aos fluxos de caixa gerados pelo investimento; necessidade de refinanciamento da dívida no curto prazo;
3) estrutura financeira Ponzi: pagamento de juros com recurso a novo endividamento e reembolso da dívida só possível com ganho (suficientemente alto) através da venda de activos.

Em cada momento, coexistirão numa economia agentes com estes três tipos de estrutura financeira (bancos, empresas e famílias/indivíduos). De acordo com Minsky o que é relevante para analisar a estabilidade financeira de uma economia é o peso de cada tipo de estrutura de financiamento na economia e a sua evolução ao longo do tempo. Quando a percentagem de agentes económicos com estruturas financeiras especulativa e Ponzi ganham peso, a economia torna‑se propensa a sofrer crises financeiras, nomeadamente em fases descendentes do ciclo de negócios, agravando‑o. Importante na análise de Minsky é a ideia de que é altamente provável (embora não inevitável) que um período de crescimento económico esconda o aumento da importância relativa de estruturas financeiras especulativas e Ponzi, por exemplo, associadas a inovações financeiras, e euforias bolsistas ou imobiliárias, inevitavelmente alimentadas por ou dependentes da expansão do crédito bancário.

De facto, segundo Minsky, na fase ascendente do ciclo económico há factores psicológicos que fazem com que os agentes económicos subestimem os custos (futuros) do esforço financeiro associado ao aumento do endividamento. Os mesmos factores surgem no fenómeno de prociclicidade e concessão de crédito. Assim a fragilidade financeira tenderia a ser endógena. Os factores psicológicos e as circunstâncias que contribuem para a crescente alavancagem dos agentes económicos têm sido objecto de estudo da economia comportamental/psicológica moderna fornecendo uma base mais sólida e fundamentada à análise de Minsky (ver Shefrin 2016).

Ora é interessante constatar que a CGD alimentou ou até estimulou, pelo menos em 2006‑2007, estruturas financeiras do tipo, especulativa e Ponzi. Neste aspecto, o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito CGD II (Assembleia da República, 2019b) que ficou disponível já depois do nosso livro ter sido submetido para publicação, é muito esclarecedor. Ficámos a saber que não só a CGD participou activamente na “guerra dos Tronos” pelo controlo do BCP, como também que o fez concedendo crédito a um grupo de instituições/indivíduos em condições muito peculiares: 1) empréstimos a 5 anos com reembolso (integral) da dívida apenas no final do prazo; 2) parte dos empréstimos concedidos pela CGD foi utilizada para reembolsar créditos que haviam sido contraídos junto do BCP para compra de acções do próprio banco; 3) os mutuários tinham estruturas financeiras cujos rendimentos dependiam exclusivamente da venda e mais‑valias de participações e não dos fluxos de rendimento das aplicações; isto segundo análise da Direcção de Risco da CGD; 4) como garantias foram dadas apenas as acções adquiridas com o crédito da CGD. Financiamento Ponzi, pronto.

A CGD alimentou ou até estimulou, pelo menos em 2006‑2007, estruturas financeiras do tipo, especulativa e Ponzi. Neste aspecto, o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito CGD II (Assembleia da República, 2019b) que ficou disponível já depois do nosso livro ter sido submetido para publicação, é muito esclarecedor. Ficámos a saber que não só a CGD participou activamente na “guerra dos Tronos” pelo controlo do BCP, como também que o fez concedendo crédito a um grupo de instituições/indivíduos em condições muito peculiares.

Ignorar a capacidade de um negócio poder gerar rendimentos (fluxos de caixa) de dimensão suficiente para garantir o pagamento dos juros e o reembolso da dívida — apostando apenas na realização de mais‑valias, também caracterizou o financiamento do projecto imobiliário de Vale do Lobo. Além disso, neste caso ficámos a saber, com a II Comissão Parlamentar de Inquérito à Recapitalização da Caixa Geral de Depósitos e à Gestão do Banco (CPICGD II; Assembleia da República, 2019a), que o supervisor — Banco de Portugal — através duma carta enviada à CGD, chamou a atenção para os riscos inerentes ao empréstimo: e perante a duvidosa capacidade financeira dos mutuários a CGD não reforçou, como seria de esperar, as provisões específicas para a cobertura das perdas quando se tornou evidente que não haveria em Vale do Lobo nem vendas nem mais‑valias. Infelizmente ficámos sem saber qual foi a resposta da CGD à carta do BdP (se é que houve resposta) e subsequente troca de correspondência entre as duas instituições.

Não sabemos se estes casos são representativos da cultura de risco prevalecente na CGD e noutros bancos portugueses, à época. A avaliar pelas respostas ao nosso questionário e pelas entrevistas que realizámos é possível que sim. Ao conceder empréstimos em condições especulativas e Ponzi, a CGD contribuiu para a fragilizar a estrutura financeira do país, à luz de Minsky.

Mais uma vez foi um choque externo que abalou o edifício e o fez ruir. Mas o edifício, desta vez, nem alicerces tinha. Talvez tivesse testosterona a mais e diversidade a menos.

Resultados de um inquérito

Com o objectivo de ajudar a caracterizar a cultura de risco na banca em Portugal, foram realizadas entrevistas a profissionais de gestão do risco que trabalham, ou trabalharam a diversos níveis da hierarquia interna, nos principais bancos em Portugal. As entrevistas foram feitas com o suporte dum questionário uniforme, largamente baseado num inquérito internacional do Financial Stability Board que é do domínio público, mas onde infelizmente não foram incluídos quaisquer bancos de Portugal.

As respostas revelam muitas semelhanças na gestão societária que existia antes, durante, e após a crise financeira de 2007‑2009, nos diversos bancos em Portugal que, sem surpresa, estão por sua vez alinhadas com a evidência realçada no inquérito internacional acima referido.

As respostas permitem tirar algumas conclusões sobre o papel das falhas de governo societário e gestão do risco na banca em Portugal. Estas entrevistas, não tendo sido exaustivas, poderão e deverão ser melhorados em trabalho futuro.

Em paralelo, realizámos algumas entrevistas a supervisores que trabalharam no supervisor bancário, a fim de recolher uma perspectiva complementar sobre a cultura de risco das instituições bancárias portuguesas e sobre as eventuais falhas de supervisão bancária nos anos recentes.

O FSB, na sua revisão temática sobre a gestão do risco nos bancos internacionais (FSB, 2013) salienta o facto de as instituições financeiras não terem compreendido os riscos que estavam a assumir devido à fraqueza do governo societário. Pensamos que o mesmo terá acontecido nos bancos em Portugal e na própria supervisão bancária. Muitos conselhos de gestão das instituições financeiras incluíam indivíduos com pouca experiência na indústria financeira e com uma compreensão limitada da complexidade crescente das organizações de que eram responsáveis. Muitas vezes os directores dos bancos não dedicavam o tempo necessário para compreender o modelo de negócios do banco e os que se esforçavam por fazê‑lo ainda que condicionados por poderes limitados, esbarravam frequentemente com a indiferença dos outros directores e também externa (auditores e supervisores).

Era comum os conselhos de gestão não dedicarem atenção à gestão do risco, ou esforçarem‑se minimamente por introduzir uma estrutura efectiva tal como comités de risco, que facilitassem a análise da exposição do banco e questionassem construtivamente as propostas do conselho de gestão e as suas decisões. Ausente o contrabalanço de poderes, floresceu nas instituições financeiras uma cultura de risco excessivo e alavancagem crescente afectando toda a organização.

As entrevistas realizadas confirmam a ausência de uma verdadeira cultura de risco nos bancos em Portugal no período que antecedeu a grande crise financeira. Não havia modelos de risco com base empírica, muitas vezes nem sequer havia dados, os comités de risco eram pobres e os reportes internos medíocres; a integração da análise do risco nos processos de decisão era muito limitada ou nula.

A situação começou a melhorar com o aproximar de Basileia II (2007‑08) e sobretudo a partir de 2011. Contudo, equipas de modelização de risco, que foram criadas nalguns bancos logo no início do século xxi, foram confrontadas com indiferença ou, mesmo, marginalização interna e “ficavam a um canto a fazer modelos” com escassa relevância para a vida interna do banco.

Tópicos abordados, perguntas e respostas mais frequentes

Gestão executiva; Reuniões do conselho executivo

Evidência sobre debate interno e avaliação crítica de propostas alternativas?

  • Concentração de poderes e decisões
  • Debates não ficam registados em acta

Cooperação entre o conselho executivo e as funções horizontais de auditoria e gestão do risco?

  • Ausência de comités de risco e auditoria nalguns casos
  • Gestão de risco sem autonomia até 2005

Gestão não‑executiva; Reuniões do conselho de supervisão

Caso haja acumulação de funções, há: Justificação interna? Aprovação do supervisor? Procedimentos para mitigar os riscos da acumulação de funções?

  • Não havia

Garante recursos para as funções de auditoria e gestão do risco?

  • Mínimos até Basileia II
  • Basileia II constituiu uma boa ocasião para realçar a importância da gestão do risco

Membros do conselho executivo

Conhecimento, experiência, independência, acesso a informação e influência?

  • Pouco conhecimento e interesse em gestão do risco
  • Desconhecimento das metodologias
  • Incapacidade para apreciar os assuntos a fundo

Conflitos de interesse adequadamente avaliados e geridos?

  • Não

Políticas de treino, sucessão, e manutenção da capacidade colectiva dos órgãos de gestão?

  • Não

Envolvimento dos directores nas discussões? Abertura para discussão de pontos de vista alternativos? Directores têm informação e recursos para desempenhar as suas funções e apresentar pontos de vista alternativos ao conselho de gestão?

  • Concentração de poderes e decisões
  • Pouca abertura e risco de represálias

Área comercial (centros de negócios)

Gestores comerciais têm responsabilidades na gestão do risco tendo em conta o “apetite” da instituição?

  • Não

Monitoração activa dos limites de risco? Com que frequência?

  • Nalguns casos

Auditoria interna

Autonomia, autoridade? Recursos, posição hierárquica e funcional?

  • Sem envolvimento nas questões de risco até muito recentemente

Função de gestão do risco “CRO”: Director de gestão do risco

Recursos, posição hierárquica e funcional? Independência? Ligação às áreas operacionais?

  • Muito reduzido até Basileia II
  • Não havia pelouro de risco com reporte único
  • Modelos avançados internos de risco (A‑IRB) entendidos num sentido muito restrito (apenas para cálculo de rácios de capital)
  • Neste sentido as estruturas internas associadas aos A‑IRB não passavam o teste de utilização (seu uso no dia‑a‑dia para a gestão do risco e para a concessão dos créditos, definição de margens, apetite pelo risco, etc.)
  • Risco de taxa de juro e de liquidez sob responsabilidade da área finan ceira (CFO em vez de CRO), isto é, total ausência de independência na gestão destes riscos

Experiência do “CRO”? Posição hierárquica e funcional? Influência?

  • Em geral profissionais com graus académicos adequados e experiência profissional na banca comercial
  • Posição hierárquica muitas vezes abaixo de director
  • Resistências internas à transferência de responsabilidades e recursos humanos na gestão de riscos das áreas de negócios (particulares, empresas, liquidez, etc.) para a função emergente de gestão de risco

Reporte directo ao conselho de direcção? Acesso aos directores não‑executivos? Adequação da função revista regularmente pelo conselho de gestão?

  • Não
  • Mais em função de relações pessoais (lealdade) do que funcionais
  • Fiscalização exercida pelo Conselho Fiscal

Auditoria independente da função de gestão do risco cobrindo entre outros procedimentos, controlos internos, qualidade de reporte, medidas de atenuação do risco?

  • Auditoria sem conhecimentos de risco

Aprovação pelo conselho de gestão não‑executiva (supervisão) das estratégias de negócios, políticas de atenuação do risco, estrutura de definição da tolerância/apetite pelo risco, plano de capital e sua afectação interna?

  • Não

Declaração sobre a tolerância/apetite pelo risco

Declaração de apetite pelo risco? Permite transposição em limites de exposição para as áreas comerciais? Limites individuais podem ser quantificados para obter uma medida agregada do perfil de risco? Permite comparação entre apetitede risco e capacidade para assumir riscos?

  • Não havia

Limites de risco

Limites de exposição consistentes com apetite pelo risco? Violação dos limites analisada nas suas implicações sobre todas as partes envolvidas?

  • Risco de crédito avaliado por peritos
  • Limites sem ligação com risco
  • Ausência de limites à exposição ao risco de soberano (em euros)
  • Desvios dos limites com aprovação superior

CRO reporta prontamente ao conselho de gestão executiva as violações dos limites de risco?

  • Nalguns casos sim

Prestação de contas

Existem processos de agravamento quando haja desvios dos limites? Quais as consequências? Os empregados estão informados desses processos? O ambiente é considerado aberto e justo permitindo desafio crítico das decisões?

  • Não havia

Existem procedimentos de denúncia em suporte da gestão do risco? Que protecção dos denunciantes (em papel e na prática)?

  • Não havia

Comunicação

Existem mecanismos que garantam a expressão de pontos de vista alternativos aos diversos níveis de gestão? Faz‑se regularmente um balanço da efectividade desses mecanismos? De que forma é que
esses mecanismos afectam o dia‑a‑dia da gestão?

  • Não havia

São tiradas lições dos sucessos e erros passados? Como são comunicadas dentro da organização? Como influenciam a cultura da organização?

  • Prática ausente

Infra-estrutura de gestão de risco

Existem sistemas e equipamentos informáticos adequados para a gestão do risco? Permitem que os gestores tenham acesso atempado à informação? Está estruturada para a identificação e acompanhamento dos riscos?

  • Soluções informáticas para Basileia II (SAS) mas só a partir de 2007‑08
  • Tipo caixa negra desenvolvidos por consultores
  • Modelos sem base empírica sólida
  • Nalguns casos modelos sem ligação a limites ou política de preços (falham o teste de uso)
  • Soluções adquiridas no mercado (S&P, Moody´s, etc.) problemáticas com PDs iguais para todos os bancos e sem base empírica sólida; algumas soluções permitem o seu desenvolvimento interno

Existe uma estratégia para melhorar e manter os sistemas e equipamentos informáticos actualizados?

  • Recurso a soluções de mercado e consultores
  • Mais recentemente, nos últimos três anos, a situação melhorou bastante nalguns bancos

Agregação de dados

Existe capacidade para agregar todos os dados relevantes sobre a exposição ao risco? Existe capacidade para identificar concentração de risco e riscos emergentes? Qual a rapidez e qualidade de reporte?

A qualidade dos dados e seu tratamento melhorou a partir de 2007‑08 com Basileia II

Problemas com ligação entre sistemas

Problemas com a definição de incumprimento: as bases de dados sobre reestruturação de créditos a cargo exclusivo das áreas comerciais

Reporte

Existem reportes de gestão de risco? Qual a audiência? São fáceis de compreender e orientados para a tomada de decisão?

  • Motivados pelos requisitos regulamentares
  • Para diálogo com o supervisor
  • Mensais e trimestrais

Com que frequência são produzidos e distribuídos aos gestores? É suficiente para identificar os riscos emergentes permitindo a sua atenuação, quando e se for necessário?

  • Motivados pelos requisitos regulamentares
  • Para diálogo com o supervisor
  • Alguns casos de reporte interno independente de pressão regulatória

Banca portuguesa impreparada para a mudança de regime

Como se indicou no início, a adopção do Euro, em 1999, a redução significativa ou mesmo eliminação do risco cambial terá gerado a ideia de que a actividade bancária em Portugal já não teria riscos importantes para gerir. Adoptou‑se um modelo de empréstimos concedidos a taxa de juro variável com margem financeira fixa baseando‑se os ganhos em grandes volumes (pela quantidade e descurando a qualidade) com margens estreitas, o que era facilitado pela enorme disponibilidade de fundos nos mercados internacionais.

As entrevistas sugerem que a banca em Portugal não estava preparada para a “mudança de regime” que constituiu as privatizações, a moeda única, e a liberalização financeira. E muito menos para o
choque pós‑grande crise financeira e o subsequente programa de ajustamento financeiro e intervenção da chamada “Troika”. Beneficiando de algumas décadas de liquidez generosa e lucros
fáceis (derivados da quantidade de crédito concedido), e habituados a uma supervisão muito pouco intrusiva, os banqueiros portugueses alimentaram uma cultura societária que vinha do passado distante (Estado Novo) e recente (bancos nacionalizados), onde preocupações sobre o risco estavam ausentes, e as influências pessoais (e políticas) predominavam, com um estilo de gestão autoritário, sem tolerar disputas internas.

Fica‑se com a impressão de que o modelo de negócios estava largamente assente na apropriação/extracção de recursos para ganho “pessoal”, familiar, ou de grupo (incluindo político), negligenciando a eficiência económica dos créditos concedidos e sem qualquer preocupação pela qualidade da moeda que se ia criando (alavancagem do sistema bancário e risco de qualidade).

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