A três meses de terminar um mandato que, aos olhos da tutela, estava a ser muito positivo — a ponto de Pedro Nuno Santos lhe chamar o “melhor presidente de sempre” — Nuno Freitas abandona a administração da CP. Justificou que cumpriu o essencial da missão a que se propunha, mas também lamentou os constrangimentos da gestão numa empresa pública.
Se o gestor foi poupado nestas explicações — logo no dia em que se soube da sua saída — o ministro das Infrastruturas foi mais longe na descrição das provações de um gestor público: “Eu conheço as razões do engenheiro Nuno Freitas há muito tempo, não são de agora. É muito difícil gerir uma empresa pública com as regras que nós temos. E é muito difícil pedirmos a um grande gestor, homem sério, de grande capacidade de trabalho e de realização, que fique muito tempo numa empresa que não consegue ter um Plano de Atividades e Orçamento aprovado, que tem uma dívida histórica acumulada gigantesca e que não pode ser saneada, portanto retirando capacidade e autonomia de gestão à empresa, que demora meses para ter uma autorização para comprar umas rodas. É absolutamente compreensível o desalento do presidente da CP”.
Sem nunca o referir, Pedro Nuno Santos fez críticas ao colega das Finanças. “Se dependesse de mim o problema estava resolvido. Tínhamos um plano Atividades e Orçamento aprovado em tempo, a empresa não esperava meses para conseguir autorização para fazer as compras que são fundamentais para o seu funcionamento, não tínhamos uma dívida histórica, com a dimensão que ela tem, durante tanto tempo sem a resolver”, disse. Os dois governantes vão ser chamados a dar explicações ao Parlamento por iniciativa do PSD.
Em declarações ao Observador, o ex-presidente da CP, Carlos Gomes Nogueira, reconhece que o quadro legal pelo qual a CP se rege tem normas de enorme rigidez, mas assinala: “O ministro resolveu transmitir um recado ao primeiro-ministro e ao ministro das Finanças. Ele que ponha o seu Governo a mudar o quadro legislativo para que a empresa tenha mais autonomia”, ainda que tenha de cumprir as regras europeias de ajuda de Estado e controlo orçamental.
Presidente anterior estranha saída antecipada: quem aguenta dois anos aguenta mais três meses
Sobre as razões para a demissão de Nuno Freitas, o seu antecessor afirma ao Observador que quem aceita o cargo “sabe ao que vai” porque as regras e constrangimentos são conhecidos. “Eu tinha todos os constrangimentos, mas resolvemos problemas. Não discutíamos na praça pública”. Carlos Nogueira estranha ainda que essas restrições sirvam de argumento para uma saída antecipada do cargo a pouco tempo do fim do mandato. “Quem aguenta dois anos, aguenta mais três meses”.
O gestor esteve à frente da CP entre 2017 e meados de 2019. Foi nomeado pelo ministro Pedro Marques numa altura em que a CP pouco investiu, mas foi na sua gestão que a empresa foi autorizada a avançar com o primeiro concurso para a compra de material circulante em mais de uma década — 22 automotoras — e com a contratação de quadros para a área da manutenção.
A adjudicação do contrato de 170 milhões de euros para os novos comboios foi já assinado pela nova gestão, tal como o contrato de serviço público que garante à CP o pagamento de compensações devidas pelas obrigações de o prestar num horizonte de 15 anos e que Carlos Nogueira diz ter deixado pronto após negociações com a Autoridade de Mobilidade e Transportes.
O gestor que veio do setor privado — esteve na Groundforce e na Europartners (empresa de reestruturação empresarial) — diz que aceitou o cargo de presidente da empresa “por um espírito de missão” — era uma experiência única que não tinha e a CP é um grande player em Portugal. “Mas se tivesse problemas financeiros na minha vida privada nunca aceitaria o cargo”, afirma, referindo-se aos salários permitidos na empresa pública.
Com a chegada de Pedro Nuno Santos à pasta, a ferrovia acelerou com outros protagonistas. Carlos Nogueira foi afastado do cargo porque o Governo pretendia uma nova dinâmica no conselho de administração. Saiu em julho, a seis meses do final do mandato, e continuou a receber o salário até ao final do ano, como está previsto na lei.
Para a administração da empresa ferroviária, o ministro foi buscar Nuno Freitas, diretor-geral e acionista de uma pequena empresa de tecnologia ferroviária, a Nomad Tech que tem como acionistas a gigante Alstom e a Emef. Antes, Nuno Freitas tinha sido quadro da Emef, empresa que, por decisão da tutela, passou a ser integrada na CP.
Esta opção, defendida por vários no meio ferroviário, poderá ainda ter condicionado mais a gestão das despesas do grupo CP. A Emef, diz Carlos Nogueira, tinha mais autonomia para gerir os seus gastos, o que era importante por ser esta a empresa que compra as rodas referidas por Pedro Nuno Santos quando aludiu às dificuldades que a gestão da empresa enfrenta para tomar decisões de gastos correntes. Agora, rege-se pelas mesmas regras da CP.
“Nunca faltou dinheiro”, mas havia uma “demora desgastante” e falta de sintonia entre as tutelas
Ter como acionista o Estado com uma dupla representação não facilita. O ex-presidente da CP, Carlos Nogueira, reconhece que um acionista com duas tutelas dificulta a gestão. “É preciso um diálogo permanente para alertar para os problemas” e ter uma abordagem sistémica que envolva o tema financeiro. “Nunca tive dificuldades, mas demorava. O acionista Estado não tem a agilidade de um privado. A burocracia toma conta das organizações. É desgastante”. E “não existe sintonia entre as duas tutelas”: “Uma delas quer despesa para fazer investimento e a outra só vê números” porque tem de equilibrar as contas públicas e minimizar o défice.
Independentemente dos estilos mais vistosos dos ministros, é sempre assim. No entanto, Carlos Nogueira garante que nos dois anos em que esteve em funções “nunca faltou dinheiro à CP”, apesar das cativações: “Quando faltava dinheiro para pagar a energia falava com os responsáveis das Finanças e a descativação era autorizada desde que fundamentada”.
O “garrote” das Finanças às despesas plurianuais
Para além das famosas cativações, uma empresa pública como a CP está sujeita a regras acrescidas de controlo das despesas. A dimensão da dívida e a incapacidade de gerar resultados positivos — em grande medida devido ao subfinanciamento por parte do Estado — fazem com que a empresa ferroviária esteja classificada no perímetro do Estado, o que significa que as suas contas pesam no défice e na dívida pública. Há menos margem de manobra para gastar e as despesas são controladas “ao tostão” pelo Ministério das Finanças, o que resulta na demora das aprovações que o ministro das Infraestruturas denunciou numa indireta ao colega João Leão.
Mesmo existindo os recursos financeiros, os gastos têm de ser carimbados pelas Finanças. Estas regras vieram com a troika, em nome da disciplina orçamental imposta às empresas do Estado, mas não foram aliviadas com os socialistas, antes pelo contrário. Estes constrangimentos, de acordo com uma fonte empresarial ouvida pelo Observador, foram reforçados e podem paralisar a realização de despesas no caso de estas se estenderem por vários anos.
A autorização para assumir despesas plurianuais é hoje “o maior garrote” que existe à gestão corrente, diz a referida fonte. Basta a contratação de um bem ou serviço custar mais de 100 mil euros por ano e durante três anos e tem de ir a despacho nas Finanças. E isto aplica-se a contratos de compra de serviços como energia ou artigos de limpeza, mas também a empreitadas pequenas, até inferiores àquele valor. Basta não estarem previstas no plano e orçamento anuais aprovados (e no caso de estes estarem aprovados, o que não acontece com a CP), custarem mais ou demorarem mais que o previsto para exigirem também autorização.
As regras foram apertadas com o decreto-lei de execução orçamental publicado em 2019 e que ainda está em vigor (porque não foi publicado a versão anual de 2020 e 2021) Ainda que alguns investimentos prioritários e que contam com fundos comunitários tenham via verde para avançar, há centenas de pedidos relacionados com despesa corrente à espera de luz verde, que em alguns casos demora muitos meses ou nem sequer chega.
Dívida histórica? Dívida da CP é ao próprio Estado que cobra juros
O Plano de Recuperação e Resiliência (e os milhões anunciados) “poderia ser uma enorme oportunidade” para a CP “se modernizar” — mas, sem saneamento da dívida, não é possível. “O PRR poderia ser uma enorme oportunidade para a CP, para se modernizar, só que a CP tem um problema. Nós andamos a trabalhar muito perto com as entidades — Iapmei, Compete, Ministério das Finanças, da Economia, das Infraestruturas – contudo, como é público, a dívida da CP não foi saneada nestes dois anos e meio, em que fizemos todas as tentativas para que este saneamento da dívida histórica da CP [fosse feito]”, apontou Nuno Freitas esta semana numa audição parlamentar. A única solução, assinalou, é a de que CP seja considerada administração pública.
Para onde vão as centenas de milhões que o Estado mete na CP
Já sobre a dívida “histórica da CP”, que está há anos (na verdade, há décadas) por resolver e que arrasta a empresa para o tal labirinto das contas públicas, Carlos Nogueira assinala que o maior credor da CP é o próprio Estado (desde que o Tesouro passou a substituir a banca no financiamento às empresas públicas após o resgate financeiro). Depois de amortizado um empréstimo obrigacionista em 2019, o grosso da dívida de mais de dois mil milhões de euros é para com a Direção-Geral do Tesouro, a quem paga juros de dezenas de milhões de euros por ano. “É tirar do bolso direito para colocar no bolso esquerdo”.
A dívida é “descomunal” face à dimensão das receitas da CP. E se é verdade que o circuito está todo dentro do Estado, a solução para resolver o problema não é indiferente em termos de contas públicas. A realização de aumentos de capital para cobrir esses défices e dívida e repor a autonomia financeira acaba por pesar mais no défice.
Um código de contratação bem intencionado, mas “cego”
Mesmo quando há dinheiro e autorização para gastar, a empresa tem de cumprir as regras da contratação pública. Lançar concurso público, escolher a proposta mais baixa (mesmo que o fornecedor não seja de confiança) permitir tempo para reclamações e impugnações — que em regra passam por providências cautelares que travam os concursos até serem contestadas. E depois da decisão final é preciso esperar pelo visto do Tribunal de Contas.
Na já referida audição parlamentar, o agora demissionário presidente da CP foi claro a explicar estas limitações a propósito de alegadas irregularidades da empresa contratada para fazer a limpeza dos comboios, com quem rescindiu contrato na sequência dos salários em atraso dos trabalhadores. “O código de contratação pública é cego muitas vezes. Sabemos que temos empresas que se vão mantendo no mercado mudando de nome e aparecem como uma nova empresa. A CP não tem condições para escrutinar eventuais irregularidades. Quando os documentos de habilitação exigidos pelo código são apresentados, a CP tem de os aceitar sob pena de processos e impugnações”.
Nuno Freitas acrescentou: “Não estou a criticar todas as vertentes do código… mas se tivéssemos outra autonomia e desconfiássemos de uma situação de irregularidade ou que um contrato nos vai correr mal podíamos excluir um fornecedor, mesmo que ele surgisse com outra fachada. E não é só na limpeza. Quando queremos comprar um motor para um veículo e sabemos qual é o motor que nos vai dar problemas ao longo de 30 anos muitas vezes acabamos por ter de comprar um motor que é pior do que o velho”.
O código dos contratos públicos foi criado para trazer mais transparência e rigor às compras do Estado — e reduzir o risco de corrupção — mas por vezes é apontado como gerador de burocracia e obstáculos e poderia ser agilizado.