Dezassete operações de reforço de capital, no valor de cerca de 1,8 mil milhões de euros, mudaram a situação financeira e contabilística da CP?  A operadora ferroviária continua em falência técnica com capitais próprios negativos de mais de dois mil milhões de euros e incapacidade de gerar recursos que lhe permitam cobrir a totalidade dos custos, sobretudo no que toca aos encargos financeiros com empréstimos. Mas há um dado positivo: a dívida remunerada da CP caiu cerca de 40% em quatro anos, sobretudo a que é devida a entidades terceiras fora do Estado, o que irá reduzir os encargos financeiros da empresa,

Prosseguindo uma política iniciada com o anterior Governo, o Executivo socialista realizou 17 reforços de capital entre 2016 e 2019. A última operação, anunciada esta segunda-feira, tem a singularidade de não ser um aumento de capital estatutário, mas sim uma entrada de capital que servirá para limpar uma parte dos prejuízos acumulados em anos de défices e melhorar o nível de capital próprio da empresa. Mas se esta é a finalidade contabilística da operação, o destino do dinheiro que entra é o de sair logo da empresa, para reembolsar um empréstimo obrigacionista que vence este mês.

Na legislatura que agora acabou, os reforços de capital na CP totalizam cerca de 1.800 milhões de euros, contudo só cerca de metade deste valor, 900 milhões de euros, é que correspondeu a reforços em numerário, ou seja entradas de dinheiro por parte do acionista. O resto dos reforços de capital foi feito através da conversão de créditos — empréstimos concedidos no passado pelo próprio Estado — em capital social.

Por outro lado, a esmagadora maioria dos fundos que entraram, voltaram a sair. Em respostas enviadas ao Observador há cerca de um ano, a CP confirmava que “as dotações de capital atribuídas pelo Estado à CP, a partir de 2015, se destinaram maioritariamente a dotar a empresa dos meios necessários para garantir o pagamento das amortizações de empréstimos e respetivos juros com vencimento no período”. Ou seja, serviram para pagar juros, amortizações e outros custos com a dívida gigantesca da operadora ferroviária. Este foi o principal destino do dinheiro entrado na empresa.

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Exemplo disso é a última “entrada de capital” comunicada pela operadora ao mercado que, segundo fonte da CP, será usada para reembolsar uma emissão obrigacionista de 500 milhões de euros feita em 2009 e que vence em outubro.

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No quadro enviado já esta terça-feira pela CP ao Observador, é possível perceber uma certa correspondência entre os valores que deram entrada na empresa desde 2015 e a dívida que vencia no mesmo ano e que tinha de ser reembolsada. Esses reembolsos foram feitos ao próprio Estado – atualmente o principal financiador da CP via empréstimos da Direção Geral do Tesouro – mas também a investidores privados detentores de obrigações emitidas pela empresa ou a instituições internacionais, como o Banco Europeu de Investimentos.

Entre o final de 2015 e 2018, a CP reduziu a dívida financeira de 3,5 mil milhões de euros para pouco mais de dois mil milhões de euros, segundo dados já de outubro enviados ao Observador. Em termos relativos foi a dívida a privados que mais encolheu: caiu mais de metade, para 544 milhões de euros, considerando já o reembolso da emissão obrigacionista deste mês. A CP já não tem empréstimos na banca privada, mas ainda tem um empréstimo obrigacionista que vence apenas em 2030.

A CP acrescenta que o diferencial entre as dotações de capital e o pagamento do serviço da dívida destinou-se, fundamentalmente, a suportar o investimento feito pela empresa em cada um dos anos.

Mas basta consultar os relatórios e contas da CP nesta legislatura para constatar que o investimento se manteve num patamar anormalmente baixo para a empresa: 12,2 milhões de euros para o ano de 2016, 16,3 milhões de euros para o ano de 2017 e 15,5 milhões de euros para o ano de 2018. As contas semestrais deste ano não referem valores, mas o Executivo anunciou um reforço de 45 milhões de euros para a operadora ferroviária contratar mais profissionais e reabilitar a frota velha que está nas oficinas, de forma a colmatar as falhas de serviço enquanto não chegam as novas composições.

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O grande investimento aprovado nesta legislatura para a compra de material novo só implicará compromissos financeiros quando for assinado o contrato para a aquisição de 22 novos comboios, apenas para o serviço regional. Já os custos com pessoal têm vindo a subir, sobretudo em 2018, com a reposição das carreiras e os acordos assinados com os trabalhadores, mas não numa dimensão financeira muito relevante, mais 6,7 milhões em cerca de 130 milhões de euros.

A realização de múltiplos aumentos de capital não é um exclusivo da CP. Tem sido praticada em outras empresas públicas, com destaque – pela sua dimensão – para a Infraestruturas de Portugal. Esta prática tornou-se comum no tempo do anterior Governo quando, por imposição de novas regras de contabilidade nacional às contas do Estado, estas passaram a incluir empresas cronicamente deficitárias, que antes estavam fora do défice público. Com esta alteração, os reforço de capital feitos pelo Estado acionista deixaram de pesar no défice público, passando ser meras operações de tesouraria e financiamento, sobretudo depois dos bancos recuaram nos empréstimos às empresas públicas.

Isso mesmo confirma o Instituto Nacional de Estatísticas (INE) quando questionado pelo Observador sobre o eventual impacto desta operação nas contas do Estado.

“Em contas nacionais o aumento de capital na CP não tem impacto no défice, uma vez que a empresa está classificada no setor das Administrações Públicas (AP) e os respetivos fluxos entre o Estado e a empresa consolidam. Naturalmente, estando classificada no setor das AP, os défices registados pela CP estão refletidos no défice global das AP”.

E de onde vem a dívida histórica da CP? Um dos objetivos da política de injeções de capital na empresa, iniciada em 2015, era o de assegurar o serviço da dívida histórica. Em 2014, o endividamento atingiu os quatro mil milhões de euros, dados consolidados que ainda incluíam os valores da CP Carga, entretanto vendida. Parte desta dívida vem do tempo em que a rede ferroviária e os investimentos associados ainda estavam na CP.

Outra parte vem dos investimentos que a própria CP fez já depois de ser criada a Refer — Rede Ferroviária Nacional, entretanto integrada na Infraestruturas de Portugal —  por exemplo, na compra e reabilitação de comboios. Estes investimentos foram feitos sem que a empresa fosse dotada dos recursos financeiros públicos, obrigando a CP como outras empresas do Estado, a aumentar o endividamento.

A dívida da CP resulta ainda da necessidade de financiar sucessivos défices operacionais e prejuízos, uma vez que a operadora continua a não ter um contrato com o Estado que remunere de forma adequada as operações que se enquadram no serviço público. E ainda não foi com este Governo que esse contrato foi assinado.