Steen Jakobsen conhece bem — e adora — Portugal. Mas diz que “já é altura de o país acordar“. Lisboa é uma das 35 capitais mundiais que o economista-chefe do dinamarquês Saxo Bank visita regularmente e vê com grande apreensão as mudanças que estão a ocorrer no país. Diz que Portugal “teve a pior mudança de governo de sempre” mas nem está surpreendido nem, tão pouco, assustado. Nem mesmo pelo facto de o economista prever que o PIB irá crescer, “com sorte”, 1% — metade do que o governo prevê no Orçamento.
O Observador entrevistou um economista dinamarquês que há muito é conhecido por ser dos menos ortodoxos da finança europeia, por não ter meias-palavras, e o resultado é uma entrevista marcada pelo tough love [amor duro].
Desloca-se a Lisboa com alguma regularidade. Como está a ler o percurso recente do país, nomeadamente a mudança de governo e o novo Orçamento?
Sempre que me desloco a Lisboa, o governo que está em funções, seja qual for, diz-me sempre que dali a seis meses o país estará com um crescimento de 2%. Infelizmente, vocês não vão conseguir sequer aproximar-se de 2%. Muito menos agora. Como é que se chega a um crescimento de 2% a reverter as reformas de aumento da produtividade que foram feitas, a reverter as poucas coisas boas que foram feitas? Já se está a ver nos últimos dados económicos, os indicadores do quarto trimestre e, agora, deste primeiro trimestre, os números estão a cair. E, além disso, existe um contexto externo de uma Europa em polvorosa, com a questão dos refugiados e os controlos de fronteiras. Se Portugal tiver sorte terá um crescimento de 1% este ano, não de quase 2%.
Não está confiante de que o novo governo conseguirá, como pretende, dar um novo ânimo à economia?
Como economista liberal que sou, acredito que vocês acabam de ter a pior alteração de governo de sempre. Mas pouco importa. O que os jornalistas e os economistas têm, regra geral, em comum, é que dão um enfoque excessivo à política, nos jornais e nas análises económicas. A verdade é que os políticos têm uma importância cada vez menor no que se passa, realmente, nas economias.
Como assim?
Não é devido aos políticos que algo muda no grau real de otimismo das pessoas na rua, na quantidade/qualidade de vinho que se bebe ao jantar, na capacidade dos países reformarem a sua economia — nada disso muda, na realidade, quer se tenha governos que se digam de esquerda ou de direita ou do centro. Em grande medida, damos demasiada importância aos políticos. A melhor política é zero — porque o que acontece mais frequentemente é a política saturar tudo à sua volta. Só vemos políticos com uma contribuição positiva algumas vezes em cada geração. Verá um Churchill, uma Thatcher, um Reagan (pode gostar ou pode não gostar de Reagan, mas ele mudou o panorama político mundial), um Mandela. Muito raramente, poderemos ver um visionário. O resto é cumprir calendário.
Mas falando de Portugal, em concreto, como está a ver a situação do país?
Portugal está em situação de emergência desde 2009/2010. 24 horas por dia, 365 dias por ano, há sete anos em crise. Não se pode continuar assim — e o problema é que vocês não estão a mudar nada no país e na economia. Pelo contrário. Visto de fora, e generalizando, a vossa economia continua a parecer uma coisa amorfa, com pouca ambição e pouco planeamento. Está na altura de acordar.
Mas as exportações, por exemplo, tiveram um ano recorde em 2015. Isso não pode significar que alguma coisa terá mudado (ou estará a mudar)?
Nem por isso. Isso é uma função da desvalorização interna e da procura externa. Como economista, se me perguntar, eu concordo consigo que os custos unitários do trabalho caíram. Mas isso aconteceu porque tinha de acontecer e porque é uma consequência direta da crise. Não foi uma escolha deliberada. Não houve um chefe do governo, há sete anos, a dizer “Ouçam. Vamos atravessar uma enorme desvalorização interna, vamos criar uma economia mais ágil e, a partir daí, vamos construir a base para exportar mais, apoiar as indústrias com bons resultados e, progressivamente, viver melhor”. O que aconteceu não foi um plano, foi uma consequência.
Um "enfant terrible" da finança europeia
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Steen Jakobsen tem mais de 25 anos de experiência em mercados financeiros e investimento. O economista-chefe do Saxo Bank — e chief investment officer — terminou os estudos na Universidade de Copenhaga em 1989 e passou por bancos como o Citibank e o Chase Manhattan e, também, o suíço UBS. Considera-se um “economista viajante” e visita com regularidade 35 países, onde o influente Saxo Bank tem clientes. É conhecido por falar sem meias palavras e sem medos, dispensando formalismos. É um crítico feroz dos estímulos monetários lançados pela Fed e por outros bancos centrais — “vai acabar em lágrimas, como sempre”, afirmou. Publica anualmente as “Previsões Inacreditáveis” (Outrageous Predictions) para o ano seguinte e, na edição de 2016, admitiu que Donald Trump tenha boas hipóteses de ganhar as eleições nos EUA. “Hillary Clinton não consegue ganhar as eleições. Ela é o símbolo do elitismo e as pessoas não querem isso – as pessoas querem o caos que Trump representa”, disse Jakobsen, numa entrevista recente à CNBC.
Instituições como o FMI continuam a identificar muitos desafios, mas também fazem alguns elogios. Não concorda com o que é dito?
Os documentos do FMI são documentos sérios, formais, bem-intencionados. Mas o que eu gostaria de ver era que Portugal fosse mais ambicioso. O que o FMI diz é uma completa inutilidade. É papel, com tinta lá derramada. O FMI tem a sua tese, mas o seu raciocínio também tem falhas. Claramente os programas de austeridade da troika não funcionam num ambiente de deflação e taxas de juro zero. Pode ter funcionado em alturas em que a inflação era elevada e ajudava a limar a dívida, com crescimento maior e taxas de juro maiores.
Mas posso depreender, então, que vê como positivo que o novo governo tenha um discurso e medidas mais expansionistas?
Já ouvi essa história de virar a página da austeridade. Boa sorte. Vejo este governo a falar numa viragem da “página da austeridade” na única altura em que Portugal se tornou competitivo como país. Agora querem recuar. Boa sorte.
“Boa sorte” porquê? O que vai acontecer, na sua opinião?
Vão voltar a cair em recessão. E vão incorrer em mais dívida e vão voltar a precisar de um perdão de dívida. O novo governo parece interessado em anular num ano o que se conseguiu em sete anos. Sobretudo quando toda a gente olhava para Portugal como um símbolo da mudança, é dececionante ver novamente o risco de que se perca o último rating e o BCE deixe de comprar as obrigações. Mas não acredito que a Europa deixará que Portugal fique sozinho, a apodrecer.
Mas o que quer dizer quando diz que Portugal precisa de ser mais ambicioso?
Têm um país lindo, têm alguns recursos naturais, têm o clima, têm vinho e gastronomia que estão entre os melhores do mundo, têm História, têm tudo a vosso favor. Ainda agora estive em Tóquio. É, provavelmente, dos modelos de sociedade mais homogéneos, com respeito pelos mais velhos, coesão social e valores. Mas é uma sociedade incapaz de se transformar e de reformar. 95% dos japoneses não falam inglês. Por muito talentoso que alguém seja, se não fala inglês e outras línguas, qual é a escala real do universo ao qual ele pode aceder? Não se pode ir muito longe.
E Portugal?
A vossa língua é uma das mais faladas do mundo e a generalidade das pessoas fala bem inglês, em comparação com outros países. Mas, apesar de tudo isto, têm uma dívida elevadíssima, um dos piores sistemas políticos da Europa, têm um Tribunal Constitucional que gosta de intervir na política. Porque é que Portugal tem dos melhores vinhos do mundo e não conseguimos comprá-los em lado algum? Alguma coisa está mal com o modelo económico. Um pouco de esforço e imaginação adicional podem fazer toda a diferença.
Mas sabe como alguns leitores vão ler o que está a dizer? Mais um economista de um grande banco a dar palpites sobre como devemos viver…
E podem pensar assim, naturalmente. Mas apenas digo que se Portugal quiser ser uma sociedade que vive no passado, sem mudança, boa sorte. Não vou ser eu que vos vou censurar por isso. Sou um economista ciente de que não sabe tudo mas que sabe o suficiente para poder dizer que o caminho que parece que está a ser seguido não é o que vos tornará uma sociedade mais aberta, com maior progresso. O que eu vendo é esperança e realismo. A abertura é tudo. A produtividade é tudo. Há uma correlação entre a educação, a inteligência, o chamado talento, e o progresso económico. Se aumentarmos a inteligência média das pessoas em 10%, isso levará a um desempenho económico melhor em 50%.
Diz que “vende” esperança e realismo. Uma espécie de tough love?
É simples. Se o senhor [o jornalista do Observador] quiser escrever um artigo mas se se conseguir que o artigo seja lido em mais locais, em mais países, no Brasil, isso é produtividade adicional e, como funcionário, merece receber os frutos dessa produtividade. O que não pode é querer receber mais do que a produtividade aumenta. Enquanto quiser continuar ser lido pelas mesmas pessoas, fazendo o mesmo trabalho mas exigindo receber mais, isso não é sustentável. Há que alinhar a economia e a expectativa das pessoas com aquilo que é a realidade. E a realidade é produtividade, é educação, é abertura.
Mas a sua visão é, portanto, de que o governo não tem grande possibilidade de afetar o rumo da economia. O que tem, então?
O futuro próximo de Portugal vai depender dos níveis gerais de taxas de juro na Europa, dos níveis de crescimento na Europa e da evolução da cotação do dólar norte-americano. Já o governo, mesmo dentro do país que gere, não pode mudar nada. Como se viu, se tentar apresentar um orçamento com mais gastos do que a Europa permite, volta para trás. Pelo menos volta para trás para dar um jeito aos números, esticar alguns multiplicadores e fica tudo bem. Para o bem e para o mal, contudo, o que vai definir se o governo tem ou não tem sucesso não está nas suas mãos.
Sim, mas qualquer Governo tem sempre oportunidade de tomar políticas que beneficiam mais uns do que outros…
Olhe para o Orçamento do Estado. Quanto dinheiro é que está, realmente, a mexer de um lado para o outro, a cada ano? Na Dinamarca só 2% da despesa é que muda de direção a cada negociação orçamental. Tudo o resto é despesa fixa. Não, o governo português não pode mudar nada. Claro que os políticos fazem muito alarido sobre o enorme impacto que as suas decisões vão ter mas, na realidade, isso faz muito pouca diferença. Os eleitorados podem não conhecer os números em detalhe, mas depois constatam que nada daquilo fazia diferença, de uma forma ou de outra. E também por isso é que perdem o respeito pelos políticos. A menos que haja uma intenção séria de mudança, quaisquer governos que surjam não conseguirão fazer mais do que beneficiar uns em detrimento de outros e, depois, vem outro governo que beneficia outros em detrimento de uns. Mas os recursos em questão são poucos, em qualquer dos casos. Mais valia fazermos uma lotaria anual.
O facto é que o governo anterior não conseguiu voltar a formar governo. Em outros países, aconteceu o mesmo. O que é que isso nos diz?
Não é possível vencer, por causa do contrato social. Veja o exemplo da Irlanda. Tinha um crescimento de quase 8% e o governo não conseguiu ganhar as eleições. Isso mostra que está alguma coisa mal com a Europa. A democracia tem um problema matemático quando mais de metade dos eleitores beneficiam de transferência de rendimentos. Porquê? Porque os 51% têm toda a racionalidade ao não quererem uma mudança.
Isso acontece em Portugal?
Portugal tem um setor público enorme. Encargos em cima de encargos. E toda a gente que beneficia do Estado de alguma forma, e isso inclui muitos no setor privado, tem um incentivo lógico — ao nível individual — para não querer uma mudança. Porque é que alguém há de votar para que lhe tirem dinheiro do bolso? Enquanto o Estado tiver esta dimensão, não poderá haver mudança — não só em Portugal mas em muitos outros lugares.
Que reflexo é que isso tem na política económica? No Orçamento do Estado, por exemplo?
Do que li no Orçamento do Estado, parece-me um compromisso entre aquilo que os credores europeus querem que Portugal faça e aquilo que os partidos da esquerda querem que seja feito. E eu odeio compromissos. Não vejo uma única medida de apoio àquilo que Portugal necessita, que é investimento estrangeiro. Até se prejudica essa rubrica com medidas como o aumento do salário mínimo, que não terá qualquer impacto na economia e vai resultar em menos empregos.
Há, também, uma aposta no investimento.
Sim, mas isso é bom. Ou melhor: nas circunstâncias atuais, um político que não queira investir devia ir preso. Vivemos num mundo em que 70% da dívida é emitida com taxas de juro negativas — é preciso investimento em infraestruturas.
Mas não foi isso que contribuiu, também, para o endividamento atual?
Certo, mas quando se pensa que Portugal tem quase uma dívida de quase 130% do PIB, será que isso significa que não se pode endividar mais? Não. Portugal deve endividar-se desde que o dinheiro sirva para investimentos produtivos. Tudo o que tornar Lisboa uma cidade mais atrativa para o investimento estrangeiro deve ser feito. Pequenas coisas. Desde que o dinheiro seja usado para isso, para tornar o país mais atrativo para o investimento, é uma ótima altura para investir. Mas se falamos em emitir dívida para pagar a dívida antiga ou para adiar decisões importantes sobre a dimensão do Estado e as pensões públicas, isso já poderá ser mais perigoso.