Como tem sido combatido o crime de corrupção pelo Ministério Público em Portugal desde o 24 de Abril? É a esta questão que o jornalista do Observador Luís Rosa respondeu no ensaio 45 anos de combate à corrupção, lançado no final deste mês de fevereiro pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Num registo misto de reportagem e entrevista, o jornalista narra a história recente do combate à corrupção em Portugal, bem como a respetiva evolução legislativa, através do percurso e dos olhares de cinco procuradores de três gerações diferentes: Euclides Dâmaso, Maria José Morgado, João Marques Vidal, Teresa Almeida e Inês Bonina. Percorre também os principais processos penais por crimes de corrupção nos últimos 45 anos.
O capítulo que o Observador publica, “A evolução do crime de corrupção”, o sexto do livro, aborda a evolução do crime de corrupção, que existe no ordenamento jurídico português desde o tempo de D. Maria II.
A evolução do crime de corrupção
O crime de corrupção existe no ordenamento jurídico português desde 1852. Reinava D. Maria II, filha mais velha de D. Pedro I, e a monarquia constitucional vivia a sua segunda fase, conhecida por Regeneração. Foi o governo do Duque de Saldanha, que iniciou precisamente o período da Regeneração, que aprovou o Código Penal. Figuras históricas do liberalismo português, como Rodrigo da Fonseca Magalhães (ministro da Justiça) e Fontes Pereira de Melo (ministro das Obras Públicas), foram alguns dos ministros que fizeram questão de assinar o primeiro Código Penal português.
Ficou criminalizada a aceitação de «dádivas» ou «presentes» por parte de «todo o empregado público [funcionário público]», «por si ou por interposta pessoa com a sua autorização ou ratificação, para fazer um ato de suas funções».
O crime fazia a distinção entre a corrupção para atos lícitos (atos legais que eram designados por «justos») ou ilícitos (contra a lei e que eram apelidados de «injustos»), e as penas evoluíam conforme os dois tipos de atos promovidos e se eram executados ou não. Estava também prevista especificamente a criminalização da corrupção dos agentes da justiça que alterassem, contra a lei, acusações ou sentenças.
A Primeira República e o Estado Novo pouco ou nada alteraram o enquadramento jurídico, e a democracia só veio criar um novo Código Penal em 1982. Aprovado pelo governo da Aliança Democrática (AD) liderado por Francisco Pinto Balsemão (mas inspirado em projetos elaborados pelo jurista Eduardo Correia em 1963 e 1966, que os governos de Marcelo Caetano nunca conseguiram aprovar), a nova lei penal continuou a fazer a distinção entre corrupção lícita («justa» em 1852) e ilícita («injusta» no primeiro código) e entre ato executado e não executado. As penas, essas, agravaram-se: 1 a 6 anos (e multa de 50 a 150 dias) para a corrupção ativa e passiva ilícita, e até 6 meses de prisão (ou multa até 30 dias) para a corrupção ativa e passiva lícita.
Pode dizer-se que a melhoria da tipificação do crime de corrupção poderia corresponder à opção política de iniciar o combate a um fenómeno que, desde sempre, assumiu proporções muito significativas ou mesmo endémicas. A ideia de que era preciso pagar algo mais a um funcionário público para conseguir uma decisão mais rápida ou contra a lei correspondia, na realidade, a uma prática bastante enraizada na sociedade.
Os primeiros tempos da democracia, até pelas dificuldades económicas vividas pelo novo regime, não foram diferentes do que tinha sido no Estado Novo, na Primeira República ou na monarquia. Aliás, por alguma razão as Ordenações Filipinas já proibiam as ofertas aos funcionários da coroa.
É preciso recordar que o período entre 1974 e 1986 se caracteriza por uma grande instabilidade económica e cambial. Em virtude das consequências de dois choques petrolíferos (1973 e 1979) e da necessidade de solicitar a assistência financeira do FMI em 1977 e em 1983, o próprio Estado debatia-se com uma falta generalizada de recursos financeiros e humanos.
Com uma administração pública muito lenta e burocratizada, a perceção que existe entre os agentes de justiça dessa época é que a corrupção era endémica e socialmente aceite. O que, aliada à incapacidade operacional de uma justiça que se debatia com as mesmas dificuldades que existiam em todas as áreas do Estado, fazia com que, na prática, o fenómeno não fosse combatido.
O fiscalista José Luís Saldanha Sanches, marido de Maria José Morgado, escreveu uma crónica famosa sobre o polícia sinaleiro dos anos 80 que recebia prendas e mais prendas nas vésperas do Natal — eram tantas que o seu posto elevado e circular estrategicamente posicionado na via pública ficava cheio de prendas aos olhos de todos. Metáfora perfeita desses tempos.
“Havia corrupção, mas era a corruptela, como lhe chama a PJ: «Tu dás-me o certificado de habilitações de que eu fiz a quarta classe, e eu dou-te vinte contos.» Era a gasosa, o speedmoney — uma cultura de corrupção muito enraizada. Encontra pegadas culturais de reação contra essa cultura no Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins, no Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, na obra do Padre António Vieira. Oliveira Martins fala da corrupção dos juízes que recebiam candelabros de prata no século xix. Gil Vicente fala de situações semelhantes no Auto da Barca do Inferno. E o Padre António Vieira teve de fugir para o Brasil por causa de ter dito que roubar é crime. A corrupção explica-se por Portugal ter sido durante muito tempo um país pobre. Depois, o português acha mal a corrupção do vizinho, mas, se for a corrupção para arranjar emprego para a filha dele, isso já não tem importância nenhuma, porque já é para o bem da família.” [Maria José Morgado]
Numa altura marcada pela instabilidade política própria de uma democracia cujos alicerces ainda estavam a ser construídos, conjugada com uma crise económica em que a inflação galopante corroía o poder de compra dos cidadãos, os serviços públicos eram muito deficientes. «Dar uma nota» a um polícia para não passar uma multa, a um fiscal da câmara para fechar os olhos a uma ilegalidade numa obra, ao notário para apressar uma escritura que normalmente demoraria meses a ser marcada — tudo isso eram práticas que faziam parte do quotidiano dos cidadãos e dos pequenos empresários. Os funcionários públicos, por seu lado, viam-no como forma de compor o seu parco salário. Tudo junto, eram práticas socialmente aceites.
“Havia essa criminalidade pequena, mas organizada e enraizada nas instituições, muito devido a uma ausência de informatização. Recordo-me de ter tido um processo em que o decisor, o último diretor do departamento de licenciamento em causa, dizia: «Eles chegam-me aqui com um carrinho de supermercado cheio de papéis para eu despachar. Carimbo e assino. Não consigo ver aqueles papéis todos.» Isso era uma coisa típica. Um funcionário que conhecesse bem o sistema conhecia as hipóteses todas de fuga, e o diretor só por amostragem, enfim, é que conseguia detetar uma ou outra situação.” [Teresa Almeida]
Havia também outro problema. Raramente chegavam queixas formais por corrupção, porque persistia uma mentalidade herdada da ditadura: o medo de fazer queixa contra alguém do Estado, por receio de represálias. Se pesquisarmos os Relatórios de Segurança Interna de 1991, 1992 e 1993 que têm dados sobre a década de 1980, o crime de corrupção não é destacado.
“O Estado funcionava de forma muito deficiente, mas estava em todo o lado. E, como tal, gerava, com hiper-regulamentação e omnipresença, muitas oportunidades de concessão de favores comprados. Mas raramente nos chegava conhecimento dessas matérias. Pode perspetivar-se pela ótica da cultura entranhada, no sentido de que «temos é de nos safar, toda a gente fez sempre assim». Ou seja, os cidadãos entendiam que não valia a pena apresentar queixa, porque senão ainda se prejudicavam. Predominavam práticas daquilo a que nos habituamos a considerar como Terceiro Mundo.” [Euclides Dâmaso]
A europeização e a consciencialização de que a corrupção prejudica o desenvolvimento económico, favorece as empresas inaptas em detrimento das mais competitivas e promove a desigualdade social, começam com a entrada para a CEE em 1986, mas não são imediatas. Será um processo gradual — tal como são evolutivas as modificações técnico-jurídicas sofridas pela tipificação do crime de corrupção entre o Código Penal de 1982 e até 2000.
É isso que faz com que os inquéritos de corrupção comecem a ter algum relevo estatístico, com um número total de processos entrados de 1411 entre 1994 e 1999 — o que dá uma média de 235 inquéritos abertos anualmente.
“O crime de corrupção começou por o pagamento ou promessa de pagamento ao funcionário e/ou ao titular de cargo político, tendo como contrapartida a prática de um ato ilícito ou um ato lícito. Era o sinalagma. Tinha de haver a promessa de um pagamento, a que corresponderia a prática de um facto.
Depois houve uma ligeira alteração, em que a prática do facto passou a ser um elemento para a graduação da pena. 58 Assim, bastava a simples promessa, e a corrupção passou a ser um crime de perigo abstrato.
A seguir, houve mais um avanço: não era preciso sequer verificar-se a prática do ato ilícito ou lícito, mas o ato podia ser subsequente ou antecedente.
Finalmente, podia haver promessa de contrapartida com intenção de obter a prática de um ato ilícito ou lícito, mas até podia nem ser praticado.” [Maria José Morgado]
Essa evolução na tipificação do crime de corrupção, juntamente com uma maior consciência social do problema e um aumento do know-how especializado das autoridades judiciais e policiais, fez com que os inquéritos de corrupção entre 2005 e 2018 quase duplicassem para uma média anual de 423 inquéritos, quando comparados com o período entre 1994 e 1999. Se juntarmos todos os crimes praticados no exercício de funções públicas, a média anual de investigações abertas passa para 2040 no mesmo períodos.
Hoje, já não é necessário estabelecer um nexo de causalidade entre o pedido e o suborno. Basta alguém prometer dar uma contrapartida para o crime se consumar — independentemente de o ato solicitado ter sido praticado ou não.