Papel de alumínio e água quente. É apenas com estes recursos que os bebés prematuros estão a ser aquecidos no hospital Al-Shifa, o maior na Faixa de Gaza. Seis acabaram mesmo por morrer nas últimas horas, avançou o Ministério da Saúde controlado pelo Hamas. Sem eletricidade, sem água portável e sem acesso a medicamentos, aquela unidade de saúde está a enfrentar uma situação “perigosa e precária”, como denunciou num tweet o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus.
O hospital Al-Shifa, localizado na cidade de Gaza, está longe de ser o único a enfrentar estas condições, isto porque as infraestruturas de saúde tem-se tornado um dos pontos nevrálgicos desta guerra. Face às acusações do Hamas e às críticas das organizações internacionais, as autoridades israelitas confirmam que existem ataques nas redondezas dos hospitais, mas garantem que não são um dos seus alvos. Numa entrevista à BBC, o Presidente de Israel, Isaac Herzog, lembrou que algumas das declarações do grupo islâmico não passavam de pura “propaganda”, garantindo que havia “eletricidade” e que tudo “estava a funcionar” no hospital Al-Shifa.
Na base das ações de Israel estará o facto de, debaixo dos hospitais, haver uma suposta rede de túneis secretos, que serve para fazer a circulação de armas. Telavive quer destruir estas infraestruturas, usando o argumento de que o Hamas usa civis como escudo humano. Por sua vez, o Hamas rejeita estas alegações e diz que as forças israelitas levam a cabo bombardeamentos indiscriminados.
As denúncias do Hamas e os alertas das organizações internacionais
Num momento em que a incursão terrestre ainda não tinha começado, um míssil disparado contra o hospital Al-Ahli gerou uma troca de acusações a 17 de outubro. O Hamas culpou Israel e falou inicialmente em 500 mortos, enquanto as autoridades israelitas responsabilizaram a Jihad islâmica. Nunca foi possível apurar quem realmente esteve por detrás do ataque, mas serviu como um prenúncio daquilo que ia acontecer nas semanas seguintes.
Na semana passada, as tropas israelitas entraram no “coração” de Gaza e, na sexta-feira passada, foi levado a cabo um ataque contra o hospital Al-Shifa, em que morreram 13 pessoas, e situação agravou-se a partir desse momento. O Hamas acusou Israel, ao passo que, à CNN internacional, o coronel das Forças de Defesa de Israel, Richard Hecht, rejeitou que o país tivesse “bombardeado” aquela unidade de saúde, apontando o dedo aos “meios de comunicação social” controlado pelo Hamas que teriam veiculado informações erradas. Segundo a versão do militar, tratou-se de um “míssil lançado pelas organizações terroristas dentro da Faixa de Gaza”.
Foi a partir daquele ataque que as acusações do Hamas sobre o estado dos hospitais subiram de tom. As organizações internacionais a trabalhar em Gaza também começaram a dar o alerta. No sábado, a Médicos Sem Fronteiras publicou, na conta oficial do X (antigo Twitter), que os “hospitais estiveram sob bombardeamentos sem parar” no dia anterior, enfatizando que o hospital “Al-Shifa foi atingido múltiplas vezes”.
????GAZA UPDATE
In the past 24 hrs, hospitals have been under relentless bombardment. Al-Shifa hospital has been hit multiple times. Our teams & patients are still inside.
Again, we urgently call to STOP ATTACKS on hospitals & for an immediate CEASEFIRE⤵️https://t.co/68YLaoZ5Ob
— MSF International (@MSF) November 11, 2023
A Organização das Nações Unidas (ONU) também interveio no sábado para sublinhar que quatro hospitais do norte da Faixa de Gaza estavam cercados pelas tropas israelitas, uma informação que foi sendo rejeitada por Telavive. Cerca de 24 horas depois, Tedros Adhanom Ghebreyesus elevou o tom no Twitter para expor as condições do hospital Al-Shifa, dizendo que já não “funcionava como um hospital”. “O mundo não pode ficar em silêncio enquanto hospitais, que deveriam ser refúgios, se transformam em cenas de morte, devastação e desespero.”
As condições relatadas pelos médicos revelam as elevadas dificuldades sentidas. O diretor do hospital Al Nasr, Mustafa al-Kahlout, assinalou à CNN internacional que, na sexta-feira, se sentia “completamente cercado” e que havia “tanques” fora do “hospital”. “Não podemos sair”, lamentou, descrevendo um cenário em que na unidade de saúde não havia “eletricidade, oxigénio para os pacientes, medicamentos e água”. “Não sabemos o nosso destino.”
Sob bombardeamentos constantes, o Ministério da Saúde de Gaza anunciou, esta segunda-feira, que quase todos os hospitais no norte da região deixaram de funcionar, sendo a única exceção o Al-Ahli. Vários doentes estão a ser transferidos para centros hospitalares no sul, onde a situação é mais pacífica, mas também estão completamente lotados. Mas, em certos casos — como os de bebés prematuros — é impossível haver essa transferência.
As justificações de Israel e o apoio limitado dos Estados Unidos
As autoridades israelitas querem destruir a rede de túneis que alegadamente estão debaixo dos hospitais e descartam por completo que estejam a levar a cabo uma matança indiscriminada. E até asseguraram que tentaram ajudar o maior hospital de Gaza. Numa publicação do X, as Forças de Defesa de Israel escreveram que tentaram, nas últimas 24 horas, entregar “300 litros de combustível à porta” do hospital Al-Shifa.
What could these Hamas terrorists possibly be doing with an RPG at the Quds Hospital? pic.twitter.com/Ajpnz0Hf4Q
— Israel Defense Forces (@IDF) November 13, 2023
“Contudo, o combustível permanece intocável depois de o Hamas ameaçar os profissionais de saúde”, alegou Israel. Citado pela BBC, Mark Regev, conselheiro do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, sinalizou que o combustível era “especialmente para os bebés e para as incubadoras”: “Ninguém queria ver esses bebés mal”. Contudo, em declarações à mesma estação de televisão, um dos cirurgiões na unidade de saúde Al-Shifa, Marwan Abu Saada, vincou que 30 litros de combustível apenas durariam “30 minutos” — e que diariamente, para o funcionamento normal do hospital, são precisos 10 mil litros.
Para que o “mundo entenda” o que o Hamas é capaz de fazer, num briefing e num vídeo (que não foi verificado por fontes independentes) divulgado à imprensa esta segunda-feira, o porta-voz das Forças de Defesa de Israel, Daniel Hagari, mostrou granadas e armas dentro da cave do hospital Rantisi, entretanto encerrado. “Quero que entendam: este tipo de armamento é para combates intensos. São explosivos, coletes explosivos, que estão nos hospitais.”
Israeli army releases video of what it says is clear evidence of Hamas using Rantisi Hospital in Gaza as a military base, hiding suicide vests, weapons, RPG’s, and hand grenades in the basement. Army also says it has evidence that hostages were kept in the hostage basement.… pic.twitter.com/M2mv5vgPnv
— Jotam Confino (@mrconfino) November 13, 2023
Para além disso, no mesmo vídeo, o responsável pela comunicação das forças armadas israelitas adiantou que há “provas” de que o Hamas escondeu reféns israelitas dentro do hospital Rantisi, apontando para uma “lista em árabe” que dá conta dos “turnos” dos militantes do grupo islâmico, que serviam para “vigiar” as pessoas em cativeiro. Este tipo de argumentos são utilizados por Telavive para demonstrar que os ataques têm uma justificação: eliminar o grupo islâmico.
Por seu turno, os Estados Unidos da América (EUA) também subscrevem a ideia que o Hamas utiliza os hospitais para “armazenar armas”. Em entrevista à CBS News este domingo, Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos, ressalvou, contudo, que Washington “não quer ver bombeiros nos hospitais, locais nos quais pessoas inocentes e pacientes recebem cuidados médicos e são apanhados sob fogo cruzado”.
“Estamos a conversar com as Forças de Defesa de Israel sobre isto”, indicou Jake Sullivan. Na mesma senda, esta segunda-feira, o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, sublinhou que tem a “esperança e a expectativa” de que “haja menos ações intrusivas dentro de hospitais”. “Mantemo-nos em contacto com os israelitas.”
Ainda que os Estados Unidos não tenham divulgado oficialmente os dados sobre o que se passa debaixo dos hospitais, a CNN Internacional avançou, citando um oficial norte-americano, que o Hamas tem um centro de comando debaixo da unidade hospitar Al-Shifa.
Os hospitais atacados
Hospital Al-Shifa
Sendo o maior em Gaza, com 700 camas, o hospital Al-Shifa desempenhava um papel fundamental na região. Desde sexta-feira, dia do primeiro ataque, o centro hospitalar ficou danificado — inicialmente apenas a unidade de doenças cardiovasculares foi fechada —, mas, no domingo, acabou por encerrar definitivamente. Mesmo assim, ainda se mantêm profissionais de saúde dentro do estabelecimento que não conseguiram sair de lá — e tentam, dentro do possível, prestar cuidados médicos a doentes graves e a bebés, alguns dos quais recém-nascidos.
O Ministério da Saúde controlado pelo Hamas estima que ainda estejam, esta segunda-feira, mais de 2.300 pessoas dentro do hospital Al-Shifa: cerca de 650 pacientes, entre 200 a 500 profissionais de saúde e 1.500 deslocados internos que se abrigavam na unidade de saúde. Espera-se que, a qualquer momento, consigam ser retiradas, mas não é certo quando isso possa ocorrer. À BBC, alguns profissionais que estão dentro do hospital reconhecem, no entanto, os riscos que uma retirada pode comportar, podendo resultar na morte de centenas de doentes, principalmente bebés.
Contrariamente ao que tem avançado o Hamas, Israel garante que quem quiser pode sair no hospital sem riscos.
Hospital Al-Ahli
Neste momento, este é o único hospital que funciona no norte da Faixa de Gaza, o cirurgião Ghassan Abu Sittah, que trabalha na unidade de saúde, descreveu ao jornal The New Arab um cenário em que chegam ambulâncias de dez em dez minutos. E não há um banco de sangue que assegure transfusões. “Os nosso feridos estão a morrer depois da cirurgia. Só há dois cirurgiões em duas salas para tratar mais de 200 feridos”, lamentou.
Sobrecarregado, este hospital está danificado, após ter sido atacado a 17 de outubro, lembrou Ghassan Abu Sittah, o que obrigou a readaptar algumas funções. O médico contou ainda à Al Jazeera que tem de realizar “procedimentos dolorosos em feridas de pacientes sem anestesia”: “Temos meios tão limitados que os mantemos apenas para cirurgias urgentes”.
Hospital Al-Quds
Depois do Al-Shifa, o hospital Al-Quds era a segunda maior unidade hospitalar no norte de Gaza e foi alvo de ataques desde a passada sexta-feira. Por ter ficado sem eletricidade, foi encerrado no domingo, anunciou o Crescente Vermelho num comunicado. Mesmo assim, ainda permanecem 500 pessoas dentro do hospital.
“Os profissionais de saúde estão a fazer todos os esforços para providenciar cuidados aos pacientes e feridos, tentando manter métodos convencionais no meio de condições humanitárias deterioradas e sem medicamentos, comida e água”, lê-se no comunicado do Crescente Vermelho.
Hospital Al-Rantisi e Al-Nasr
Fazendo parte de um complexo hospitalar, estes dois hospitais foram dos poucos que foram evacuados por Israel na sexta-feira. Em parte, porque o Al-Rantisi é o único hospital que tem uma ala oncológica pediátrica.
Antes da evacuação, recorda ao New York Times o diretor do hospital Al-Rantisi, Bakr Gaoud, as tropas israelitas danificaram o rés do chão do hospital e praticamente obrigaram a que os doentes e profissionais de saúde abandonassem o local. “Arrastámos os nossos pacientes das camas”, recordou o médico, acrescentando que alguns pacientes foram levados para o sul de Gaza, enquanto os que tinham um quadro clínico mais grave foram para o hospital al-Shifa.
Clínica Al-Sweidi
Numa tradução do árabe para português, esta clínica chama-se “sueca”, devido ao apoio financeiro que a Suécia deu para se instalar em Gaza. Segundo as Nações Unidas, acabou destruída na sequência de um ataque aéreo, que fez um número de vítimas que ainda está a ser contabilizado.
Hospital Indonésio
Também patrocinado por um país estrangeiro, desta vez a Indonésia, este hospital acabou por ficar parcialmente destruído após os ataques aéreos que começaram na sexta-feira. No domingo, o diretor do hospital, Atef al-Kahlot, dizia à Al Jazeera que a unidade de saúde, com 110 camas, estava a operar a cerca de 30% da sua capacidade, apelando à ajuda internacional.
Na sequência da intensificação dos ataques, o hospital indonésio acabou por fechar portas no domingo.