A forma sobrepôs-se quase sempre ao conteúdo. A discussão entre Joe Biden e Donald Trump ficou marcada por vários momentos de tensão, com o primeiro debate entre os dois principais candidatos à presidência dos Estados Unidos a evoluir frequentemente para ataques pessoais (e até para uma insólita discussão sobre quem joga melhor golfe) e uma presença apagada de Joe Biden, que hesitou e se atrapalhou em várias respostas, enquanto ia sendo repetidamente atacado por Trump, neste debate 90 minutos desta sexta-feira (quinta-feira à noite nos EUA) organizado pela CNN.
O fraco desempenho de Biden, que aos 81 anos já partia para o debate com a tarefa de minimizar as dúvidas lançadas por Trump sobre a sua real capacidade para levar a cabo as funções de Presidente dos EUA, terá mesmo deixado o Partido Democrata em “pânico” e a duvidar da escolha do atual Presidente como recandidato democrata, de acordo com várias fontes do partido que falaram à CNN sob anonimato depois do debate. Outras figuras falaram mesmo abertamente. Kate Bedingfield, antiga diretora de comunicação de Biden, classificou a sua prestação como “uma desilusão” e o antigo conselheiro de Obama David Axelrod, referiu mesmo a necessidade de haver um debate interno sobre se Biden deve continuar ou não com a campanha para as eleições que decorrem a 5 de novembro.
Do lado de Trump, o debate ficou marcado pela frequente referência a informações falsas — que, nas palavras do jornal The Guardian, “se tornou quase impossível para jornalistas e fact-checkers acompanharem” —, mas também pela insistência em falar dos supostos perigos da imigração para a segurança dos EUA em todos os segmentos temáticos, até quando foi questionado sobre as alterações climáticas. O confronto de ideias entre os dois, de resto, ficou marcado por múltiplos momentos de tensão, em que a discussão subiu de tom entre os dois candidatos — especialmente em temas como o aborto e a imigração, mas também com os muitos casos criminais que envolvem Donald Trump e com os temas da política internacional.
Um dos momentos mais tensos aconteceu quando Joe Biden lembrou a notícia que veio a público em 2020, de que Donald Trump teria chamado “falhados” aos veteranos de guerra mortos em combate. Biden lembrou que o seu filho esteve no Iraque e atirou a Trump: “Você é que é o falhado.” Mas Donald Trump respondeu garantindo que a citação foi “inventada” e até exigindo que Biden lhe pedisse desculpas.
Imigração divide candidatos e Biden acusa Trump de mentir
O tema da imigração, abordado minutos antes daquele momento tenso, ainda na primeira parte do debate, foi um dos que provocaram mais divisões entre os dois candidatos. Questionado sobre as suas políticas de imigração, Joe Biden voltou-se contra Donald Trump: “Ele estava a separar bebés das suas mães, a pô-los em jaulas, a garantir que as famílias estavam separadas.”
Já Trump alegou que os EUA têm “o maior número de terroristas a entrar no país neste momento”, ouvindo de imediato Joe Biden a dizer-lhe: “Isso simplesmente não é verdade. Não há dados que suportem o que ele diz. Está a exagerar, está a mentir.” De resto, Donald Trump procurou ir buscar o tema da imigração em vários pontos do debate. Durante a discussão sobre a economia, minutos antes, já tinha acusado Joe Biden de permitir a entrada de imigrantes que estão a beneficiar de segurança social e de cuidados de saúde.
O antigo Presidente disse mesmo que os norte-americanos estão a viver num “ninho de ratos” com a criminalidade em subida. “Eles estão a matar os nossos em Nova Iorque, na Califórnia e em todos os estados da união, porque já não temos fronteiras”, atirou Trump, classificando o aumento da criminalidade como “o crime dos imigrantes de Biden”. “Eles estão a matar os nossos cidadãos a um nível que nunca vimos antes”, afirmou ainda.
Noutro momento, quando os dois candidatos foram questionados sobre os seus planos para reduzir as desigualdades raciais no país, Donald Trump voltou a falar da fronteira. Mais à frente, quando os moderadores trouxeram o tema das alterações climáticas, o antigo Presidente basicamente ignorou a pergunta e continuou a falar sobre imigrantes. Só quando os moderadores insistiram com a pergunta é que Trump respondeu de forma genérica que pretende ter, nos EUA, “água imaculadamente limpa e ar imaculadamente limpo”.
Já Joe Biden aproveitou esse segmento para lembrar que Donald Trump não fez nada pelas questões ambientais — e que, pelo contrário, até tirou os EUA do Acordo de Paris.
Trump: “Se tivéssemos um Presidente a sério, Putin nunca teria invadido a Ucrânia”
Num segmento sobre política internacional, os dois candidatos foram questionados sobre se consideram aceitáveis os termos de Vladimir Putin para o fim da guerra na Ucrânia. Donald Trump recorreu ao discurso que tem usado habitualmente para abordar este assunto: “No que toca à Rússia e à Ucrânia, se tivéssemos um Presidente a sério, um Presidente que fosse respeitado por Putin, ele nunca teria invadido a Ucrânia.” Trump argumentou mesmo, sem explicar porquê, que Biden até “encorajou” a Rússia a invadir a Ucrânia.
Biden, por seu turno, respondeu que nunca tinha ouvido “tamanha parvoíce” na vida. “Este é um tipo que quer sair da NATO”, acusou Biden, que alertou para os riscos de Vladimir Putin continuar a guerra e, depois da Ucrânia, invadir a Polónia e outros países. “O que acontece depois?”, questionou, assinalando o risco de uma guerra nuclear com a Rússia.
Ainda sobre política internacional, Joe Biden foi questionado sobre que capacidade negocial terá para contribuir para o regresso dos reféns israelitas capturados pelo Hamas e respondeu com a proposta de cessar-fogo desenhada pelos EUA e apresentada em maio. “Salvámos Israel”, garantiu Joe Biden, que também rejeitou ter negado armas a Israel, à exceção de um conjunto de bombas que podiam ter sido usadas em áreas densamente povoadas. Donald Trump aproveitou para criticar o modo como Biden tem gerido a crise em Gaza: “Ele tornou-se como um palestiniano, mas eles não gostam dele, porque é um palestiniano mau. Um palestiniano fraco.”
Diretamente questionado sobre se concordaria com o reconhecimento de um estado palestiniano independente, Donald Trump respondeu que terá de avaliar.
Biden lembra casos judiciais de Trump: “Tem a moral de um gato de rua”
Já se esperava que seria um dos temas quentes do debate — e foi. Os muitos casos judiciais que pendem sobre Donald Trump, que inclusivamente já foi dado como culpado de 34 crimes, há menos de um mês, no caso que envolve o pagamento a uma atriz pornográfica, vieram a lume, especialmente depois de o ex-Presidente ter sido questionado sobre se, caso seja eleito, poderá vir a perseguir criminalmente os seus opositores políticos.
“Vamos tornar este país bem sucedido outra vez”, afirmou Trump, prosseguindo com um ataque direto a Joe Biden por via do seu filho, Hunter Biden, recentemente condenado num caso de porte ilegal de arma. Trump atirou diretamente ao atual Presidente, argumentando que Biden “poderá ser condenado assim que sair do cargo”, com todas as “coisas horríveis” que fez.
Joe Biden argumentou: “A única pessoa neste palco que é um criminoso condenado é este homem para quem estou a olhar.” O atual Presidente elencou os vários casos que envolvem Donald Trump, chegando mesmo a dizer que Trump fez sexo com uma estrela pornográfica quando a sua mulher estava grávida. “Você tem a moral de um gato de rua.” Trump reagiu, afirmando que não fez sexo com uma atriz pornográfica.
Os moderadores trouxeram também para cima da mesa o tema do assalto ao Capitólio a 6 de janeiro de 2021, quando apoiantes de Donald Trump tentaram impedir a validação da eleição de Joe Biden. Donald Trump reiterou que não fez nada de errado e que só encorajou os seus apoiantes a protestarem “pacificamente e patrioticamente”. Já Biden voltou acusar Trump de ter “encorajado” a invasão e avisou: “Se ele perde outra vez, é um chorão, basicamente vai ser um banho de sangue.”
Diretamente questionado sobre se vai aceitar o resultado da eleição desta vez, Donald Trump não deu uma resposta direta. “Se a eleição for livre e justa… e eu quero isso mais do que ninguém”, afirmou, deixando o raciocínio a meio e acusando Biden de levar os EUA para a “Terceira Guerra Mundial”. Só perante a terceira insistência dos moderadores é que Trump afirmou: “Se for uma eleição justa, legal e boa, absolutamente.”
Trump diz que Biden é o “pior Presidente da história dos EUA”
Uma boa parte do debate foi passado com os dois candidatos a lançarem ataques diretos, mais ou menos pessoais, um contra o outro. Da parte de Donald Trump, o tom foi constante: os EUA são uma “nação falhada” devido a Biden, que é o “pior Presidente” da história do país. “Ele destruiu o nosso país”, disse mesmo a dada altura, repetindo várias vezes que a única razão pela qual se está a candidatar (em vez de estar a aproveitar a vida numa das suas “muitas casas”) é o facto de Biden ser um mau Presidente. Já Joe Biden lamentou que um antigo Presidente norte-americano falasse assim do país.
As trocas de acusações subiram de tom de forma, no mínimo, insólita quando os moderadores trouxeram a lume o tema da idade, lembrando que Joe Biden se está a candidatar para um mandato que terminará com 86 anos — e Trump para um que acabará com 83. Ambos foram questionados sobre se se sentem capazes para o “emprego mais difícil do mundo” — e o debate avançou para uma discussão sobre quem joga melhor golfe.
Joe Biden recordou que passou metade da carreira a ouvir críticas por ser “o mais jovem na política” e lembrou que Trump só tem menos três anos que ele e é “muito menos competente”. A idade de Biden tem sido um fator levantado com frequência pelos seus oponentes, que duvidam da sua capacidade para levar a cabo as funções de Presidente. As frequentes hesitações e pausas de Biden têm contribuído para criar a ideia de que o atual Presidente teria as suas capacidades diminuídas — e Donald Trump aproveitou esse facto durante o debate. “Não percebi o que é que ele disse no final dessa frase. Acho que nem ele sabe o que disse”, atirou Trump, numa das muitas vezes em que Biden se atrapalhou ao terminar uma frase.
Perante a mesma questão, Donald Trump gabou-se da sua “excelente saúde”, dos testes que fez e, sobretudo, dos dois campeonatos de golfe que ganhou recentemente. “É preciso ser muito esperto e é preciso saber atirar a bola para longe”, disse Trump, acusando Biden de não conseguir bater uma bola. Os dois debateram brevemente sobre quem jogava melhor, até Trump sugerir que não se deviam comportar como crianças e Biden responder: “Você é uma criança.” Biden respondeu ao desafio de Trump dizendo que aceitaria uma competição de golfe, desde que Trump carregasse o seu próprio saco.
Já na reta final do debate, Donald Trump usaria os dois minutos finais para repetir muitos dos ataques pessoais a Trump, acusando-o de ser um “queixinhas”, de não ser respeitado pelas forças armadas e de levar os norte-americanos a viver “num inferno”. Já Joe Biden usou os seus dois minutos finais para lembrar os “progressos significativos” que foram feitos desde o fim da presidência de Trump e para prometer mais avanços na política fiscal norte-americana.
Joe Biden quer restaurar proteção federal ao aborto
O debate teve um primeiro momento mais tenso logo a partir dos dez minutos, quando os moderadores introduziram o tema do aborto, à boleia da notícia conhecida esta semana de que o Supremo Tribunal dos EUA apoiaria a autorização do aborto de emergência no estado do Idaho. Em 2022, o Supremo Tribunal, de maioria conservadora após a nomeação de juízes durante o mandato de Trump, reverteu o caso Roe v. Wade, eliminando a proteção federal ao aborto e permitindo a vários estados recuar na lei, tornando o aborto proibido em múltiplos territórios norte-americanos.
Joe Biden atirou diretamente a Donald Trump pela nomeação dos três juízes que inverteram a relação de forças no Supremo e permitiram a reversão da proteção federal ao aborto. “O que fez foi uma coisa terrível”, afirmou Biden, argumentando que não cabe a qualquer político decidir o que uma mulher deve fazer. “A ideia de que os nossos fundadores queriam que fossem os políticos a tomar decisões sobre a saúde de uma pessoa é ridícula. Nenhum político deve tomar essa decisão. É um médico que tem de tomar essa decisão.”
Donald Trump, por seu turno, disse que colocou “três excelentes juízes no Supremo Tribunal e calhou que eles votaram a favor de reverter o Roe v. Wade”, devolvendo o poder de decisão aos estados. “Agora, os estados estão a trabalhar nisso”, disse Trump, que também garantiu que não irá bloquear o acesso ao aborto de emergência através de pílulas abortivas se for eleito Presidente. “Concordo com a decisão deles”, disse, referindo-se à decisão do Supremo de permitir a pílula abortiva.
O debate evoluiu depois para uma troca de acusações acesa sobre o aborto no final da gestação, com Donald Trump a acusar os democratas de defenderem o aborto aos nove meses e até depois do parto — e Joe Biden a garantir que não defende um direito ao aborto sem qualquer limite. Biden garantiu também que, se for reeleito, irá lutar no sentido de restaurar o precedente judicial Roe v. Wade.
Economia: Biden coloca culpas no mandato de Trump
Antes, o debate tinha arrancado com o tema da economia, com Joe Biden a ser questionado sobre o estado atual da economia norte-americana. “O que dizer aos eleitores que sentem que estão pior sob a sua presidência do que sob a presidência de Trump?”, perguntou o moderador, ao que Joe Biden devolveu uma resposta que marcou o tom da sua prestação: atribuir as culpas pelo estado da economia ao modo como Donald Trump deixou o país quando deixou a presidência em 2020.
“Temos de olhar para aquilo que herdei quando me tornei Presidente, aquilo que Trump me deixou”, disse, lembrando que a economia a estava “em queda livre”, na sequência de uma pandemia “mal gerida”. A economia, disse Biden numa intervenção bastante rápida devido à limitação do tempo para as respostas, “colapsou”, com um desemprego a subir para os 15%. “O que tivemos de fazer foi pôr tudo em ordem outra vez. Foi exatamente isso que começámos a fazer.”
Trump, por seu turno, defendeu o seu mandato, assegurando que teve a “melhor economia” da história do país. “Nunca tivemos um desempenho tão bom. Toda a gente ficou admirada. Os outros países copiaram-nos”, disse Trump. “Fomos atingidos pela Covid e quando isso aconteceu gastámos o dinheiro necessário para não acabarmos numa Grande Depressão como a de 1929”, acrescentou ainda Trump, sublinhando que fez um “excelente trabalho”, ao contrário de Biden, que, segundo Trump, fez um “trabalho muito mau”.
O ex-Presidente afirmou também que os EUA “já não são respeitados como país” depois da presidência de Biden. “Não respeitam a nossa liderança. Somos como um país do terceiro mundo”, acrescentou. Um dos exemplos que deu foi a retirada das tropas americanas do Afeganistão, que Trump classificou como “o dia mais embaraçoso na história do país”.
Trump foi também questionado sobre se a sua proposta relativa à imposição de uma taxa de 10% sobre todas as importações não vai aumentar os preços. O ex-Presidente respondeu que não — que vai simplesmente “forçar” outros países, como a China, a “pagar muito dinheiro” aos EUA, reduzindo o défice norte-americano.
Ao contrário do que aconteceu no passado, este debate não foi organizado pela Comissão para os Debates Presidenciais, uma estrutura independente que é patrocinado pelos dois principais partidos norte-americanos e que tem como missão organizar os debates. Os partidos discordaram das propostas originais daquela comissão, que propunha a realização de três debates em setembro e outubro, e acabaram por alinhar numa solução alternativa: a realização de dois debates organizados por cadeias de televisão.
O debate desta noite na CNN foi o primeiro de dois. O segundo acontecerá em 10 de setembro e será organizado pela ABC News. É a primeira vez na história dos EUA que ocorre um debate entre um atual e um antigo Presidente.
Os dois candidatos defrontaram-se durante 90 minutos (com dois intervalos) num debate moderado pelos jornalistas Jake Tapper e Dana Bash, da CNN, regido por regras bastante apertadas: para evitar ruídos e interrupções, só o microfone do candidato que tinha a palavra é que estava ligado; além disso, os candidatos não puderam levar para o estúdio quaisquer anotações ou adereços. A CNN disponibilizou a ambos um bloco de notas, uma esferográfica e uma garrafa de água.
Donald Trump e Joe Biden partiram para o primeiro debate da campanha com as sondagens a darem conta de uma eleição renhida (ambos têm intenções de voto a rondar os 45%, embora haja uma ligeira vantagem de Trump na maioria dos inquéritos).