Discurso do Presidente da República
Pela primeira vez em democracia um primeiro-ministro em funções ficou a saber, no âmbito de diligências relativas à investigação em curso, respeitando a terceiros, uns seus colaboradores, outros não, que ia ser objeto de processo autónomo a correr sob a jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça. De imediato, apresentou a sua exoneração, invocando razões de dignidade indispensável à continuidade do mandato em curso. Antes do mais, quero sublinhar a elevação do gesto e da respetiva comunicação aos portugueses.”
Marcelo Rebelo de Sousa começou a comunicação ao país a destacar a excecionalidade do momento, já que nunca antes um chefe de Governo tinha sido investigado no cargo. A lógica é: a situação é tão rara que pode ser excecional a consequência. Depois começou a justificar o facto de ter aceitado de imediato a demissão (ao invés de insistir num wait to see), ao dizer que o primeiro-ministro invocou razões da dignidade do cargo — o que tornou, assim, inevitável a aceitação do pedido. O Presidente sugere também concordância com a decisão tomada por Costa, elogiando a “elevação do gesto” do primeiro-ministro e ainda a forma como o comunicou aos portugueses.
Quero também testemunhar o serviço à causa pública durante décadas, em particular os longos e exigentíssimos anos de saída de défice excessivo. De saneamento da banca, pandemia, guerras na Ucrânia e no Médio Oriente na chefia do Governo de Portugal”.
No momento da saída, Marcelo continuou os elogios, destacando a dedicação de Costa como servidor público e fazendo justiça aos tempos difíceis que enfrentou, quer na situação interna financeira em que encontrou o país, quer no contexto internacional adverso que enfrentou. E com uma pandemia pelo meio. Mas este é também um auto-elogio, já que o Presidente passou exatamente pelos mesmos desafios. A medalha de iron man é, mais do que para Costa, para o Bloco Central de Palácios, a sociedade Costa&Marcelo.
Agradeço ainda a disponibilidade para assegurar as funções até à substituição nos termos constitucionais.”
A Constituição obriga António Costa a exercer funções até ao dia em que um novo primeiro-ministro toma posse. Costa podia, no entanto, contornar uma presença quotidiana como primeiro-ministro (alegando doença, por exemplo) e deixando que a sua número dois (Mariana Vieira da Silva) assegurasse os mínimos de um Governo de saída. Costa tinha a seu favor para esse cenário — caso o desejasse — o facto de estar a ser investigado e isso ser uma pressão psicológica adicional, mas o primeiro-ministro decidiu ficar até ao último dia. Marcelo agradece.
Espero que o tempo, mais depressa do que devagar, permita esclarecer o sucedido, no respeito da presunção da inocência, da salvaguarda do bom nome, da afirmação da justiça e de reforço do Estado de Direito democrático.”
Marcelo Rebelo de Sousa deixa um aviso claro ao Ministério Público: é preciso celeridade a esclarecer todo o processo que envolve o primeiro-ministro e alguns dos seus amigos mais próximos (a operação “Influencer”). E avisa que é preciso respeitar a “presunção da inocência”, rejeitando que haja uma condenação na praça pública do primeiro-ministro antes de ser terminada a investigação. A velocidade do processo e a garantia dessa presunção de inocência, adverte Marcelo, é essencial para a imagem da justiça e do próprio Estado de Direito. Marcelo coloca pressão no MP e acomoda uma parte das reivindicações do PS-que-fica.
Chamado a decidir sobre o cenário provocado pela demissão do Governo do Governo, consequência da exoneração do primeiro-ministro, optei pela dissolução da Assembleia da República e a marcação de eleições a 10 de março de 2024.”
O PS queria eleições para abril e manter a data do Congresso (15,16 e 17 de março), já o PSD queria que o escrutínio se realizasse quanto antes, admitindo que ocorressem no final de janeiro/início de fevereiro. Marcelo quis ficar a meio caminho e marcou para 10 de março. O objetivo do Presidente é não ser acusado de não dar tempo ao maior partido (o PS) para se recompor. Marcelo quer afastar quaisquer leituras dos eleitores de que está a favorecer o partido do qual é o militante suspenso.
“Fi-lo depois de ouvir os partidos com assento parlamentar e o Conselho de Estado como impunha a Constituição. Os primeiros claramente favoráveis, o segundo com empate. E, portanto, não favorável à dissolução, situação aliás que já ocorrera no passado com outros chefes de Estado. Fi-lo, portanto, por decisão própria no exercício de um poder conferido pela Constituição da República Portuguesa.”
Marcelo Rebelo de Sousa tenta impor a tese que acolheu as pretensões dos partidos ao dizer que estes foram “claramente favoráveis” a eleições, mas faz uma extrapolação: como o PS é contra e tem a maioria do Parlamento, não se pode dizer que os partidos com assento na AR sejam “claramente” a favor da sua decisão. Mesmo que em votos isso possa ser verdade. O Presidente fala também no “empate” no Conselho de Estado (8 contra 8), o que, nesse caso, considera uma posição “não favorável” daquele órgão (que não é vinculativo) à solução que escolheu. Apesar disso, Marcelo Rebelo de Sousa puxa dos poderes de Presidente e assume que é uma “decisão própria”. A partir daqui fica vinculado às consequências da mesma.
“E fi-lo por diversas razões: a primeira a natureza do voto nas eleições de 2022. Personalizado no primeiro-ministro, com base na sua própria liderança, candidatura, campanha eleitoral e esmagadora vitória. Assim o disse logo em 30 de março do ano passado no discurso de posse do Governo ao falar em eventual substituição a meio do caminho, sublinhando o preço das grandes vitórias, inevitavelmente pessoais e intencionalmente personalizadas.”
Na primeira razão que invocou para a dissolução do Parlamento, o Presidente da República foi coerente com o que disse na tomada de posse do Governo a 30 março de 2022 quando avisou que não seria “politicamente fácil” substituir o primeiro-ministro por “outro rosto” depois de uma campanha “intencionalmente” personalizada. Afinal esta não era uma cláusula anti-Europa, mas mesmo um pacto de sangue entre órgãos de soberania com o costismo. Avisou na altura: sem Costa, não há XXIII Governo Constitucional. E cumpriu.
Segunda: a fraqueza da formação de novo governo com a mesma maioria, mas com qualquer outro primeiro-ministro para tanto não legitimado política e pessoalmente pelo voto popular.”
António Costa revelaria depois que o PS propôs o nome de Mário Centeno para liderar o Governo até 2026. Marcelo antecipou-se a explicar, minutos antes, que um primeiro-ministro tem de ser legitimado por eleições legislativas. O Presidente contava nesta decisão com o respaldo de sondagens que mostram que os portugueses defendem eleições antecipadas.
“Terceira: o risco já verificado no passado dessa fraqueza redundar num mero adiamento da dissolução para pior momento, com situação mais crítica e desfecho mais imprevisível. Vivendo o Governo até lá com um governo presidencial, isto é: suportado pelo Presidente da República e o Presidente da República como um inspirador partidário. Tudo enfraquecendo o papel presidencial num período sensível em que o Presidente deve ser sobretudo uma referência interna e externa.”
Marcelo Rebelo de Sousa utilizou como argumento o falhanço de Jorge Sampaio (e o insucesso do Governo de Santana Lopes) na única vez em que a solução que o PS agora pedia foi testada. Não resultou e, por isso, não a quer repetir. O Presidente considera ainda que, nesse cenário, ficaria corresponsável politicamente por esse executivo, o que o tornaria numa espécie de ‘governo de inspiração presidencial’. Mais do que isso, alerta Marcelo, iria enfraquecer a posição do chefe de Estado numa altura em que se autoproclama de referência nacional e internacional do país (que tem, recorde-se, um primeiro-ministro demissionário).
“Quarta: a garantia da indispensável de estabilidade económica e social que é dada pela prévia votação do OE para 2024, antes mesmo de ser formalizada a exoneração do atual primeiro-ministro em início de dezembro. A aprovação do OE permitirá ir ao encontro das expectativas de muitos portugueses e acompanhar a execução do PRR que não pára, nem pode parar, com a passagem do Governo a Governo de gestão ou mais tarde com a dissolução da AR.”
Marcelo tenta aqui justificar a opção de adiar a promulgação do decreto de demissão de forma a salvar o Orçamento do Estado para 2024. Depois de constitucionalistas como Jorge Reis Novais terem dito que esse adiamento é uma “fraude à Constituição”, o constitucionalista Marcelo puxa da realpolitik (a necessidade de aproveitar os fundos do PRR) para validar essa manobra burocrática.
“Quinta: maior clareza e mais rigoroso rumo para superar um vazio inesperado, que surpreendeu e perturbou tantos portugueses, afeiçoados que se encontravam aos 8 anos de liderança governativa ininterrupta, devolvendo assim a palavra ao povo, sem dramatizações nem temores. É essa a força da democracia: não ter medo do povo.”
O chefe de Estado reconhece a popularidade de António Costa ao admitir que uma parte do país estava “afeiçoada” ao primeiro-ministro e ficou em choque. O Presidente dos afetos dá assim o ombro aos eleitores que deram uma maioria absoluta a António Costa. E aproveita para dizer que essa afeição era à “liderança governativa”, não ao partido de Governo.
“Portugueses, tentei encurtar o mais possível o tempo desta decisão, tal como o da dissolução e convocação de eleições. E se não foi possível torná-lo mais breve, isso tem a ver com o processo de substituição na liderança do partido do Governo, como aconteceu no passado.”
Marcelo Rebelo de Sousa justifica o facto de só marcar eleições a 10 de março com a necessidade do PS eleger um novo líder. Na cabeça do Presidente estão os cerca de três meses que Jorge Sampaio deu ao PS para redefinir a liderança depois da demissão de António Guterres, em dezembro de 2001. O atual Presidente da República utiliza habitualmente como estratégia seguir decisões dos antecessores. É uma espécie de “jurisprudência presidencial”. Mas acaba por dar agora quatro meses, mais do que Sampaio deu na altura.
“Agora, do que se trata é olhar em frente, estugar o passo, escolher os representantes do povo e o Governo que resultará das eleições. Um governo que procure assegurar a estabilidade e o progresso económico, social e cultural em liberdade, pluralismo e democracia. Um Governo com visão de futuro, tomando o já feito, acabando o que importa fazer, inovando no que ficou por alcançar. Como sempre, portugueses, confio em vós. No vosso patriotismo, no vosso espírito democrático, na vossa experiência, no vosso bom senso, na vossa liberdade, como sempre sóis vós e só vós a certeza decisiva do futuro do nosso Portugal.”
Marcelo Rebelo de Sousa define um caderno de encargos que o próximo Governo tem de cumprir, mas é genérico o suficiente para caber em qualquer tipo de programa. No entanto, tem a exigência de que esse executivo não faça política de terra queimada com o que foi feito pelo Governo de Costa e que termine parte do trabalho começado pelo Executivo do PS.