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Marcelo Rebelo de Sousa mandou para trás o diploma de venda da TAP. É um veto político inédito em operações de privatização que até terá apanhado de surpresa o Governo, apesar de António Costa ter sido rápido a reagir, sinalizando que as preocupações do Presidente seriam “devidamente ponderadas”. Esta é a única fase do processo em que haverá intervenção presidencial, já que depois de promulgado o decreto-lei caberá ao Governo em Conselho de Ministros tomar todas as decisões. As dúvidas de Marcelo são tornadas públicas depois de ex-ministros socialistas colados mais à ala esquerda do partido terem-se mostrado contra a venda da maioria do capital da TAP.
Marcelo devolve decreto-lei de privatização da TAP ao Governo porque não está esclarecido
O veto foi acompanhado por uma carta remetida ao primeiro-ministro, na qual o Presidente invocou três grandes questões para os quais pediu esclarecimentos.
O interesse estratégico
Marcelo quer saber como vai ser assegurada a futura efetiva capacidade de acompanhamento e intervenção do Estado numa empresa estratégica. “Admitindo-se a venda de mais de 51% da TAP, não se prevê ou permite, expressamente, em decisões administrativas posteriores, qualquer papel para o Estado.”
Um dos grandes tabus sobre esta operação é a percentagem a vender, com o Governo a estabelecer um mínimo de 51%, cedendo a maioria (e reservando na sua fatia 5% para trabalhadores), mas admitindo até sair do capital da empresa. Apesar desta latitude, foram estabelecidos interesses estratégicos a salvaguardar com a operação — o crescimento da TAP; o crescimento do hub de Lisboa; trazer investimentos e emprego em atividades de valor acrescentado conexas à aviação; expandir as operações de ponto a ponto (diretas para um destino) e potenciar a capacidade aeroportuária subaproveitada, com destaque para o aeroporto do Porto; e o preço.
Com exceção do preço, que até será o critério menos importante, ou pelo menos não determinante, segundo declarações já feitas por governantes, como irá o Governo garantir que quem compra a TAP cumpra esses objetivos ainda que os apresente na proposta?
O Governo tem remetido para as condições a definir no caderno de encargos e para os contratos e “instrumentos jurídicos” que vão vincular o comprador, nomeadamente acordos parassociais que estabeleçam as obrigações do futuro acionista. Mas Fernando Medina não se comprometeu com a fixação pelo Estado de um prazo para esses compromissos serem assegurados, remetendo para a negociação com os candidatos.
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E há em particular dúvidas sobre como assegurar que o hub de Lisboa sai reforçado e não prejudicado quando essa garantia não pode estar contratualmente prevista no caderno de encargos devido a regras europeias. Sobre esse tema, o ministro João Galamba remeteu para outros exemplos de compra de companhias aéreas de bandeira por grupos de maior dimensão na Europa — como a Austrian Airlines (comprada pela Lufthansa), a Aer Lingus (companhia irlandesa comprada pela British Airways) ou mesmo a Iberia comprada também pela British Airways, e ainda a KLM comprada pela Air France que mantém a marca e a identidade.
São explicações que deixam muito em aberto. E a história recente do cumprimento e fiscalização de acordos parassociais assinados com privados na TAP, mesmo com o Estado presente no capital da empresa e até na administração, não trará a maior das tranquilidades. O facto de o ex-ministro que antes tinha a tutela da TAP, Pedro Nuno Santos, ser contra a venda da maioria e o discurso errante de António Costa sobre a razão para privatizar poderão ainda ter alimentado as reservas de Marcelo Rebelo de Sousa pelo muito que fica por definir.
Alienação de ativos pela TAP antes da decisão da privatização
O diploma admite que a TAP possa alienar ou adquirir, antes mesmo da decisão de venda, quaisquer tipos de ativos, sem outra mínima precisão ou critério, o que vai muito para além da projetada integração da Portugália na TAP SA.
Esta é uma novidade que Marcelo Rebelo de Sousa revela sobre o conteúdo do decreto-lei aprovado em Conselho de Ministros, mas remete para outro dos temas que tem suscitado muitas perguntas e poucas respostas. Qual será o perímetro da venda da TAP? O ministro das Finanças clarificou que o que vai ser privatizado é a TAP SA, a empresa que tem o negócio da aviação e que recebeu 3,2 mil milhões de euros de capitalização do Estado com o aval da Comissão Europeia. Mas Fernando Medina acrescentou também que a operação vai incluir ativos que estão na TAP SGPS e que serão transferidos para a TAP SA, referindo em concreto a Portugália, a empresa de saúde da TAP e a Cateringpor (de refeições a bordo). Esta última empresa terá de ser vendida por imposição da Comissão Europeia.
Como serão executadas essas operações e quem vai suportar as responsabilidades financeiras que ficam na TAP SGPS — empresa pública com capitais próprios negativos de 1,3 mil milhões de euros — não se sabe ao certo. Cabe a esta “TAP má” reembolsar a emissão obrigacionista subscrita pela companhia brasileira Azul (fundada pelo antigo acionista David Neeleman) e pagar mais faturas que venham do Brasil e do fecho da empresa de manutenção e engenharia. Medina já admitiu que a TAP SGPS é para liquidar, mas quem vai pagar essas faturas? A TAP SGPS tem ainda a participação minoritária na Groundforce, companhia de handling.
Transparência não está assegurada
Marcelo considera que o processo de venda direta escolhido pelo Governo não garante a total transparência, isto porque há uma fase de contactos anteriores à elaboração do caderno de encargos nos quais serão fixadas as regras para escolher o eventual comprador. O Presidente quer que fique claro no diploma que não serão negociações vinculativas e que haverá registos desses contactos. “É preciso garantir a prova da cabal isenção dos procedimentos, se surgirem dúvidas sobre a transparência do processo de escolha”.
Com esta preocupação, o Presidente da República está a acautelar o escrutínio que certamente será intenso sobre esta operação, até considerando todas as dúvidas e suspeitas que rodearam as operações anteriores — a privatização de 2015, a recompra de 2016 e a “nacionalização” de 2020 — e que gastaram muitas horas da comissão parlamentar de inquérito.
No caso desta privatização da TAP há um candidato que pode ser inconveniente se apresentar a melhor proposta — o grupo IAG onde está a Iberia — porque são vários os intervenientes políticos e do setor que já alertaram para os riscos desta opção para aquele que é um dos objetivos estratégicos da privatização — o hub de Lisboa.
Por outro lado, o processo anunciado prevê uma fase não formal de contactos com potenciais interessados para o qual o Executivo remete a fixação do caderno de encargos. Mas o Governo não disse o que ficará definido nesse caderno.
Parece ser intenção deixar em aberto matérias relevantes que outros atores políticos e, porventura o próprio Presidente, gostariam de ver esclarecidas no início do processo e não no fim. Matérias essas como o compromisso temporal do futuro acionista com a TAP e com os objetivos estruturantes da operação, além do valor e do capital a vender. Ao mesmo tempo que este modelo limita a informação pública sobre o andamento do processo, bem como o seu acesso pelo Parlamento, também transfere poder negocial para os potenciais compradores. Há ainda a intenção de contratar três assessores — jurídico, financeiro e estratégico — para darem apoio ao Estado nesta transação e cuja seleção poderá, como tem sido frequente em operações comparáveis, suscitar temas de conflito de interesses.
É certo que a operação será fiscalizada, nomeadamente pelo Tribunal de Contas, mas esse processo é feito já depois de tudo estar decidido.