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Um dia depois de se mudar para a autocaravana, Elisabete Desidério criou um grupo no Facebook — "Viver numa Autocaravana.PT". "Achava que íamos ser umas 10 ou 20 pessoas no máximo, agora somos quase 10 mil"
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Um dia depois de se mudar para a autocaravana, Elisabete Desidério criou um grupo no Facebook — "Viver numa Autocaravana.PT". "Achava que íamos ser umas 10 ou 20 pessoas no máximo, agora somos quase 10 mil"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Um dia depois de se mudar para a autocaravana, Elisabete Desidério criou um grupo no Facebook — "Viver numa Autocaravana.PT". "Achava que íamos ser umas 10 ou 20 pessoas no máximo, agora somos quase 10 mil"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Procuro uma carrinha, que não seja um balúrdio, para habitação". Estas quatro pessoas vivem em autocaravanas (e não é porque está na moda)

Dina nunca teve resposta ao anúncio — e continua em casa do filho. Elisabete, Hélder, Filipa e Tom tentaram arranjar casa mas acabaram a viver em autocaravanas. Pelo menos não pagam renda, água e luz.

A porta está fechada, as janelas laterais também e as persianas do pára-brisas foram completamente corridas, não só é impossível espreitar lá para dentro como nem sequer parece valer muito a pena, não há um único ruído, nenhuma luz.

Se não soubéssemos à partida que H. está fechado no interior, nunca imaginaríamos que havia alguém na autocaravana, estacionada num pacato bairro residencial na zona da Parede, em Cascais — muito menos que mãe e filho ali dormem, comem, tomam banho e fazem tudo o que faz parte da vida, pelo menos quando não estão na escola ou a trabalhar.

Só depois de mais de uma hora a conversar à mesa de um café sobre as circunstâncias que a levaram a pedir um crédito pessoal para comprar a autocaravana para onde se mudou já há três anos com o filho adolescente, é que Elisabete Desidério acede em apresentar-nos o veículo a que hoje chama casa.

“Ele não conta a ninguém que moramos aqui, nenhum colega sabe. Não se sente à vontade para dizer que vive numa autocaravana, claro que preferia ter um quarto em condições, numa casa convencional, era melhor. Mas sempre me disse que, se tivesse de ser, por ele estava tudo ok”
Elisabete Desidério

Esperamos à porta, para que H. dê uma arrumação rápida ao espaço e regresse à cama de casal onde passa as noites e grande parte dos dias (invariavelmente ligado ao computador e à internet), uma estrutura amovível que assenta sobre os bancos do condutor e do pendura e que por isso mesmo não pode estar permanentemente montada.

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Não havemos de vê-lo ao longo de toda a conversa: “Ele não conta a ninguém que moramos aqui, nenhum colega sabe. Mas, estando aqui dentro, está normal”, explica a mãe, que encara com naturalidade a vergonha do filho. “Não se sente à vontade para dizer que vive numa autocaravana, claro que preferia ter um quarto em condições, numa casa convencional, era melhor. Mas sempre me disse que, se tivesse de ser, por ele estava tudo ok.”

Quando se mudaram para a autocaravana, tiveram de deixar muita coisa para trás. Ainda assim, Elisabete Desidério fez questão de decorar a nova "casa"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

H. tinha 15 anos quando se mudaram para a autocaravana. Agora já fez 19, passou o último ano a fazer as disciplinas de 12.º que no ano anterior deixou para trás. Elisabete, 48, é funcionária pública, trabalha num departamento da Câmara Municipal de Cascais, em Alcabideche. Ganha o salário mínimo, 760 euros. Para a vizinhança, um bairro de classe média alta a 5 minutos da praia, onde um apartamento T1 ainda em construção pode custar 495 mil euros, mãe e filho são invisíveis.

Fazem por sê-lo: por lei, a não ser em locais autorizados como parques ou áreas de serviço para autocaravanas, não podem pernoitar no mesmo concelho mais do que 48 horas seguidas, mas a escola de H. fica nas redondezas, dá para ir a pé, e também não lhes convém desbaratar em combustível o pouco dinheiro que sobra no orçamento mensal, depois de pago o crédito, as conta de Internet e telemóvel e a bilha de gás, que têm de trocar a cada três semanas.

Por muito que já não se imagine a morar numa “casa convencional”, como lhes chama, Elisabete Desidério mudou-se para esta autocaravana por necessidade, não por moda ou vontade de abraçar um novo estilo de vida, mais minimalista. Porque também há cada vez mais quem o faça: no final de 2020, por exemplo, a portuguesa Indie Campers chegou mesmo a lançar planos anuais de aluguer de autocaravanas e carrinhas transformadas. As mensalidades começam nos 1.998 euros e podem chegar aos 2.498 euros.

São preços impraticáveis para pessoas como Elisabete Desidério e não só — o Eurostat revelou recentemente que os portugueses são, na Europa, dos que mais dificuldades enfrentam para pagar as rendas das casas, um problema que se tem vindo a acentuar desde 2021 e que já coloca o país acima da média da UE, tanto no que diz respeito à sobrecarga financeira (em que a renda pesa mais de 40% do rendimento mensal), como à sobrecarga extrema (em que a renda consome mais de metade dos rendimentos). De acordo com o estudo do gabinete de estatística europeu, um terço dos inquilinos portugueses já está a gastar mais de 40% dos salários com as rendas de casa.

Quando o filho está em aulas, a autocaravana fica estacionada perto da escola. Nas férias, Elisabete Desidério e H. mudam-se para perto do trabalho dela, para poupar no combustível

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Elisabete Desidério estava desempregada quando acabou a relação que mantinha há meia dúzia de anos com um homem que não era o pai de H, e em casa de quem viviam. Durante um mês, ainda se mudou com o filho para um quarto, arrendado por 350 euros num T2, na zona de Oeiras.

Valeu pela experiência e para saber aquilo que decididamente não queria: “O senhorio também vivia lá, alugava os quartos e dormia na sala. Não tínhamos privacidade nenhuma, desaparecia-me comida do frigorífico e o cão do senhorio chegou a fazer as necessidades dentro do nosso quarto”.

Foi depois disso, e de regresso à casa do namorado, com quem entretanto voltaram a morar, que começou a estudar a hipótese autocaravana. “Não posso falar em violência física, porque não existia, mas era um ambiente muito pouco saudável, sobretudo para o meu filho. Pedi ajuda a todas as instituições que conhecia, para poder ter acesso a uma habitação social, mas disseram-me que não tinham como dar resposta a todos os casos que tinham. Se eu já estivesse na rua, era uma coisa, mas, como ainda tinha um teto, não podiam fazer nada. Foi aí que comecei à procura de uma autocaravana. Andei um ano e meio à procura, pedi empréstimos a todos os bancos e financeiras, só uma é que aceitou”, recorda, sem querer revelar ao certo quanto paga todos os meses pelo crédito pessoal que contraiu, para comprar a autocaravana de 2011, em segunda mão.

Uma coisa garante: é substancialmente menos do que gastaria para arrendar um apartamento, mais ou menos o mesmo do que pagou há quatro ou cinco anos por aquele quarto em que viveram um mês de pesadelo, um pouco mais atrás na linha de Cascais.

Dentro do espaço de 7,5 metros de comprimento por 2,5 de largura, equipado com painéis solares, Elisabete tem o seu próprio quarto, com cama de casal e casa de banho — de um lado fica a coluna de duche, do outro tudo o resto, incluindo, no chão, a caixa de areia e os brinquedos da gata Kinder, de apenas dois meses.

"Hoje em dia morar numa autocaravana já não choca tanto. Mas choca ainda… há quem veja o que fizemos como um ato de coragem, e há pessoas que nos veem como sem-abrigo, como pessoas sem condições”
Elisabete Desidério

Debaixo da cama está guardado o material escolar de H.; nos pequenos roupeiros que a ladeiam, as roupas de mãe e filho; no espaço que faz de cozinha, equipada com fogão não apenas com um mas com dois fornos, um deles apenas para pizzas, há vários armários, um para as mercearias, outro para os talheres, outro para as loiças. A prateleira em que está pousada a máquina de café esconde o lava-loiças; o microondas está na prateleira destinada à televisão; o frigorífico e o congelador estão cobertos de ímanes, recordações de viagens feitas noutra vida, pré troika, quando ainda conseguia trabalhar como designer gráfica em vez de a fazer limpezas, e “tinha um bom salário”.

“Tive de deixar tudo para trás, bicicletas, plantas, mobílias… Mas isso também não é difícil, nada disso nos faz falta. Temos um teto, não é o convencional, mas temos um teto”, desabafa. “Tenho duas irmãs, uma mora em Óbidos, outra em Loures, quando lhes contei o que ia fazer meteram as mãos à cabeça. Hoje em dia morar numa autocaravana já não choca tanto. Mas choca ainda… há quem veja o que fizemos como um ato de coragem, e há pessoas que nos veem como sem-abrigo, como pessoas sem condições.”

Um dia depois de se mudar para a autocaravana, Elisabete criou um grupo no Facebook — “Viver numa Autocaravana.PT”. “Achava que íamos ser uns 10 ou 20 pessoas no máximo, agora somos quase 10 mil”, congratula-se, embora reconheça que a maior parte dos membros não vivem  a tempo inteiro nas caravanas que possuem — e, mesmo entre os que o fazem, o que não falta é quem não tenha qualquer constrangimento económico associado.

Ainda assim, garante ao Observador o britânico Loyd Rozzo, proprietário da Siesta Campers, empresa com sede no Algarve que aluga, repara e converte furgões em campervans, as chamadas carrinhas transformadas, têm sido cada vez mais as pessoas a fazer o mesmo que Elisabete e H. — em consequência direta da crise no mercado da habitação em Portugal.

Loyd Rozzo e a mulher, Claire, estão em Portugal desde 2000. Antes de abrirem a Siesta Campers, também viveram 10 anos numa autocaravana

“O aumento dos alugueres de curta duração no Airbnb, associado à escassez de opções de alojamento de longa duração, está a forçar as pessoas a procurar alternativas mais criativas. Aconteceu uma situação semelhante no Reino Unido durante o final dos anos 80 e início dos anos 90, quando surgiu uma comunidade semelhante, que ficou conhecida como os ‘viajantes da Nova Era’”, começa por comparar, em resposta enviada por escrito. “Temos visto cada vez mais pessoas a pedirem reparações nos veículos em que estão a viver e um crescimento maciço de pessoas a pedirem-nos para fazer a conversão total das carrinhas que compraram”, diz o empresário, há mais de duas décadas em Portugal, ressalvando que apesar de a maior parte das pessoas a viver atualmente sobre rodas no país serem estrangeiros, nomeadamente do norte da Europa, sem problemas económicos, os chamados “nómadas digitais”, recentemente têm aparecido também cada vez mais portugueses.

“A tendência mais interessante é ver as nossas vendas de autocaravanas usadas a explodir. As nossas carrinhas nunca têm mais de 2 anos e, no final de cada época de verão, colocamos os modelos mais antigos à venda. Durante o outono de 2022, o interesse nas vendas mais do que duplicou. No momento em que anunciámos que as carrinhas estavam à venda, as pessoas batiam à nossa porta de manhã à noite, e algumas compraram mesmo as carrinhas sem as ver antes. Algumas estavam muito ansiosas por comprá-las o mais rapidamente possível, referindo preocupações com a habitação.”

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre os casos de pessoas que recorrem a caravanas para viver.

Quando a caravana é a única opção para viver

“Procuro uma carrinha fechada, que não seja um balúrdio, para habitação”

No passado dia 4 de maio, depois de mais uma noite a dormir no beliche improvisado na sala do T1 onde o filho mora com a mulher, Dina Dias, 50 anos, resolveu pedir ajuda no Facebook.

“Procuro uma carrinha fechada, que não seja um balúrdio, para habitação. Se alguém tiver conhecimento de alguma oportunidade, por favor informem-me. Não tenho onde morar. Grata”, escreveu num grupo de mulheres trabalhadoras e solidárias, que rapidamente reagiram com “consternação”, “choque” e “vergonha”, mas não conseguiram ajudar a resolver o problema.

“As carrinhas têm um custo elevado para o meu orçamento agora, mesmo sendo já antigas, não encontrei nada abaixo dos 4 mil, 5 mil e tal euros”, explica Dina, cerca de um mês e meio depois, já lá vão três a viver de favor em casa do filho.

Foi a 9 de abril que saiu do T1+1 onde morava há já oito anos, na periferia de Albufeira, o senhorio ainda tentou aumentar a renda de 300 para 450 euros, mas depois de Dina lhe explicar que, sozinha e a receber o ordenado mínimo, nunca conseguiria pagar tanto, acabou por decidir não renovar o contrato.

A ideia de se mudar para uma carrinha surgiu em desespero, inspirada em conhecidos que transformaram furgões em casas sobre rodas para passar férias ou fins de semana, e depois de perceber que, pelo menos até ao fim do verão algarvio, por 300 euros, nem um quarto seria capaz de encontrar. “Era uma forma de ter a minha privacidade e o meu espaço. A situação atual não é a melhor e é temporária”, lamenta a administrativa, funcionária de uma empresa que presta serviços de manutenção de piscinas.

Por muito que, a médio prazo, morar numa carrinha ou numa autocaravana seja mais barato do que num apartamento arrendado — até porque com as quatro paredes desaparecem despesas fixas com água e eletricidade —, será sempre necessário um investimento inicial mais avultado. Ou então não, ressalva Sandra Lopes, professora e psicóloga de 52 anos, também em situação de despejo iminente, também a morar no Algarve. “Encontrei um T3 em Portimão por 900 euros, mas pediam 6 meses de caução e uma renda adiantada”, escandaliza-se. Feitas as contas, seriam precisos 6.300 euros, à cabeça, só para poder arrendar o apartamento.

“Tenho uma renda de 900 euros que neste momento não estou a pagar, não tenho como. Estou a encaixotar as minhas coisas para fazer uma mudança, mas não sei para onde. As pessoas falam de Lisboa mas o Algarve é pior, já vi T1 a 1200 euros e T2 a 1500. Sendo que a maior parte dos apartamentos só estão disponíveis a partir de outubro e em maio temos de sair"
Sandra Lopes

Há sete anos de regresso à zona de Portimão, depois de 20 a viver em Londres, Sandra diz que já deixou há vários meses de pagar o apartamento onde mora com o filho, que em setembro vai estudar para Lisboa. “Tenho uma renda de 900 euros que neste momento não estou a pagar, não tenho como. Estou a encaixotar as minhas coisas para fazer uma mudança, mas não sei para onde. As pessoas falam de Lisboa mas o Algarve é pior, já vi T1 a 1200 euros e T2 a 1500. Sendo que a maior parte dos apartamentos só estão disponíveis a partir de outubro e em maio temos de sair. Também não alugam casas a pessoas com cães — e eu tenho um yorkshire que não vou abandonar —, e não alugam casas a mulheres com filhos, só casais. A ideia deles é que se acontece alguma coisa não há outro para pagar: ‘Peço desculpa, é só para casais’”, diz a professora, atualmente a dar aulas de português para estrangeiros numa escola de línguas. “Há habitação muito barata no interior de Portugal, mas a minha rede profissional está cá, como é que vou fazer?!”

Conta que, depois do divórcio, quando voltou para Portugal, abriu uma sala de estudo, investimento que, com a pandemia, acabou por ter de dar como perdido. “A liquidez que eu tinha foi-se toda com a Covid. A linha é muito ténue. Uma pessoa pode trabalhar, ter um teto, mas se acontece alguma coisa é muito fácil passar de uma situação para outra. Há uns que estão na jangada, outros estão em iates. Eu também já tive uma vida acima da média… Agora penso que viver numa carrinha pode ser uma solução. Ainda ontem passei por uma rua em Portimão e vi um senhor a sair de uma carrinha a espreguiçar-se. E não estou a falar de homeless, nem de pessoas com problemas e adições…”

Outra hipótese que colocou — e tentou pôr em prática, através de um grupo de whatsapp que criou em maio deste ano, depois de ver o apelo de Dina Dias no Facebook — foi a de juntar várias mulheres na mesma situação para comprar ou ocupar um terreno e lá estabelecer casas pré-fabricadas ou autocaravanas, numa lógica de a união faz a força.

Mais de um mês e meio, inúmeras mensagens e várias chamadas de vídeo em grupo depois, está pronta para atirar a toalha ao chão. “As senhoras têm muito medo. Tenho encontrado casas modulares espetaculares a um preço fantástico, mas sozinha não consigo comprar o terreno e fazer tudo o que teria de ser feito”, conta, através de mensagens escritas. “Estou neste momento a rescindir contratos e a recusar trabalho porque não me resta outra solução a não ser deixar o Algarve. Vou para Lisboa, temporariamente vou ficar na casa que aluguei para o meu filho, até alugar um espaço para mim. Em relação ao trabalho… é começar tudo do zero. E tendo em conta que os meus pacientes não querem continuar em terapia online, é perder efetivamente tudo.”

“Para limpar é mais fácil e fica tudo muito mais barato: eletricidade não pago, água não pago — há uma fonte de água fresquinha a cinco minutos, é só ir lá buscar”

Sentado à mesa convertível em cama da autocaravana onde vive desde fevereiro, Hélder J. reconhece que, se não teve tudo, ao longo dos 47 anos de vida conseguiu consideravelmente mais do que tem agora — isto apesar da vista desafogada para uma zona de pinhal na Sobreda da Caparica.

Natural de Vila Nova de Poiares, no distrito de Coimbra, foi empresário, proprietário de duas lojas de produtos alimentares africanos, uma em Lisboa, no Mercado da Ribeira, outra na margem sul do Tejo, na Arrentela. Tem dois filhos, uma rapariga, hoje com 18 anos, e um rapaz, de 16, que vivem ambos com a mãe, de quem se separou, no Reino Unido.

Mecânico de automóveis, em 2019 foi convidado para trabalhar como torneiro mecânico numa fábrica em Mafra. “Comecei no dia 10 de junho. Pagavam-me 1.500 euros limpos e tinha todas as condições. Depois veio a pandemia, a oficina fechou e eu fui para o fundo de desemprego”, começa a contar. Ao longo dos meses em que esteve sem trabalhar, diz, teve problemas, nomeadamente de condução sob consumo de álcool. “Tive três processos seguidos e acabei a ficar sem carta durante oito meses. E passei cinco de pulseira.”

Em prisão domiciliária, em casa da mãe, em Alcochete, começou a “estudar” formas de dar a volta à vida. Primeiro, passou horas a ler e a ver vídeos no YouTube sobre criptomoedas e NFTs, depois dedicou-se à pesquisa sobre autocaravanas. “Em Vila Nova de Poiares temos um terreno que está como agrícola mas que já tem tudo à volta, saneamento, outras casas… Queríamos fazer uma coisa off-grid, fora da rede, para não termos de pagar IMI, nem luz, nem água, temos lá uma nascente. Pensámos numa casa pré-fabricada mas percebi que também é preciso licença, portanto virei-me para as autocaravanas”, recorda.

Quando, no fim da pena, conseguiu trabalho na oficina de abate de veículos na Sobreda da Caparica, onde já tinha estado uns anos antes, voltou a pensar no assunto.

Durante sete meses, a receber “o salário mínimo, mais o almoço todos os dias”, fez 100 quilómetros de carro por dia, entre a freguesia de Almada e a casa da mãe, em Alcochete, 50 para cada lado — era incomportável.

Um dia, ao dar boleia a um colega, reparou na autocaravana branca, estacionada exatamente no sítio onde agora conta a história, sobre a areia onde anos antes existiu um parque infantil, num terreno que pertencia à fábrica de relógios da americana Timex.

Fechou negócio pouco tempo depois: cinco mil euros pela carrinha, de 1995, em terceira ou quarta mão. “Ainda estou a pagar, vou pagando. O rapaz ajudou-me e eu ajudo-o também. Entretanto comprou outra caravana e eu estou a ajudá-lo a arranjá-la.”

“Tenho tudo à mão, para limpar é mais fácil e fica tudo muito mais barato: eletricidade não pago, água não pago — há uma fonte de água fresquinha a cinco minutos, é só ir lá buscar —, e comprei uma bilha em fevereiro que ainda dura, parece que gasta mesmo muito pouco e aquece bem a água”
Hélder J.

Há cerca de quatro meses a morar na Ford Transit branca, equipada com uma pequena televisão, voltada para a cama, no capuchinho sobre o volante, um pequeno frigorífico, fogão e casa de banho, com escoamento para o duche no chão, o mecânico continua em obras —  está a retirar madeiras e outros materiais que deixam a autocaravana muito pesada para a poder levar à inspeção e fazer seguro; o caos no interior é total. Já da parte de fora, o cenário está mais bem composto, com pedaços de troncos a fazer de bancos, sobre uma carpete retangular, com padrão tigresse.

Ao contrário de Elisabete Desidério, Hélder não esconde que está ali a viver. Garante que os vizinhos não só não se importam como até apreciam a sua presença — há uns meses pediu a um amigo que limpasse o terreno mesmo ali ao lado, onde o plano de alguns moradores é fazer agora uma horta.

Pelo menos nos próximos dois anos, garante, não tenciona procurar outro sítio para viver. “Tenho tudo à mão, para limpar é mais fácil e fica tudo muito mais barato: eletricidade não pago, água não pago — há uma fonte de água fresquinha a cinco minutos, é só ir lá buscar —, e comprei uma bilha em fevereiro que ainda dura, parece que gasta mesmo muito pouco e aquece bem a água.”

“Acho que vem aí uma crise e isto vai ficar pior. A melhor coisa que tenho a fazer é investir na minha autocaravana e manter o meu espaço”

Filipa Lopes tem 28 anos e desde janeiro que vive na autocaravana que comprou com as poupanças que conseguiu juntar enquanto estudava e trabalhava.

Natural de Seia, na Serra da Estrela, fez o curso de engenharia informática em Coimbra, a morar no edifício da Real República Rápo-Táxo, mesmo ao lado das escadas monumentais que dão acesso à universidade. Quando deixou de ser estudante, teve de sair e de dizer adeus ao alojamento a preço acessível, abaixo dos 200 euros/mês, de que tinha beneficiado ao longo dos últimos seis anos.

Ainda procurou apartamentos para arrendar, mas percebeu rapidamente que sozinha seria impossível. “Já tinha tido a experiência de partilhar casa, e não quero voltar a isso, por isso comecei a ver preços de casas. Prefiro pagar um empréstimo e ter algo que seja meu, em vez de estar a pagar rendas, mas também não consegui. O mercado agora não está feito para pessoas sozinhas, está feito para pares — e o emprego que eu tenho não é assim tão mal pago!”

Filipa Lopes mora e trabalha numa Peugeout Pilote de 1988 desde janeiro. “Dá trabalho: quando vou para um sítio tenho sempre de verificar onde vou às compras, estacionar, ou buscar água"a

Rui Miguel Pedrosa / Observador

A trabalhar de forma remota como informática, com um salário de mil euros mais subsídio de alimentação, percebeu rapidamente que, ainda para mais não tendo a obrigatoriedade de ir todos os dias para o escritório, podia viver onde quisesse. “Não tinha necessariamente de ficar em sítio nenhum a pagar uma renda. Pensei que, em vez de dar esse dinheiro a outra pessoa, podia investir numa autocaravana e ter algo que fosse meu”, explica.

Em 2019, já depois de ter pedido ajuda ao pai, sem sucesso — “O que ele queria era que eu arranjasse uma casa e fizesse tudo normal” —, comprou uma Peugeot Pilote de 1989, por 9.500 euros. “Fui roubada, não valia assim tanto. Entretanto o motor rebentou, por isso é que ela esteve muito tempo parada, foi difícil encontrar um motor para uma carrinha de 1989. Já tive de gastar mais dinheiro, mudei motor, escape, bomba de água e inversor de corrente e meti vinil no chão”, diz.

No inverno passado, quando a “casa” finalmente ficou pronta, passou um ou dois meses num terreno perto dos pais, a ambientar-se à nova vida. Quando se sentiu preparada, fez-se à estrada, e agora raramente está muito tempo no mesmo sítio, explica, a meio de mais um dia de trabalho, estacionada entre um cemitério e uma escola primária em Coimbra. “Acabo sempre por visitar amigos, um dos maiores medos que tinha era a solidão”, admite. “Apercebi-me de que não preciso assim tanto para viver, a minha autocaravana tem casa de banho, cozinha, quarto, sala, está tudo. Não preciso de mais nada.”

“Dá trabalho: quando vou para um sítio tenho sempre de verificar onde vou às compras; onde vou estacionar — porque tem de ser minimamente seguro, não vou parar no meio do mato —; onde vou ter uma fonte de água; e ainda tenho de andar sempre a descarregar as águas cinzentas e as negras… Tenho amigos que dizem que é um sonho e que também queriam, mas quando veem como tenho de me esforçar desistem da ideia"
Filipa Lopes

Como, ao contrário de Elisabete e de Hélder, quer juntar o que tem mesmo de ser ao agradável e aproveita frequentemente para viajar, Filipa tem no gasóleo a maior fatia do orçamento mensal. De resto, enumera, gasta dinheiro em mecânicos, alimentação e internet, mais nada. “Tenho um painel solar, que me dá eletricidade, e no norte há sempre uma bica em qualquer lado, para me abastecer de água”, explica, para depois passar às partes mais chatas.

“Dá trabalho: quando vou para um sítio tenho sempre de verificar onde vou às compras; onde vou estacionar — porque tem de ser minimamente seguro, não vou parar no meio do mato —; onde vou ter uma fonte de água; e ainda tenho de andar sempre a descarregar as águas cinzentas e as negras… Tenho amigos que dizem que é um sonho e que também queriam, mas quando veem como tenho de me esforçar desistem da ideia. Estas não são preocupações que uma pessoa tem normalmente. As pessoas não querem sair do dia a dia delas para ir à procura de água, preferem pagar a conta com o telemóvel, demora dois minutos. Isto tira tempo do meu dia, mas eu não me importo. Balanceando as coisas, prefiro andar à procura de água do que ter de estar a pagar sei lá eu quanto por uma coisa que é grátis.”

Apesar de há uns anos não ser assim tão simples, explica ao Observador Sónia Gonçalves, responsável da Albicampo, empresa da zona de Aveiro que desde 1997 se dedica à venda de caravanas, autocaravanas e acessórios, o país está hoje muito mais preparado para a prática, que deixou de ser monopólio de “velhotes”. “Há cada vez mais pessoas a comprar autocaravanas, há uma espécie de moda, antigamente era mal-visto, agora é hippie chic. E há cada vez mais locais em que se pode parar e fazer despejos sem pagar. Há hipermercados, como o Intermarché e o Mercadona, que têm áreas para autocaravanas, e os bombeiros e a GNR também recebem.”

Tom Trell, a viver em Portugal desde 2019 e há cerca de dois meses a morar numa carrinha transformada, concorda. “Apesar de ser sempre preciso alguma habituação, se vamos viver numa carrinha, não há melhor que Portugal”, diz o americano de 33 anos, que há quatro resolveu sair do Reino Unido, para onde tinha emigrado, empurrado pelo mau tempo e pelo Brexit.

Quando, ainda antes da pandemia, chegou a Lisboa, encontrar um sítio onde viver não foi tarefa fácil. “O alojamento já estava a tornar-se um problema. No início, fiquei num aluguer de curta duração, mas rapidamente percebi que não ia ser fácil. Acabei por mudar-me para um hostel enquanto procurava e encontrei um pequeno estúdio na Penha de França, por 750 euros.”

“É definitivamente mais barato numa base mensal, mas, mais importante do que isso, era a única opção disponível. Nunca pensei que iria viver numa carrinha a longo prazo”
Tom Trell

Entretanto, a situação só piorou: no início deste ano, o senhorio não renovou o contrato — “Disse-me que ia passar para o arrendamento de curta duração” —, e Tom viu-se de volta ao ponto de partida. Com uma agravante: em 2023, descobriu preços ainda mais elevados e um mercado completamente saturado. “Perguntei por aí, procurei na Internet, mas os preços descontrolaram-se muito, especialmente nos últimos tempos, e não havia nada disponível. Mesmo mandando mensagem apenas um dia ou dois depois de um anúncio ser publicado, já era tarde demais, não havia nada disponível. Não me dei ao trabalho de procurar durante muito tempo, sabia que era inútil. Nunca tive tanta dificuldade em encontrar um sítio com um preço acessível como aqui”, reclama.

A trabalhar justamente para a Siesta Campers, a empresa de aluguer de campervans de Loyd Rocco, Tom Trell não teve outra alternativa senão pedir ajuda no trabalho. “No início até brincava com a situação, dizia que podia ser um grande ‘plano B’, mas depois de perceber quão difícil ia ser encontrar um lugar, comecei a pensar a sério na hipótese”, explica o americano, que entretanto comprou uma das carrinhas que a empresa já não estava a alugar aos clientes. “É definitivamente mais barato numa base mensal, mas, mais importante do que isso, era a única opção disponível. Nunca pensei que iria viver numa carrinha a longo prazo”, acaba por admitir.

A engenheira informática trabalha das 9h às 18h. Às 13h para e almoça — tudo no interior da autocaravana

Rui Miguel Pedrosa / Observador

Apesar de dizer que não lhe custou muito a adaptar à nova vida, que é solteiro, que não precisa de muitas coisas e que a carrinha, que tem fogão, frigorífico, chuveiro e casa de banho portátil, “é só um lugar para descansar depois de mais um longo dia”, Tom Trell também diz que nunca tencionou que esta fosse uma “solução a longo prazo”.

Elisabete Desidério, que continua à espera que lhe liguem de uma das muitas instituições a cuja porta bateu há mais de três anos, garante que, se vier a ter direito a habitação social, será apenas para o filho, ela já não se imagina a morar noutro sítio que não a autocaravana. “Aqui não tenho IMI, não pago condomínio, não gasto dinheiro em reparações ou pinturas de prédios — e nem lhe passa pela cabeça quão bom é estar aqui dentro a ouvir a chuva a bater e o vento”, explica, semanas depois do primeiro encontro com o Observador, agora já estacionada noutro local, na zona de Alcabideche, onde trabalha. Quando as aulas do filho acabam é sempre assim, muda-se para outro bairro, para poupar nas deslocações. Aos fins de semana, de tempos a tempos, também costumam aproveitar para sair — até porque a autocaravana não pode estar estacionada no mesmo local mais de 30 dias seguidos.

Em Coimbra, Filipa Lopes também não quer nem ouvir falar no que vem depois. “Agora quero explorar a autocaravana enquanto puder, acho que vem aí uma crise, acho que isto vai ficar pior; a melhor coisa que tenho a fazer é investir na minha autocaravana e manter o meu espaço. Não quero pensar em arranjar casa, não quero pensar em nada disso. Consigo poupar, não me preocupo com dinheiro, é todo o descanso que queria para a minha vida.”

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