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João Leão foi convidado e negociou a sua ida para vice-reitor do ISCTE quando ainda era ministro das Finanças, dois dias antes de sair do Governo, a 28 de março, confirmou a instituição ao Observador. O novo cargo, somado à dotação de 5,2 milhões de euros do Orçamento do Estado, do qual era o responsável, atribuída a um projeto daquela instituição motivou o protesto na sombra de outras universidades, que sugeriram favorecimento. João Leão repete que não deu qualquer autorização — em causa estava o financiamento do Centro de Valorização e Transferência de Tecnologias (CVTT) –, mas o processo só avançou com a autorização da sua secretária de Estado do Orçamento, Cláudia Joaquim.
Mais do que isso, o próprio João Leão, quando era secretário de Estado do Orçamento, em maio de 2020, chegou a assinar uma portaria a autorizar o ISCTE-IUL a assumir encargos plurianuais relativos a esse mesmo CVTT. Aí não estava em causa a transferência de mais de 5,2 milhões do OE — que agora suscitou a polémica noticiada pelo jornal Público — mas sim uma autorização para o ISCTE assumir encargos plurianuais no valor de 1.074.518, 16 euros.
João Leão defende-se, via ISCTE, dizendo que toda a negociação passou pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e que, quando passou pela secretaria de Estado do Orçamento, que tutelava, foi muito antes de saber que ia sair do Governo ou que seria convidado para ser vice-reitor do ISCTE (era apenas docente, com atividade suspensa, do quadro da instituição).
Outro dos argumentos destacados pelo ISCTE é que o vice-reitor que vai coordenar o projeto em causa não é João Leão, mas sim o vice-reitor Jorge Costa, que já havia estado com o projeto entre 2018 e 2022.
Das trocas de correspondência entre Manuel Heitor e Maria de Lurdes Rodrigues, ao momento em que o convite foi feito a João Leão, passando pelas fortes ligações do ISCTE a figuras do PS, o Observador explica o caso em sete respostas.
João Leão teve intervenção direta no financiamento do projeto do ISCTE?
João Leão não colocou a sua assinatura em nenhum documento relacionado com o financiamento do projeto do Centro de Valorização e Transferência de Tecnologias do ISCTE, mas uma das secretarias de Estado que tutelava teve intervenção direta no processo. Fonte oficial do ISCTE admitiu ao Observador que “a portaria de extensão de encargos foi assinada pelo MCTES e pela Secretaria de Estado do Orçamento”.
Há ainda outra ligação ao ministério tutelado por João Leão, a um nível mais técnico: a organização do processo foi feita pelos serviços do Ministério do Planeamento e do IGeFE (Instituto de Gestão Financeira da Educação), mas também pela Direção-Geral do Orçamento.
Apesar das ligações à tutela, o ISCTE reitera que “João Leão não deu nenhuma autorização de transferência de verba”, uma vez que “a decisão é do ministro da tutela”. Neste caso, de dois ministros: Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) e Planeamento.
Outra das ligações ao Ministério das Finanças passa pelo facto de a contrapartida nacional — uma vez que o projeto tem fundos comunitários — ter origem na dotação centralizada do Ministério das Finanças e não nas dotações do MCTES. O ISCTE justifica ao Observador que o “Decreto-Lei de Execução Orçamental prevê que as entidades da Administração Central podem recorrer a uma dotação centralizada”.
Isto significa que o ISCTE solicitou ao MCTES este financiamento e — como havia dotação disponível e a lei prevê que seja atribuída para que não se percam os fundos comunitários — o processo avançou. Após a aprovação do MCTES, o Ministério do Planeamento e a Secretaria de Estado do Orçamento deram seguimento. Apesar de haver envolvimento da secretaria de Estado do Orçamento, tutelada por João Leão, fonte oficial do ISCTE destaca que “o processo foi concluído em 2021, antes de ser entregue Orçamento do Estado e antes de serem marcadas as eleições.” A base do argumento neste caso não é apenas o ex-ministro não ter assinado nada, é também que João Leão não sabia que ia voltar para o ISCTE.
Quando é que João Leão negociou a ida para o ISCTE?
Um dos pontos mais polémicos desta transferência tem precisamente a ver com a rapidez com que João Leão sai do Governo e entra – quase imediatamente – no ISCTE. O ex-governante só deixou a pasta das Finanças com a tomada de posse e entrada em funções do novo elenco governativo, a 30 de março, tendo nesse dia falado da sensação de “dever cumprido” que sentia e das finanças estabilizadas que deixava como “um bom ponto de partida para o próximo Governo”.
Ora, esta segunda-feira foi publicado em Diário da República o despacho da nomeação de João Leão como vice-reitor para a área de desenvolvimento estratégico do ISCTE. Mas foi assinado pela reitora, a ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues, há mais tempo: o despacho data de 31 de março, apenas um dia depois da saída de Leão do Governo. Em resposta ao Observador, o ISCTE revela que Leão “foi convidado a integrar a equipa reitoral no dia 28 de março, em reunião na Reitoria do ISCTE”, o que significa que foi convidado estando ainda em funções mas já com conhecimento de que não ficaria no Governo – uma vez que a lista dos novos ministros foi enviada por António Costa a Marcelo Rebelo de Sousa e publicada pelo Presidente da República a 23 de março, ou seja, cinco dias antes da tal reunião no ISCTE.
Confirma-se, assim, que Leão recebeu o convite e negociou o cargo enquanto ainda estava no Governo e tutelava a pasta das Finanças, embora estivesse já na reta final das suas funções e ciente de que não continuaria. O ex-ministro tomou oficialmente posse no ISCTE a 4 de abril, como a instituição confirmava numa nota publicada no site, lembrando que o vice-reitor será responsável pelo desenvolvimento estratégico da instituição, “numa altura em que o ISCTE tem diversos projetos relevantes em curso”. Ao Observador, a instituição garante que “as competências e experiência” do ex-ministro “justificam essa nomeação”.
Existe alguma incompatibilidade legal em o ex-ministro ocupar o cargo de vice-reitor?
Não. Existe, de facto, um período de nojo de três anos para governantes quando vão para uma entidade privada com atividade “no setor por eles diretamente tutelado”. A este nível, o antigo ministro está duplamente protegido: o cargo de direção que ocupa é do ISCTE, que é um instituto público, e é tutelado de uma forma mais direta pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior — não pelas Finanças.
A questão poderia colocar-se apenas do ponto de vista ético porque, como relatou o jornal Público, houve reitores de outras universidades que subiram o tom dos protestos quando perceberam que a juntar a esta verba para o ISCTE — que já contestavam, alegando alguma falta de igualdade de tratamento — João Leão assumiria o cargo de vice-reitor.
Que projeto é este?
O Centro de Valorização e Transferência de Tecnologias é um projeto aprovado no fim de 2019, num concurso promovido pelo Programa Operacional Regional de Lisboa e Vale do Tejo, no âmbito do Portugal 2020, no valor total de 12,3 milhões de euros (4,8 milhões serão financiamento europeu, 2,3 milhões correspondem a receitas próprias do ISCTE e 5,2 milhões virão do Orçamento do Estado).
O projeto vai requalificar as antigas instalações do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), em Lisboa, que passarão a chamar-se “Iscte – Conhecimento e Inovação” e incluirão oito centros de investigação, dez laboratórios e três observatórios da universidade, que serão para ali transferidos.
No site do projeto, pode ler-se que o centro vai servir para “combinar duas áreas de referência de investigação no Iscte” – ciências sociais e humanas e tecnologias digitais – para “fornecer soluções integradas de transferência de conhecimento sobre a sociedade, as organizações, as empresas e a administração pública”.
Objetivos mais concretos, segundo a própria instituição: dinamizar projetos de investigação e desenvolvimento; integrar conhecimentos científicos e tecnológicos; procurar “novas soluções e difusão de novos produtos”; promover a formação de recursos humanos altamente qualificados, nomeadamente doutoramentos e pós-graduações; prestar serviços especializados, em especial de consultoria na área da ciência e tecnologia; atividades de divulgação de ciência e tecnologia; participar em congressos, seminários e conferências sobre as áreas de trabalho do centro.
João Leão vai gerir o projeto em causa?
O ISCTE garante que não, embora o vice-reitor fique com a pasta do Desenvolvimento Estratégico: “O Prof. João Leão não terá nenhuma responsabilidade neste projeto. Aliás, tem já em mãos os dossiers dos novos projetos”, lê-se na resposta enviada ao Observador.
A responsabilidade por este centro em concreto, diz a instituição, não só já está como continuará a cargo do vice-reitor para a Investigação, Jorge Costa, que “já está a trabalhar com as unidades de investigação e com os laboratórios que serão instalados nos novos edifícios para a aquisição do equipamento laboratorial e para a concretização do projeto assim que a obra ficar concluída”, conclui a mesma resposta.
Num esclarecimento previamente enviado ao Observador, a instituição lembrava que o centro está em desenvolvimento desde 2019 e que se concluirá em 2023, tendo sido um “projeto estratégico do primeiro mandato” da equipa liderada por Maria de Lurdes Rodrigues.
Quanto ao pelouro de Leão, incluirá “projetos estratégicos do novo mandato, “os quais estão numa fase de desenvolvimento embrionário e que necessitam de uma intervenção de tipo diferente”, insistia a mesma nota.
Ou seja, haverá aqui uma separação de águas em que o novo centro ficará dentro da pasta da Investigação. Já no Desenvolvimento Estratégico, assumido pelo ex-ministro, vão incluir-se “todos os projetos apresentados e a apresentar no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência e do PT2030, designadamente a Escola ISCTE-Sintra, a construção de residências universitárias e a requalificação e modernização dos edifícios mais antigos do ISCTE-Lisboa”.
Qual é o grau de autonomia e a relação do Governo com o ISCTE?
A troca de correspondência entre o ISCTE e a tutela da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior mostra que este ministério teve interferência direta no processo. Esta relação começa, aliás, com um protesto do ISCTE a Manuel Heitor por, aparentemente, estar a ser deixado para trás em relação a outras instituições em matéria de financiamento.
A reitora Maria de Lurdes Rodrigues, ex-ministra da Educação do primeiro Governo de José Sócrates, enviou assim uma carta a Manuel Heitor a queixar-se de que o financiamento de 2,400 mil euros atribuído ao ISCTE nas dotações do OE para 2021 ficava aquém da média nacional, que rondaria os 4,600 mil.
Na última das alíneas, a reitora do ISCTE lembrava que o instituto tem “vindo a realizar o projeto de requalificação do edifício do IMT e a criação do Centro de Valorização e Transferência de Tecnologias — ISCTE, Conhecimento e Inovação, estando apenas garantido 40% do financiamento do investimento e a descoberto os restantes 60%”.
Na carta em que propunha a celebração de um contrato-programa plurianual, de 15 de outubro de 2020, Maria de Lurdes Rodrigues queixava-se de já ter apresentado a mesma proposta a 2o de janeiro desse ano, mas sem obter qualquer proposta.
Maria de Lurdes Rodrigues revelava, no entanto, que o próprio ministro Manuel Heitor, em agosto de 2020, “aquando da distribuição das dotações do OE pelas IES [Instituições de Ensino Superior”, tinha proposto um caminho que permitia “ultrapassar as limitações das dotações atribuídas ao ISCTE”. Ou seja: o ministro deu o guião à reitora (dois meses depois de João Leão assumir a pasta das Finanças) sobre a forma como contornar as limitações impostas pelas Finanças (via contrato-programa). Maria de Lurdes Rodrigues estava agora a cobrar.
Pouco mais de um mês depois, a 20 de novembro, Manuel Heitor dava início ao processo e respondia à reitora do ISCTE, dando igualmente conhecimento à Direção-Geral de Ensino Superior e à CCRD de Lisboa e Vale do Tejo, já que este é um projeto co-financiado.
Maria de Lurdes Rodrigues acabaria por publicar o despacho de “assunção de encargos plurianuais para empreitada de construção do futuro CVCTT” menos de um ano depois de ter enviado a primeira carta a Manuel Heitor, em setembro de 2021.
Há ligações do Governo e do PS ao ISCTE?
Sim. João Leão já estava ligado ao instituto – é professor lá desde 2008 – mas não é o único (nem vem daí a ideia instalada sobre as ligações entre o ISCTE e o PS). Foi, de resto, a própria instituição a constatar isso mesmo, com a publicação de uma nota no seu site, quando foi conhecido o novo elenco governativo, cujo título era claro: “ISCTE com três ministros no governo”.
A referência era a três nomes que integram a nova equipa, mas também têm ligação à instituição: era o caso de Mariana Vieira da Silva, que, como o site do ISCTE recorda, será a “número 2 do Governo”, com a pasta da Presidência, e é licenciada em Sociologia pelo ISCTE, onde frequenta agora um doutoramento em Políticas Públicas. Além dos estudos, Vieira da Silva fez parte da equipa organizadora do Fórum das Políticas Públicas, na mesma instituição.
No caso da nova ministra da Defesa, Helena Carreiras, mais um elo de ligação: a professora e investigadora é também a antiga diretora da Escola de Sociologia e Políticas Públicas do ISCTE, onde se licenciou em Sociologia. Foi, ainda, professora na mesma instituição nas áreas da sociologia, políticas públicas, segurança e defesa e metodologia da pesquisa social, e investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES).
Já Pedro Adão e Silva foi o nome que mais surpresa gerou quando foi conhecida a lista dos novos ministros, até porque estava até então encarregado de planear as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Como o ISCTE recorda, acumulava essa função com a de professor do ISCTE, tendo coordenado dois relatórios do IPPS-ISCTE (um instituto dedicado ao desenvolvimento de políticas públicas).
A estas referências junta-se o facto de Maria de Lurdes Rodrigues, antiga ministra da Educação de José Sócrates, ser hoje em dia a reitora da instituição. Mas há muitas outras, constatáveis na página dos “alumni notáveis”, publicada pelo ISCTE para divulgar os nomes de relevo associados à instituição. Na política, embora haja referências a nomes como a bloquista Mariana Mortágua e alguns antigos deputados do PSD, a maior parte dos “notáveis” são associados ao PS e muitos já exerceram cargos governativos. Desde logo, o elenco começa pelo antigo líder (destronado por António Costa) António José Seguro e continua com o atual presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva.
Na mesma lista encontram-se nomes como o de Catarina Marcelino, Cláudia Joaquim, João Wengorovius e Miguel Cabrita, todos antigos secretários de Estado nos últimos Governos PS, ou o da ex-ministra da Cultura Graça Fonseca.