As negociações com os professores já rolam desde setembro mas sem fumo branco. Governo e o PS vão tentando alinhar a narrativa a seu favor, num embate de especial tensão — e que se prolonga no tempo — para uma base de apoio importante. Além disso, há um trauma que os socialistas trazem do passado não tão longínquo assim e que estão a tentar afastar a todo o custo: a grande contestação de março de 2008 contra o Governo Sócrates (onde António Costa tinha sido número dois até ao ano anterior, quando saiu para a CML) e o seu modelo de avaliação dos professores. No topo do partido confia-se que o feitiço da contestação pode virar-se contra o feiticeiro.

A cara era a da ministra Maria de Lurdes Rodrigues, mas a consequência foi para o PS, que um ano depois foi a votos e foi incapaz de repetir a maioria absoluta de 2005. O ano que se seguiu à famosa manifestação dos 100 mil professores na rua foi de algumas esperas ao então primeiro-ministro, em vários pontos do país, onde professores descontentes empunhavam cartazes — e até o fundador do PS, Mário Soares, veio a terreiro pedir “diálogo com os sindicatos, com os partidos e com as pessoas” e, em plena maioria absoluta, “humildade de ouvir e de falar”. “Já fez um dano imenso”, lembra um socialista ao Observador sobre esse período.

Um dirigente do partido acrescenta, no entanto, que a diferença entre os dois momentos “é grande”. “Este deslaçamento entre professores e o PS é muito menor e tem um risco muito menor do que aquele que existia quando, em 2008, tínhamos um agenda que por si era recusada pelos professores”. Nessa altura estava em causa o modelo de avaliação de desempenho dos professores. Agora, quando a tensão se prolonga sem fim à vista, o PS aparece empenhado nessa separação de águas entre o momento atual e esses episódios especialmente traumáticos.

“É evidente que é um tema de grande sensibilidade, mas a natureza é muito diferente do que a que tivemos há 15 anos”, refere um socialista. E porquê? Na primeira linha de argumentação do PS — e António Costa fez passar isso mesmo na entrevista que deu à RTP desta semana —  o que se passa na rua não é inteiramente responsabilidade deste Governo.

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Ministério fez propostas, mas greves e salas vazias vão continuar. Como os sindicatos de professores avaliam as propostas do Governo

Quando Costa ameaçou demitir-se

Para o primeiro-ministro, “as manifestações não têm a ver com este Governo mas com anos acumulados de frustração” da classe — o próprio primeiro-ministro viu a sua mulher, na altura educadora de infância, juntar-se à grande manifestação de 2008.

O argumento que está a ser alinhado pelo PS é que os professores acabaram por trazer para a mesa de negociações temas do passado. “O levantamento de 2008 foi em resposta a uma iniciativa do Governo que era censurada pelos professores. Neste caso estão a levantar-se porque querem acrescentar temas à negociação que está a decorrer”, comenta um dirigente.

Os sindicatos estão, diz um alto dirigente, “numa competição de quem exige mais e mais“. O Governo mantém a porta fechada ao principal ponto que vem do passado: a contagem dos 6 anos, 6 meses e 23 dias do tempo de serviço perdido com o congelamento de carreiras da Administração Pública. Já provocou tumulto político em 2019 — quando Costa ameaçou demitir-se, em maio desse ano, se se confirmasse a contagem da totalidade do tempo congelado para os professores, depois da junção de PSD, BE, CDS e PCP no Parlamento.

Na altura, a ameaça deu frutos: a esquerda manteve a posição, mas a direita recuou. As eleições estavam a poucos meses de distância e o impacto eleitoral de antecipar legislativas foi calculado por todas as partes — com Costa a usar precisamente essa pressão eleitoral a seu favor.

Agora, o socialista não está em condições de radicalizar o discurso a esse ponto e é bem mais cauteloso na rejeição de uma reabertura desse dossiê, preferindo o tom pedagógico. “Abrimos estas negociações para resolver esses três pontos importantes”, ou seja, a trilogia “fixar, aproximar e vincular” os professores. E ainda através de outra via: “Não foram só os professores que tiveram a sua carreira congelada. Foi aplicada a fórmula aplicada a outras carreiras”.

“Aproximar, fixar, vincular.” Com que propostas vai o Governo negociar com os professores?

“Os professores não são o país. E o país está a perceber…”

O argumento não é exclusivamente financeiro e até há socialistas que atacam Fernando Medina por, ainda esta quarta-feira, ter falado no défice quando foi confrontado com esta negociação. “As pessoas não querem saber das medalhas dos ministros, mas dos seu problemas”, desabafa um socialista.

O ministro das Finanças foi confrontado com o impasse negocial, em entrevista à CNN, e com a reivindicação mais sonora da repetição do tempo congelado e respondeu: “Quando estamos a falar na ideia de que o Estado, este ano, teve mais receita, nós devolvemos aos portugueses. Vamos acabar com um défice próximo do que previsto, a dívida melhor, mas temos de cuidar do equilíbrio das nossas contas públicas, não só para hoje, mas para o futuro”.

Mas Medina também tocou no ponto que o PS quer tem tentado fazer passar, ao dizer que “quando se fala dos professores pelas suas reivindicações (…) temos de ter em conta a situação geral do país. O país tem não só professores, mas enfermeiros, médicos, tem um conjunto vasto de profissionais.”

A ideia do PS neste ponto passa sobretudo por argumentar que os professores não podem ter um tratamento de exceção. “Os professores não são o país. E o país está a perceber…”, sugere ao Observador um alto dirigente convencido de que esta onda não atingirá as proporções de 2008. Até porque, acrescenta, “os sindicatos andam descontrolados, sem o sentido das proporções e das capacidades do país e sem compreender que não foram nem são os únicos prejudicados pelos cortes e congelamentos”.

A responsabilidade pela paragem da contagem do tempo é empurrada, pelo Governo socialista, para o Governo de Pedro Passos Coelho, embora na verdade tenha começado com o PS no poder. Em agosto de 2005, foi o Governo de José Sócrates que congelou carreiras, que nunca mais foram descongeladas até 2018. Ora, o PS de Costa passa uma borracha sobre o início e coloca o foco em quem descongelou. “O que releva é que é com este primeiro-ministro que vão recuperando“, nota um alto dirigente.

Dentro do PS não é, no entanto, um tema fechado para todos e há quem aponte a necessidade de cedência do Governo também nesta matéria. “A situação dos professores é diferente das outras carreiras”, refere um socialista que defende “uma proposta alternativa” como por exemplo “corrigir o tempo para efeitos de aposentação”.

Teme-se, aliás, que este Governo possa “acabar com esta relação” do PS com os professores e que isso “pode ser dramático” para outras lutas. “Nos concelhos pequenos os professores são os únicos que criam alternativa porque têm autonomia pessoal — a maioria das pessoas nesses concelhos trabalham para as câmaras”, argumenta um socialista em conversa com o Observador.