Cidades destruídas, alvos civis sob ataque constante, russos feridos impedidos de ser transportados para fora das zonas de conflito e mantimentos que não são entregues às forças de Moscovo que avançaram demasiado no terreno. Este é o retrato traçado pelo relatório diário do Instituto para o Estudo da Guerra (ISW), um think tank com sede nos Estados Unidos. O documento, divulgado este domingo, é especialmente crítico de Vladimir Putin e do valor que está a ser dado a Severodonetsk, principal foco da guerra.
“O Presidente russo, Vladimir Putin, está a infligir um sofrimento indescritível aos ucranianos e a exigir sacrifícios horríveis ao seu próprio povo num esforço para tomar uma cidade que não vale a pena, mesmo para ele”, começam por escrever os analistas Frederick W. Kagan, Kateryna Stepanenko e George Barros.
Severodonetsk é agora o grande objetivo de Moscovo, cujas tropas continuam a tentar cercar a capital da província de Lugansk (que com o Donetsk forma a região de Donbass), mantendo uma estratégia de pequenos cercos às forças ucranianas, como já descreveu o Observador. No entanto, o think thank norte-americano desdenha da escolha russa, assumindo, porém, que Moscovo poderá conseguir uma vitória, nos próximos dias, na cidade cujo nome significa norte de Donetsk.
A fragilidade de Severodonetsk: tomá-lo não leva o Kremlin a ganhar a guerra
No sábado, os russos tomaram Lyman, a primeira conquista relevante no meio de vários avanços russos em pequenas localidades, pela importância que têm as pontes e redes ferroviárias daquela zona da Ucrânia. Pelo caminho, Severodonetsk continua sob fogo. Segundo o autarca da cidade, Oleksandr Stryuk, cerca de 1.500 pessoas morreram nos ataques russos e mais de metade dos prédios está em ruínas.
“Putin está a arremessar homens e munições no último grande centro populacional remanescente naquele oblast, Severodonetsk, como se tomá-lo fosse ganhar a guerra para o Kremlin. Ele está enganado”, escrevem os analistas do ISW. Quando a batalha de Severodonetsk terminar, independentemente de quem tiver ocupado a cidade, a ofensiva russa terá culminado a nível operacional e estratégico, “dando à Ucrânia a hipótese de reiniciar as suas contraofensivas de nível operacional para empurrar as forças russas de volta”.
Isso mesmo disse ao Observador Sean Bell, militar britânico na reserva e um dos analistas habituais da Sky News. “Não ficaria surpreendido se virmos os russos a ter sucesso e, numa questão de dias, haver uma grande ofensiva ucraniana que os empurrasse para fora dos seus territórios”, disse o oficial aposentado da Força Aérea Real, o braço aéreo das forças armadas do Reino Unido.
Já o relatório do think thank norte-americano lembra que a Ucrânia obrigou o Kremlin a redefinir os seus objetivos militares por duas vezes. Primeiro, quando derrotou a Rússia na Batalha de Kiev, levando Putin a centrar-se na região de Donbass (Donetsk e Lugansk). Segundo, quando “o impediu de alcançar esse objetivo, forçando-o a concentrar-se em completar a tomada do oblast de Lugansk”, pondo (pelo menos para já) Donestsk de lado.
“A invasão russa da Ucrânia, que visava apreender e ocupar todo o país, tornou-se uma ofensiva desesperada e sangrenta para capturar uma única cidade no leste, enquanto defende ganhos importantes, mas limitados, no sul e no leste”, lê-se no relatório diário do Instituto para o Estudo da Guerra.
Sucesso tático é desproporcional face a qualquer ganho real
Sobre os avanços e recuos no terreno, os três analistas que assinam o relatório do Instituto para o Estudo da Guerra afirmam que a Rússia está a ganhar território e que a Ucrânia se encontra num dos momentos mais difíceis desde o início da invasão russa, a 24 de fevereiro. “Os militares ucranianos enfrentam o desafio mais grave desde o isolamento da fábrica de Azovstal em Mariupol e podem sofrer uma derrota tática significativa nos próximos dias se Severodonetsk cair, embora tal resultado não seja de forma alguma certo.”
Além disso, quando se coloca os prós e os contras numa balança, ela não pende para o lado que Vladimir Putin mais gostaria. “Os russos estão a pagar um preço pelo atual sucesso tático que é desproporcional a qualquer benefício operacional ou estratégico real que possam esperar receber.”
No entanto, tomar a cidade — o último grande centro em Lugansk nas mãos dos ucranianos — permitiria a Moscovo declarar que tomou a totalidade da província, mesmo que outros benefícios derivados daí não sejam evidentes para o ISW. “Isto é especialmente verdade porque as forças russas estão a destruir a cidade enquanto a atacam e, se a capturarem, irão controlar escombros.”
A importância de Severodonetsk para assegurar a ponte terrestre entre a Crimeia e a Rússia é desvalorizada pelos três analistas, já que os russos não conseguiram segurar outras linhas de comunicação mais vantajosas em Izyum, por exemplo, “em parte porque se concentraram muito” naquela que é a capital do oblast de Lugansk desde 2014, altura em que os separatistas pró-russos tomaram a cidade que tem o mesmo nome da província.
Fluxo de armas ocidentais “é lento e limitado”
O relatório diz, ainda, que os russos têm feitos progressos extremamente limitados em Donetsk, enquanto que em Izyum as suas forças estão paralisadas. Ao redor de Severodonetsk, o avanço é explicado pela concentração de forças ali colocadas: “As tropas russas não conseguiram avançar em nenhum outro eixo por semanas e, em grande parte, nem tentaram fazê-lo.”
Apesar disso, os russos têm sofrido “baixas terríveis” e Moscovo poderá não recuperar o poder de combate “porque está a gastá-lo de forma frívola” para capturar a cidade. Assim, a Rússia corre o risco de esgotar as suas reservas rapidamente e o uso de tanques T-62, que têm mais de 60 anos, é indicativo dos problemas logísticos e de falta de material da Rússia, aponta o think thank.
Já as forças ucranianas, diz o ISW, também estão a sofrer sérias baixas na Batalha de Severodonetsk, militares e civis, e, apesar de estarem a receber armas dos aliados, esse fluxo “é lento e limitado”.
Ainda sobre as forças russas, os analistas apontam para aquilo que parecem ser sinais de quebra de profissionalismo entre os oficiais russos, com potencial impacto no moral das tropas, que já é baixo.
“A Direção de Inteligência Militar da Ucrânia (GUR) informou que os comandantes russos estão a tentar preservar o equipamento militar proibindo os motoristas de transportar soldados feridos ou fornecer mantimentos para as unidades que avançaram demasiado. Recusar-se a arriscar equipamentos para retirar feridos do campo de batalha – exceto em circunstâncias extraordinárias – é uma violação notável dos princípios fundamentais do profissionalismo militar”, lê-se no documento.
O problema, detalha o ISW, é que se as tropas russas presas em eixos secundários perderem a vontade de lutar, a Ucrânia poderá ser capaz de contra-atacar com sucesso.