O leitor menos familiarizado com as regras herméticas do processo penal português pode pensar que a decisão que o juiz Ivo Rosa tomará no próximo dia 9 de abril, sexta-feira, tem contornos definitivos sobre os factos da Operação Marquês que serão (ou não) julgados. Mas a realidade é outra: é tão certo que o polémico juiz de instrução criminal não seguirá na íntegra a acusação do Ministério Público (MP), como é garantido que o procurador Rosário Teixeira recorrerá da decisão de Rosa para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Se atendermos ao número de decisões do juiz Ivo Rosa que têm sido revertidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa, as probabilidades de o recurso do MP ser bem sucedido são significativas. Tudo por uma razão: a visão que o juiz Ivo Rosa tem sobre a lei processual penal e, mais importante do que tudo, sobre a utilização da prova indireta em processo penal é claramente minoritária na judicatura.
É por isso que a Operação Marquês parece uma novela em formato longform cujo final vai sendo sucessivamente adiado — não devido ao sucesso da trama, mas sim devido ao formalismo e à burocratização do processo penal português que faz com que as fases de julgamento e de recurso demorem o dobro ou triplo da fase de inquérito. Resultado: o trânsito em julgado dos autos da Operação Marquês não deverá ocorrer antes de 2036. E isto num cenário otimista.
“Receio que os processos que estão em curso [Operação Marquês e caso BES] não obtenham uma decisão definitiva até ao final desta década de 20. Provavelmente, se houver incidentes processuais, que são naturais, é possível que no fim da década de 30, os processos ainda não tenham chegado ao fim”, afirmou o procurador-geral adjunto Euclides Dâmaso na Rádio Observador.
Ministério Público pode recorrer. Arguidos não
Para percebermos o que poderá acontecer no futuro, temos de perceber o presente da Operação Marquês.
O juiz Ivo Rosa anunciou a 26 de março que iria ler a decisão instrutória no dia 9 de abril (próxima 6.ª feira). O que é a decisão instrutória? É o documento que encerra a fase de instrução criminal — uma fase facultativa em que os arguidos podem contestar a acusação deduzida pelo MP — e no qual o juiz de instrução determina quem são os arguidos que serão julgados e quais crimes que lhes são imputados. Na teoria, Rosa poderá arquivar os autos na sua totalidade.
Se atendermos ao registo histórico do juiz Ivo Rosa no Tribunal Central de Instrução Criminal desde setembro de 2015, altura em que tomou posse naquele tribunal, é altamente provável que o magistrado não siga na íntegra a acusação do Ministério Público. Desde que chegou ao chamado ‘Ticão’, não há registo de uma decisão instrutória em que os requerimentos de abertura de instrução das defesas tenham sido totalmente rejeitados. Pelo contrário, Ivo Rosa já deu total razão às defesas em processos económico-financeiros e ordenou o arquivamento da acusação, como veremos mais à frente.
Além de muito crítico sobre a forma como o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) costuma investigar, o magistrado é conhecido por uma visão hiper-garantistica da lei e uma desvalorização quase total da prova indireta — um tipo de prova que costuma marcar os casos da criminalidade económico-financeira.
Isto é, a decisão de Ivo Rosa será sempre marcada por várias decisões de não pronúncia, quer a nível dos arguidos, quer a nível dos crimes que são imputados na acusação do MP.
Um pormenor relevante: os arguidos não têm direito a recorrer da decisão final do juiz de instrução, mas o MP e os assistentes têm.
Tendo em conta a forma como o MP construiu a acusação, nomeadamente o facto de os crimes de corrupção imputados a José Sócrates e aos restantes arguidos terem uma interdependência como os crimes de fraude fiscal e de branqueamento de capitais, uma decisão de não pronúncia sobre uma parte dos crimes levará sempre a um recurso para a Relação de Lisboa.
A Relação demorará a decidir um recurso do MP?
Não tendo os desembargadores prazo para decidirem sobre a generalidade dos recursos, o cálculo sobre o tempo que demorará a Relação de Lisboa a decidir sobre o mais do que certo recurso do Ministério Público apenas pode basear-se em cálculos por aproximação sobre casos semelhantes.
Uma contextualização fundamental: estará sempre em causa um recurso sobre uma decisão instrutória — e não um recurso sobre uma decisão de julgamento. Qual é a diferença? A exigência na apreciação de prova é totalmente diferente. Enquanto que o juiz de instrução (e os desembargadores que escrutinarem a sua decisão) faz um juízo de probabilidade razoável de condenação na fase de julgamento (pronunciando em caso de resposta positiva), já ao juiz de julgamento é exigido que faça um juízo de certeza sobre a prova produzida em audiência.
Resumindo: o tempo que os desembargadores demorarão a tomar uma decisão deverá ser inferior ao tempo que o juiz Ivo Rosa demorou a fazer a fase de instrução criminal. Porquê? A razão essencial prende-se com o facto de o recurso não obrigar à produção de prova. Isto é, a Relação de Lisboa não ouvirá testemunhas, como Ivo Rosa fez.
O juiz Ivo Rosa demorou 2 anos e 7 meses a tomar uma decisão sobre a fase de instrução criminal da Operação Marquês. O que contrasta com os 3 meses que, por exemplo, o juiz Carlos Alexandre demorou a tomar uma decisão instrutória sobre o processo principal do caso BPN — um caso igualmente complexo (a fraude da contabilidade de um banco), mas de menor dimensão do que a Operação Marquês.
E não, Alexandre não fez uma instrução rápida para seguir na íntegra a acusação do MP. Neste caso, o juiz de instrução despronunciou na totalidade ou parcialmente cerca de 10 arguidos dos 32 acusados pelo procurador Rosário Teixeira.
E o recurso do MP para a Relação de Lisboa? Quanto tempo demorará a ser apreciado? Entre um a dois anos, numa previsão otimista.
Por exemplo, o chamado caso Sonair — um processo de crime económico-financeiro que foi arquivado com uma decisão instrutória polémica e alvo de recurso do MP para a Relação de Lisboa — demorou cerca de um ano a sete meses a ter acórdão. É certo que os autos da Operação Marquês são muito mais complexos (e com uma dimensão incomensuravelmente superior) do que os do caso Sonair. Mas a prioridade que a Relação de Lisboa dará ao recurso do MP fará com que o timing de dois anos para uma decisão do recurso do MP seja razoável.
E reverterá a decisão de Ivo Rosa?
Tão importante quanto esse recurso inevitável do MP para manter a coerência da tese que está subjacente à acusação é outro registo histórico: as derrotas de Ivo Rosa na Relação de Lisboa.
Segundo cálculos do Observador até setembro de 2020, o magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal já teve pelo menos 17 derrotas naquele tribunal superior. O número é apenas uma estimativa e não é oficial, pois o Tribunal da Relação de Lisboa não tem estatísticas com base em juízes. Contudo, mais do que o número de decisões revertidas, o que interessa é o facto de os acórdãos em causa terem origem nas três secções criminais de forma homogénea, o número de juízes desembargadores que já censuraram Ivo Rosa ser significativo (pelo menos, 12 magistrados diferentes) e as censuras contidas nos acórdãos em causa serem igualmente significativas, tal como o Observador tem noticiado desde 2017.
Exorbitar as competências de juiz instrução (invadindo as competências do MP na fase de inquérito) e decidir contra a jurisprudência pacífica na comunidade jurídica (aplicando a lei de forma errada) costumam ser as censuras mais recorrentes dos desembargadores a Ivo Rosa, como pode consultar aqui.
Uma nota importante: a maioria das derrotas de Ivo Rosa estão ligadas à fase de inquérito e não à fase de instrução criminal.
Das derrotas na fase de instrução criminal, destaca-se a mais importante: o caso Sonair, um caso de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais que envolve vários responsáveis da TAP, advogados portugueses e responsáveis da petrolífera angolana Sonangol (o ex-presidente Francisco Lemos Maria Lemos e mais dois ex-administradores).
O DCIAP apenas acusou os arguidos portugueses e enviou os autos relativos aos arguidos angolanos para Luanda. A acusação por corrupção ativa contra o advogado Miguel Alves, que terá criado um alegado esquema fraudulento que terá permitido à TAP receber 25 milhões de euros da Sonair (companhia aérea privada da Sonangol) por serviços que nunca prestou, tendo a transportadora aérea portuguesa pago 9,9 milhões a uma consultoria (World Air) que também nunca trabalhou para a TAP. Este último montante acabou por ser distribuído por várias sociedades offshore que pertencerão ao enteado de Manuel Vicente (Mirco Martins), um alegado testa-de-ferro do general Hélder Vieira Dias ‘Kopelipa’ (Zandre Finda), aos três gestores da Sonangol e também a responsáveis da TAP.
O juiz Ivo Rosa não viu nenhuma prova sólida no caso e arquivou todas as suspeitas, pois o despacho de acusação “limitou-se a fazer uma alegação genérica (…), com utilização de fórmulas vagas, imprecisas e obscuras”, censurava Rosa, segundo o jornal Público.
Já os desembargadores Cláudio Ximenes e Manuel Almeida Cabral não hesitaram em censurar Ivo Rosa por apreciar mal a prova que está nos autos e pronunciaram os sete arguidos em janeiro de 2020 na exata medida da acusação deduzida pelo Ministério Público no verão de 2017.
Ivo Rosa perde pela 12.ª vez na Relação num caso que envolve a Sonangol
Qual razão para tão díspar decisão? O caso Sonair, como a Operação Marquês, assenta em prova direta que comprova todos os circuitos financeiros e em prova indireta para explicar a circulação do dinheiro.
“Quer os factos de corrupção, quer os factos de branqueamento, quer os factos de falsificação, não podem ser vistos como se não tivessem a ver uns com os outros ou como se cada um dos agentes tivesse agido isoladamente, como fez o tribunal recorrido. A apreciação da prova recolhida, para se decidir pela existência ou não de indícios suficientes para a pronúncia, também tem de ser feita dentro desse quadro geral (…) sem esquecer que os crimes de corrupção e de branqueamento de capitais (…) seguem um processo altamente complexo e sofisticado“, lê-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a que o Observador teve acesso.
Um julgamento longo pela frente
Um julgamento de um caso como a Operação Marquês demorará sempre vários anos. Porquê? Por três razões simples:
- número elevado de testemunhas que as defesas apresentarão;
- formalismo do processo penal que obriga a que a prova seja produzida em audiência de julgamento;
- ausência generalizada nos tribunais da reprodução digital da prova documental, o que faz com que as audiências se arrastem.
Começando pelo primeiro ponto. Basta relacionar o número de testemunhas em processos económico-financeiros (e de outra natureza) com elevado número de arguidos, para concluirmos que os julgamentos são morosos:
- Processo principal BPN — julgamento demorou 6 anos e 5 meses e teve mais de 300 testemunhas
- Face Oculta — julgamento demorou 2 anos e 10 meses e teve mais de 350 testemunhas
- Casa Pia — julgamento demorou 5 anos e 10 meses e teve mais de 600 testemunhas
Com regras processuais que não impõem limites ao número de testemunhas e não permitem aos juízes rejeitarem a audição de testemunhas redundantes (quando tal acontece, as defesas acabam arguir a nulidade dos respetivos julgamentos), é fácil perceber que um caso como a Operação Marquês deverá demorar o mesmo tempo que os casos BPN e Casa Pia: entre 5 a 6 anos.
Porquê? Mesmo que o número de acusados (19 pessoas singulares e 9 pessoas coletivas) seja reduzido por uma decisão futura de pronúncia da Relação de Lisboa, a lista de testemunhas de um caso como a Operação Marquês será sempre substancial, como foi nos processos acima referidos.
Um pormenor importante: a diferença muito significativa do julgamento do caso Face Oculta para o caso BPN. Enquanto o primeiro caso demorou apenas 2 anos e 10 meses a ser julgado com 34 arguidos e 350 testemunhas, já o segundo demorou quase quatro anos a mais. Porquê? Por duas razões:
- Porque o coletivo do Tribunal de Aveiro, liderado pelo juiz presidente Raul Cordeiro, foi bastante interventivo e não permitiu grande margem de manobra às defesas no Face Oculta. E utilizou um software que permitiu a apresentação digital da prova.
- Enquanto que o coletivo liderado pelo juiz Luís Ribeiro fez precisamente o oposto no caso BPN — por recear nulidades, deu grande margem de manobra às defesas. Um exemplo: só uma testemunha (um ex-braço direito de Oliveira Costa, o principal arguido do processo) foi interrogada durante cerca de seis (6) meses, ininterruptamente, por todos os advogados. O juiz presidente afirmou no final: “É impossível fazer justiça célere em processos desta complexidade”.
Recursos? Entre os 4 e os 6 anos
A fase de recursos é igualmente morosa, sendo que o sistema penal português determina que um recurso sobre uma decisão condenatória ou absolutória suspende sempre a eficácia do acórdão recorrido.
Mesmo com as restrições aplicadas na década passada — em que os recursos da 2.ª instância (Tribunal da Relação) para o Supremo Tribunal de Justiça foram restringidos aos acórdãos condenatórios com penas acima dos 8 anos —, a celeridade do trânsito em julgado de processos de criminalidade económico-financeira ainda é um problema.
Basta ver os seguintes dados relativos a processos com uma complexidade, repete-se, menor face à da Operação Marquês:
- Face Oculta — Inquérito iniciou-se em abril de 2009, teve sentença em setembro de 2014. As penas de prisão aplicadas a Manuel Godinho e a Hugo Godinho ainda não transitaram em julgado. Armando Vara e Manuel Guiomar começaram a cumprir pena em janeiro de 2019. Paulo e José Penedos e Domingos Paiva Nunes começaram a cumprir pena em dezembro de 2020. Tempo da fase de recurso até ao momento: 6 anos e 7 meses
- BPN — O processo iniciou-se em 2007, teve sentença de primeira instância em maio de 2017 e ainda não transitou em julgado. A última decisão do Tribunal Constitucional sobre uma parte dos arguidos é de março de 2021. Tempo da fase recurso até ao momento: 3 anos e 11 meses.
- Isaltino Morais — Ponto prévio: é um caso muito mais simples do que os anteriores. Inquérito iniciou-se em 2002. Teve acusação em janeiro de 2006. Julgamento começou em março de 2009 e terminou cinco meses depois. A pena de dois anos de prisão por fraude fiscal e branqueamento de capitais apenas foi executada em maio de 2013. Tempo da fase de recurso: 3 anos e 10 meses.
- BPP — O inquérito principal, relacionado com a alegada falsificação da contabilidade do banco, teve acusação em junho de 2014. Julgamento terminou em outubro de 2018 com condenação com pena suspensa. Relação de Lisboa alterou em julho de 2020 pena para prisão efetiva de 5 anos e 8 meses aplicável a João Rendeiro. Autos ainda não transitaram em julgado. Tempo da fase de recurso até ao momento: 2 anos e 6 meses.
Com estes dados, e tendo em conta a dimensão da Operação Marquês, é expectável que a fase de recursos demore entre os 4 e os 6 anos. Ou seja, um tempo que corresponde a um intervalo entre o caso BPN (3 anos e 11 meses) e o caso Face Oculta (6 anos e 7 meses até ao momento).
Resumindo: se somarmos o período máximo das estimativas acima descritas (2 anos para a Relação de Lisboa se pronunciar sobre o recurso do MP relativo à decisão de Ivo Rosa + 6 anos para o julgamento + 6 anos para os recursos) aos períodos das férias judiciais, chegamos à estimativa de 2036.
Como se vê, a Operação Marquês ainda está muito longe do fim.