Nídia Santos reagiu com a maior calma quando lhe rebentaram as águas, na noite do dia 28 de maio de 2016. Como estava em casa, tomou um banho tranquilamente, tratou de tudo muito calmamente até se dirigir ao hospital. Longe de imaginar que estaria prestes a viver uma experiência traumatizante e de consequências devastadoras. “Devido ao que me fizeram, não consegui voltar à minha vida íntima e não consigo sequer pensar em ter outro filho. O medo do parto é tanto, o medo de sofrer é tanto que, para mim, é impensável voltar a passar pelo mesmo.”
Quando chegou, cerca das 23h00, foi logo internada e encaminhada para o bloco de partos. “Quando entrei, foi-me dito pelo enfermeiro e pela médica anestesista que teria de tomar a epidural e eu disse que não queria, porque não tinha dores. Além de que já tinham feito o toque vaginal e só estava com um dedo de dilatação”, recorda a administrativa de 32 anos.
Explicou que queria ir para o corredor para poder “caminhar” até fazer a dilatação, algo que lhe foi recusado. “Disseram que tinha obrigatoriamente de tomar a epidural porque se não fosse naquela altura, não tomava. Mandaram o meu marido sair, deram-me a epidural, algaliaram-me e eu fiquei presa a uma cama durante 16 horas.” Devido à epidural, Nídia começou a vomitar, fez febre e acabou por entrar em hipotermia.
Durante todo o trabalho de parto, explica a administrativa, foi sendo submetida a vários toques vaginais por parte de pessoas que entravam na sala e nunca se apresentaram. “Não sei se eram médicos, enfermeiros, auxiliares. Fiquei sem poder de reação. Senti-me completamente desprotegida, abandonada e não senti da parte da equipa qualquer tipo de ligação comigo. Parecia que estavam a tratar animais e eu era simplesmente só mais um.”
Pelas oito da manhã, os profissionais de saúde — que mais uma vez não se apresentaram, pelo que Nídia não consegue especificar se eram médicos ou enfermeiros — disseram-lhe que tinha “de fazer força para o bebé sair”. O que fez até às 16h00, conta. “Diziam-me que não estava a fazer bem os pushes, então mandaram-me pôr de cócoras e desligaram a epidural. A partir desse momento, tive dores horríveis. Não me foi administrada mais nenhuma epidural e continuaram com a situação dos toques.”
Cerca de vinte minutos antes do nascimento do meu filho, que nasceu às 16h08, disseram-lhe que “não estava a colaborar” e que teriam de “tomar conta da situação”. Nessa altura, entraram mais uma vez vários profissionais que não se identificaram. “Uma delas disse que iam colocar ventosas e eu entrei em pânico, porque sabia dos problemas que podiam causar, mas disseram-me que tinha mesmo de ser. Tive pessoas em cima de mim a empurrar-me a barriga e fizeram-me uma episiotomia [corte entre a vagina e o ânus para facilitar a passagem do bebé] sem o meu consentimento.”
Nídia ainda recorda o momento em que lhe coseram o corte, uma vez que estava a ser explicado a um estagiário como se fazia. “Perguntei mesmo se estava a dar uma aula de costura, ao que ela me respondeu que sim, estava a costurar, que ia ficar extremamente contente com o que estava a fazer e que daqui a dois anos nos encontrávamos. A costura que ela me fez foi simplesmente horrível. Até hoje é sensível e não consigo usar certo tipo de roupas por causa da costura.”
Já depois do parto, a administrativa esteve duas horas no recobro ainda com “muitas dores” e “sem sensibilidade numa das pernas”. “Foi um parto muito complicado e o pior de tudo é que foi muito muito doloroso, porque me tiraram a epidural e eu tive um parto naturalíssimo. Parecia que me tinham partido os ossos todos. Além da falta de sensibilidade e assistência da equipa médica. Tudo o que se passou foi muito traumatizante. Consigo imaginar-me grávida, mas não me consigo imaginar a ter outro filho. É um medo indescritível.”
Isabel Valente, da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto, explica que há muitas mulheres que desenvolvem um “medo do parto em consequência de uma situação traumática”. Essas más experiências, acrescenta, passam por “maus tratos verbais” por parte dos profissionais de saúde, que as acusam, por exemplo, de não estarem a “fazer as coisas como deve ser”; “desqualificação da mulher naquele momento” e “culpabilização”, isto é, elas são as culpadas de o parto não estar a correr da melhor maneira. Muitas são impedidas de assumir uma posição que lhes é “mais confortável” para parir ou de “vocalizar ou emitir sons”; são submetidas a “procedimentos que a equipa médica considera adequados, mas sem serem informadas” — nomeadamente as episiotomias, cuja taxa em Portugal chega aos 70% — sem ser dada a oportunidade à mulher de ser “parte ativa em todo o processo”.
O peso do “inconsciente coletivo” e das experiências de familiares e amigas
Mas o medo do parto não surge apenas após episódios traumatizantes. Acontece também, por exemplo, em mulheres que estão grávidas pela primeira vez. Para Maria de Jesus Correia, psicóloga da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), o medo do parto está também ligado a uma “questão social/cultural”, um pouco associado às questões religiosas com uma conotação “meia bíblica de linha judaico-cristã” em que se passa “uma certa mensagem de um inconsciente coletivo de que parto é algo difícil e doloroso e que, portanto, há um medo que é relativamente normal e comum.”
Tendo isto em conta, há grávidas que vão ter o primeiro filho e desenvolvem um medo ligado ao parto por se tratar de “algo novo e desconhecido”. “O que está subjacente a estas questões nem sempre são aspetos de ordem mais racional. Muitas vezes prendem-se com medos inconscientes que podem estar associados também ao simbólico da mudança: ser uma fase de crescimento, de transformação que não é controlável”, diz Maria de Jesus Correia ao Observador.
Para o psiquiatra e psicoterapeuta Diogo Telles Correia, o medo do parto “não pode ser avaliado de forma independente de todo o contexto de uma mulher prestes a ter um filho”. “As mulheres podem centrar o medo no traumatismo físico do parto, mas inconscientemente existem outros medos mais complexos em causa. O contexto da gravidez e pós-parto associa-se a mudanças drásticas na vida da mulher. Há mudanças familiares importantes, o bebé e a gravidez passam a ser o centro da família, a relação do casal passa para segundo plano, bem como a relação da mãe com o resto da família. Também a atividade profissional é interrompida completamente, pelo menos por algumas semanas, e perturbada no restante tempo, o que pode ser muito complicado para algumas mulheres profissionalmente mais ativas e para as quais a realização pessoal passa pela profissão. Por outro lado, há mudanças hormonais muito importantes e o corpo da mulher também muda, muitas vezes de forma esteticamente desagradável para mulher. Tudo isto deixa a mulher mais vulnerável à ansiedade, ao medo”, defende o professor da Faculdade de Medicina de Lisboa.
Trata-se de um “temor irracional” que também pode assentar em experiências traumáticas tanto descritas por familiares — em particular pela mãe da grávida, quando decide relatar o próprio parto da filha que agora vai ter um filho — e por amigas, continua a psicóloga da MAC.
Mais complexo é o medo com uma “linha mais patológica” — designada de tocofobia — que “muitas vezes condiciona as decisões tomadas no dia a dia” e apela a uma “intervenção mais profunda e até mesmo farmacológica”, destaca a psicóloga da MAC. “Há medicações muitíssimo bem toleradas pela mulher e que não provocam qualquer dano no feto, nem no recém-nascido que é amamentado. Mas têm de ser prescritas por um médico psiquiatra com experiência na área”, acrescenta o psiquiatra Diogo Telles Correia.
“O que se nota mais nas mulheres que vão ter o primeiro filho é apreensão, é um medo muito pequeno, porque se trata de uma coisa nova e têm informações deturpadas tanto através da internet como das amigas”, explica Luís Graça, obstetra e presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e de Medicina Materno-Fetal, ao Observador.
O especialista considera ainda que o tipo de personalidade da grávida também tem influência no medo do parto, em particular nas mulheres que já passaram por uma experiência traumática. “As mulheres mais pessimistas ficam em pânico, com medo de chegarem ao final da gravidez e não aguentarem”. E destaca a importância da relação de confiança entre médico e paciente. “As pessoas têm de falar com o médico e ter confiança nele. Isto é como correr a maratona: é preciso ter um treinador para se ser um bom maratonista e no trabalho de parto é a mesma coisa.”
De acordo com Luís Graça, o principal medo associado ao parto é a dor, mas também um “medo irracional” daquilo que pode acontecer tanto à grávida como ao bebé. Maria de Jesus Correia sublinha também o medo que algumas mulheres têm “de não serem capazes de aguentar a experiência” e de o facto de “se portarem mal durante o parto” poder fazer mal ao bebé. “Algumas mulheres acham mesmo que o parto é uma espécie de exame final em relação ao qual não sabem se estão preparadas e têm muito medo que possam portar-se mal, não correr bem e isso ter impacto na saúde do bebé.”
Ansiedade, depressão, insónias, tristeza e baixa auto-estima são alguns dos sintomas que estas mulheres apresentam.
“Nunca quis ter filhos sem ser de cesariana”
Para Irina Ribeiro da Cruz, produtora e jornalista, e para a dentista Sara Ferreira dos Santos, a solução para o medo do parto foi escolher uma cesariana. Segundo o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e de Medicina Materno-Fetal, são um caso pouco frequente. “Mais de 90% das mulheres querem ter um parto vaginal. Em 40 anos de carreira, só tive duas cesarianas a pedido.”
“Nunca quis ter filhos sem ser de cesariana, nunca foi uma opção”, explica Sara Ferreira dos Santos, de 36 anos, ao Observador. Tanto que a escolha da obstetra foi feita com base neste pressuposto. A “imprevisibilidade do parto normal” e as possíveis “consequências a nível urológico”, nomeadamente ficar incontinente, eram alguns dos seus receios. “Um parto normal, correndo tudo bem, é melhor para o bebé, mas ninguém sabe como vai correr.”
O “grande receio” de Irina Ribeiro da Cruz relativamente ao parto vaginal, muito associado a descrições de partos traumáticos feitas pelas amigas, e a ideia de que a mulher está “no limite das dores” e numa “linha muito ténue entre a vida e a morte”, levaram-na a não ponderar um parto por via vaginal. “Desde sempre que as mulheres dão à luz, mas custa-me perceber, se há alternativas, porque não ter um parto sem horas e horas de sofrimento?”
Uma ideia errada, na ótica do presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e de Medicina Materno-Fetal. “Estas mulheres querem fazer uma cesariana porque estão convencidas que não vão ter dores, mas isso é facilmente desmontável porque uma epidural está disponível em todo o lado”, afirma o obstetra Luís Graça, acrescentando que os médicos têm o dever de informar a mulher de que a cesariana “não é isenta de dores ou de um pós-operatório complicado”. “O parto por cesariana aumenta, na mulher, o risco de hemorragia, de infeção e deixa o útero com uma cicatriz, o que poderá condicionar futuros partos”, acrescenta.
O obstetra Pedro Martins, do Hospital dos Lusíadas, em Lisboa, também refere que a “falta de informação sobre o que é o parto” leva algumas mulheres a pedirem cesarianas. “Tento explicar que se o parto for fácil não faz sentido fazer uma cesariana, agora se têm mesmo pânico ou incontinência de fezes, por exemplo, não vou arriscar.”
E cabe aos médicos esse papel de esclarecer a paciente dos prós e contras de uma cesariana. “Não se podem tomar decisões sem conhecimento. O médico tem de informar até à exaustão. É importante durante os nove meses de gravidez informar e desmistificar tudo, se não falha-se enquanto obstetra”, defende.
De acordo com Irina, a sua médica sempre a deixou “à vontade para decidir” e acabou por aceder ao seu pedido. O parto foi marcado para as 38 semanas. Nessa altura, já tinha contrações regulares e as águas chegaram mesmo a rebentar quando estava “em cima da mesa de operações”. “Eu disse à médica: ‘Despache-se, por favor, porque eu não quero que ele saia de parto natural’ e ela seguiu para cesariana”, recorda a produtora. “Nunca me arrependi, tomei a melhor decisão da minha vida. A recuperação foi espetacular, tive as dores normais de uma cirurgia e perdi muito sangue no recobro, mas de resto correu tudo bem. Nasceu um bebé saudável e espetacular.”
“As pessoas têm ideia de que o bebé não sofre na cesariana, mas é um paradoxo”, reforça o obstetra Luís Graça. “Uma cesariana pode salvar a vida de muitos bebés, mas são as indicadas. A via ideal para se nascer é a via vaginal e confere ao recém-nascido mais defesas do que numa cesariana. Numa cesariana eletiva, o bebé tem quatro vezes maior probabilidade de ter dificuldade respiratória neonatal do que aqueles que nascem por parto normal.”
Nuno, o segundo filho de Irina, nasceu em 2014, dez anos depois de Jonas e também por cesariana. “Da segunda vez ainda me passou pela cabeça ir para um parto normal. Acho que era mais para experimentar.” Mas não houve hipótese porque o bebé estava atravessado. O que a fez mudar de ideias? “Em dez anos muita coisa mudou. Depois de sermos mães ganhamos muitos medos, mas começamos a ver a vida de outra maneira. A vida deu-me mais força e perdi medos que considerava de grande dimensão.”
Se tivesse de tomar uma decisão agora, Sara Ferreira dos Santos faria novamente uma cesariana, mas assume que é uma decisão que não está fechada. Até porque hesitou algumas semanas antes do parto do primeiro filho. “A minha mãe tentou convencer-me a fazer parto normal, mas assim que as águas rebentaram fui a correr para o hospital para fazer a cesariana.”
Cesariana como alternativa a um parto traumatizante?
A cesariana também surge como alternativa nas mulheres que tiveram partos vaginais traumatizantes e que, consequentemente, querem evitar a todo o custo voltar a passar pelo mesmo sofrimento. Carla Nogueira, que nunca tinha pensado fazer uma cesariana, não quis ter o segundo filho de outra maneira. “Queria ter um parto normal, ia um bocadinho iludida de que teria a epidural para me ajudar, mas não tive essa sorte”, conta a auxiliar de ação educativa de 40 anos. “Nunca me passou pela ideia fazer uma cesariana. Nunca tinha sofrido nenhum ‘corte’ no meu corpo e a anestesia fazia-me muita confusão, porque não queria ficar a dormir.”
Já na reta final desta gravidez planeada e que correu sem sobressaltos, Carla não apresentava quaisquer contrações. Na última consulta, a ginecologista decidiu fazer o toque vaginal. Foi o ponto de partida. “Quis morrer nesse dia. Tive muitas dores, foi horrível.”
Sem sinais de início de parto à vista, o parto do primeiro filho de Carla acabou por ser induzido às 41 semanas e dois dias. O procedimento teve início pelas nove da manhã, em setembro de 2006, mas as primeiras contrações só chegariam cerca de três horas depois. “Comecei com algumas contrações até que começaram a ser cada vez mais fortes, só que não fazia dilatação”, recorda.
Passou o dia e a noite quase sempre imóvel, uma vez que estava com as cintas do CTG — exame que permite avaliar o bem-estar do bebé — e que apitava ao mínimo movimento. Só se mexia para urinar. “Eu estava sempre a chamar e lá vinha a senhora, com um bocadinho de mau humor, colocar-me a aparadeira. Cheguei mesmo a dizer-lhe para me deixar a aparadeira que eu depois arranjava maneira de fazer aquilo sozinha.”
Cerca das 23h00, 14 horas depois de lhe ter sido provocado o parto — e praticamente sem dilatação –, Carla, já desesperada com dores, pediu ajuda a uma enfermeira que viu passar no corredor e que conhecia através de uma amiga para a ajudar. “Desatei num choro terrível, a dizer que não queria ficar ali e foi ela que me rebentou as águas”, explica a auxiliar. “Na altura, foi um alívio porque fiquei sem dores. Passado um pouco, voltaram as contrações e eu fui para o bloco de parto. Meteram-me na sala de partos, deixaram-me sozinha e a coisa começou a descambar.”
Já no bloco e sozinha com o marido, começou a entrar em pânico. “Pedi-lhe imenso para sair dali. Não sei se a minha sensibilidade era menor à dor do que a das outras pessoas, mas estava passada de dores. Às tantas, tinha à minha volta uma equipa de nove pessoas — eu descontrolei-me um bocadinho, berrei e as pessoas iam entrando.”
Não lhe chegou a ser administrada qualquer epidural. Os anestesistas do hospital não conseguiram ir à maternidade, uma vez que estavam ocupados com outros doentes resultantes de dois acidentes que tinham ocorrido naquele dia. Quando a anestesista finalmente chegou ao bloco já Carla estava na fase da expulsão. A episiotomia foi lhe feita a sangue frio. “Ainda hoje, quando o meu filho faz anos, sinto aquela tesoura a cortar-me”, recorda. “Como o António não descia, apareceu lá um médico que me carregou na barriga com os cotovelos. As dores foram terríveis e nessa altura, o grito saiu mais forte.”
Uma experiência traumatizante e que a deixou com medo de voltar a ter um parto por via vaginal. “Ganhei medo. Não posso dizer que fui maltratada, mas poderia ter tido outros cuidados que não tive. No hospital, somos só mais um. Médicos, enfermeiros, entra um e faz o toque, entra outro e faz novamente o toque, é muito invasivo. Quando as coisas não correm assim tão bem, podiam ter uma maior sensibilidade de explicar como funcionam as coisas.”
Para Mariana Torres, ginecologista da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto, os profissionais de saúde “não tratam mal de propósito”, mas falta quem preste atenção às mulheres. “As pessoas não estão a ouvir o que as mulheres precisam. Elas querem que lhes expliquem o que se está a passar e, se calhar, bastava isso para ser uma experiência positiva.”
“Há muita institucionalização dos cuidados. Tudo é gerido de acordo com guidelines e estas mulheres só querem ser ouvidas e entendidas nestas dores. Querem respostas empáticas e muitas vezes isso não acontece”, acrescenta a psicóloga Vera Ramos, acrescentando que a própria equipa médica também pode ter em mãos uma situação complicada. “Quando há um problema, é algo inesperado, tanto para a grávida, como para a equipa de saúde, que tem medo de perder o bebé e a mãe e têm de reagir. Acaba por ser mal vivido por todos.”
Os planos que Carla tinha desde sempre de voltar a engravidar dois anos depois do primeiro filho acabaram por ser adiados devido à experiência traumatizante que teve. “Sou filha única, sempre disse que gostaria de ter mais do que um filho e que esperaria dois anos até ter o próximo. Passaram cinco e foi logo tudo planeado para fazer cesariana. Não queria voltar de forma alguma a passar por aquilo”, explica.
Luís Graça considera que se o obstetra conseguir “dar segurança no decurso do parto” e assegurar que “a qualquer momento pode-se fazer uma cesariana”, as mulheres acabam por mudar de ideias. Algo que, contudo, não aconteceu com Carla Nogueira.
Apesar de ir já com a cabeça feita para fazer uma cesariana, Carla diz que o obstetra a informou dos riscos e explicou-lhe de que não teria necessariamente de voltar a passar pelo mesmo, na esperança que mudasse de ideias, mas nada a demoveu. João, agora com sete anos, nasceu por cesariana numa clínica. “Correu tudo muito bem, muito delicadamente e com muito amor e carinho por parte de quem fez o parto e de quem cuidou de mim.” Ainda assim, se tivesse mais um filho, a auxiliar de ação educativa não descartaria a possibilidade de voltar a ter um parto normal. “Dá-me imenso gosto ver como as coisas têm evoluído nesse sentido e como realmente as coisas estão a mudar para melhor.”
A psicóloga da MAC, Maria de Jesus Correia, afirma que a cesariana é muitas vezes encarada pelas mulheres como “uma forma fácil de resolver” o medo do parto vaginal. Contudo, a equipa que acompanha a grávida, tanto a nível psicológico como obstétrico, deve tentar perceber se se trata de uma situação patológica em que para a mulher é “impensável” passar por um trabalho de parto.
“A cesariana é uma decisão facilitadora, mas não pode aparecer como sendo o mais simples neste contexto de resolver um problema”, explica a especialista, sublinhando a “importância da relação de confiança com o médico que deverá explicar claramente os riscos/benefícios deste recurso à cesariana”.
“Nos medos normais, uma conversa esclarecedora sobre o risco/benefício da intervenção, uma boa vigilância pré-natal com uma equipa multidisciplinar, a frequência de cursos de preparação para o parto são muitas vezes suficientemente clarificadores e ajudam a que a mulher perceba os recursos que tem em si, a sua responsabilização também pelo trabalho de parto. Muitas vezes, resolvem esta questão do medo, põem a mulher disponível para o trabalho de parto normal e retiram esta ideia pré-concebida de que a cesariana é mais fácil.”
A ginecologista Mariana Torres destaca a importância de explicar as alternativas à cesariana. “É um assunto que tem de ser conversado com um médico para perceber exatamente quais são os medos e mostrar as alternativas, mas também é importante partilhar as coisas boas do parto em vez de apenas as ideias horríficas.”
Também a psicóloga Lígia Catão sublinha a importância “de se trazer ao de cima as histórias positivas” para quebrar “o ciclo do medo”. De acordo com a sexóloga, uma das formas de mudar esta ideia negativa associada aos partos é promovendo a educação para a sexualidade.
Parto em casa por medo de ambiente hospitalar?
Se o medo do parto levou estas mulheres a optarem por uma cesariana, outras há que escolhem o parto em casa como alternativa à possibilidade de se repetir uma experiência que foi traumatizante. Foi essa a opção de Mariana após um primeiro parto vaginal traumatizante. À semelhança de Nídia e Carla, sentiu-se desrespeitada com o tratamento hospitalar que recebeu. “Toda a experiência fez com que eu tivesse pânico de ir a um hospital”, explica ao Observador.
Uma situação que incluiu a “manipulação” da bebé sem anestesia e cujos gritos foram acompanhados com ordens do médico para estar quieta porque para a fazer “não tinha precisado de fazer aqueles gritos todos”; uma falta de explicação por parte dos profissionais de saúde que entravam no quarto e “cochichavam uns com os outros”; um reforço de uma epidural, que apenas levou por não conseguir aguentar as contrações do parto induzido, que a deixaram “sem sentir da cintura para baixo”.
No caso de Sofia Cunha, que também teve o segundo parto em casa, o médico que a recebeu no hospital, depois de a ter enviado para casa horas antes dizendo-lhe para “voltar quando estivesse mesmo em trabalho de parto”, forçou-a a assinar os “papéis para epidural”. “Ele disse-me: ‘não se ponha com coisas’ e como me senti um pouco pressionada, assinei.”
Também recebeu uma resposta “agressiva” de uma enfermeira quando a alertou para o facto de o efeito da anestesia ter passado. “‘Não pode ter dores’, dizia-me ela. ‘Mas achou que vinha para onde? Os partos doem, tem de aguentar. Está a gritar para quê? Não lhe adianta de nada’.” Todos os seguintes procedimentos foram feitos a Sofia a sangue frio: a episiotomia — realizada sem autorização da grávida — e a própria expulsão, que foi feita com o companheiro a pressionar-lhe a barriga após indicação da enfermeira.
No momento da expulsão, Mariana chegou a ter sete profissionais na sala de partos que descreve como “minúscula”. “Senti-me um objeto. Não sentia contrações, não sentia nada e eles debatiam entre eles o que fazer. Quando olhei para a frente, estavam a falar um com o outro enquanto um deles se apoiava na minha perna e ria-se.”
A filha de Mariana nasceu “sem respirar”, “roxa” e com “feridas no couro cabeludo” provocadas pela extração por ventosas e com as quais a criança “ainda hoje fica triste”. “Quando me perguntaram se lhe queria pegar disse que não. Só lhe peguei cerca de duas horas depois e porque fui obrigada. Nem sequer senti que pari um bebé, não consegui fazer a ligação de que aquilo que me mostravam era o que tinha tido na minha barriga.”
A psicóloga Vera Ramos considera que uma situação traumática no parto pode criar uma “dificuldade” na forma como se inicia a relação entre a mãe e o seu bebé. “Pode criar algum distanciamento, mas pode pode-se assistir ao contrário: o receio de perder o bebé pode gerar uma grande dependência e a vivência da separação ser difícil, porque reativa sentimentos de perda. Há ainda casos em que a relação com o filho é suficientemente recuperadora para que a mulher sinta que compensa de alguma forma tudo aquilo pelo que passou”, diz a especialista.
Já a psicóloga da MAC, Maria de Jesus Correia, refere que toda esta situação “pode ser um terreno favorável para uma depressão pós-parto”. “Há estudos que dizem que os partos difíceis relacionam-se com uma diminuição de confiança da mulher relativamente aos cuidados ao bebé. É uma diminuição da perceção das necessidades do bebé: a mulher está tão focada em si, no seu sofrimento e no episódio traumático que se retira da disponibilidade para o bebé. Por outro lado, com uma vivência de culpa, uma insegurança e uma dúvida sobre a sua competência materna, é óbvio que estas questões se prendem depois com a qualidade da relação que vai estabelecer com o seu bebé e a disponibilidade afetiva que tem para o seu bebé.”
Mariana desenvolveu precisamente uma depressão pós-parto, mas que não foi diagnosticada. “Todos me diziam que aquilo por que eu tinha passado era normal e que o que eu sentia era parvo e sem sentido, então decidi que tinha de seguir em frente.”
Sofia Cunha, terapeuta ocupacional de 30 anos, passou pelo mesmo. “As pessoas têm a ideia de que se o bebé está bem então está tudo bem, mas eu sentia-me desrespeitada. Não tinha sido tratada como um ser humano.”
A ginecologista Mariana Torres considera que ainda existe “aquela máxima de que o que interessa é a mãe e o bebé estarem saudáveis” e, ainda que isso seja “fundamental”, uma “experiência positiva do parto” passa também por “outros pormenores que não são difíceis de implementar”.
Para Mariana, a ideia de voltar a ser “tocada, a ser abusada daquela maneira” aterrorizava-a. “Ter homens a pôr as mãos na minha vagina sem sequer se apresentarem não é propriamente agradável. Eu fui vítima de abusos sexuais quando era adolescente, o que aumentou a escala de tudo o que se passou. Daí também o medo: a forma como fiquei a ver aqueles médicos não foi como médicos, mas como abusadores. Não é isso que eles são, mas foi isso que eu senti.”
Quando engravidou pela segunda vez, cerca de um ano depois, todo o medo voltou à superfície. “A gravidez não foi planeada e não estava com muita vontade de ter filhos na altura. Chorei baba e ranho, dizia que não podia, que não ia conseguir, que não queria. A gravidez em si e o facto de ter mais um filho não me assustou tanto, mas o parto deixou-me em pânico.”
De acordo com a psicóloga Maria de Jesus Correia, este medo do parto e uma “vivência de parto traumático afeta a gravidez”, já que “aumenta níveis de ansiedade” e “há um desequilíbrio psicológico que torna a vivência da gravidez dolorosa e difícil do ponto de vista psíquico”. “Isto tem impacto na forma como a gravidez decorre. Pode ser desequilibrador até da parte física do processo de gravidez, podendo conduzir mesmo a complicações obstétricas, como insónias, perda ou aumento de apetite marcados, uma agitação, etc.”
Ainda passou pela cabeça de Mariana interromper a gravidez, mas considerou que o medo do parto “não era uma desculpa válida o suficiente” para “impedir“ o filho “de viver”. Sofia só voltou a entrar num hospital na segunda gravidez para fazer um exame e as más memórias regressaram. “Eu só pensava: ‘eu não volto para cá’. Ainda experimentei visitar outro hospital, mas só o cheiro e o aparato hospitalar me deixavam ansiosa.”
Ambas optaram por ter um parto em casa. “Já tinha percebido que aquilo que aconteceu foi consequência das intervenções a que fui submetida, mas não me sentia emocionalmente pronta nem sentia confiança em mim própria para fazer valer as minhas escolhas”, explica Mariana.
Ainda assim, assume que não preparou bem o que se ia passar. “Fui um bocado irresponsável. O medo de ir para o hospital era tão grande que acabou por toldar o meu pensamento, portanto nem sequer pensava na questão de poder correr mal. Desde que não fosse tratada da maneira como fui tratada no hospital, estva tudo bem.”
Neste caso, voltou a não ter o parto com que tinha sonhado. A escolha do enfermeiro parteiro não foi a mais feliz, uma vez que o especialista não respeitou as suas escolhas. “Foram coisas mais subtis, mas não correu como eu queria. Pediu-me para fazer o toque vaginal quando já lhe tinha dito que não queria e não me deixou estar na posição que eu queria”, explica. “Mas fiz tudo sozinha, foi tudo feito de forma espontânea. Este sentimento de ‘eu consigo parir’ fez toda a diferença. ”
O seu terceiro parto também foi em casa, mas aí a preparação já foi outra: tinha uma doula — uma amiga que já tinha acompanhado o segundo parto, ainda que na altura não tivesse formação –; tinha duas parteiras para no caso de acontecer alguma coisa tanto consigo como com o bebé; tinhas as análises em dia; avisou o hospital de que iria ter um parto em casa — até tinha o contacto direto do bloco de partos e avisou os bombeiros do que se se iria passar. Só aqui é que Mariana, que entretanto fez um curso para ser doula, diz ter efetivamente ultrapassado o medo do parto. “Já não tinha medo de ir para o hospital, sabia que a minha doula estava comigo e que tinha o apoio do meu companheiro.”
Para o segundo parto, que ocorreu em 2016 — três anos depois do primeiro –, Sofia recorreu a uma doula e a uma parteira para o parto, que teve lugar numa ‘piscina’ insuflável. “Desde o início tive dificuldade em conectar-me com a barriga e ficava ansiosa só de pensar no parto. Percebi que precisava de apoio externo.” A terapeuta ocupacional diz que não teve receio de que algo corresse mal: “Talvez porque o parto no hospital, que deveria ter corrido tão bem, correu tão mal.”
A confiança que tinha na parteira e na sua experiência também a tranquilizaram. “Estive com ela antes várias vezes em consulta, ela esteve sempre à disposição para qualquer dúvida que tivessemos e explicou que houve partos que encaminhou para o hospial porque não queria correr nenhum risco”, explica Sofia, acrescentando que nunca colocou a hipótese de isso poder vir a acontecer consigo.
A gravidez decorreu com tranquilidade. O parto foi demorado — entre a dilatação completa e expulsão foram duas horas porque “a membrana não rebentou” espontaneamente e teve de ser feito artificialmente. “O parto foi muito vigiado, a parteira foi sempre vendo o doppler para ver se o bebé estava em sofrimento. Como foi muito monotorizado, senti-me bastante tranquila.”
Durante todo o processo sentiu-se muito apoiada tanto emocionalmente como fisicamente. “Tive muito suporte emocional e até físico com massagens e comida. As pessoas ouviram-me, houve tempo para caminhar, para sentir a minha filha mais velha a dar-me a mão. Foi completamente diferente.”
Para o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e de Medicina Materno-Fetal, ter um parto em casa é um “retrocesso completo“, em particular numa gravidez subsequente a um parto traumático. “Hoje em dia, não tem o mais pequeno sentido defender-se o parto em casa ou em quaisquer outros locais que não estejam apetrechados para salvaguardar a vida e a saúde das mães e dos bebés.”
“É evidente que o parto no domicílio pode correr muito bem, há 70 ou 80 anos as pessoas nasciam quase todas em casa”, refere ainda Luís Graça, mas acrescenta que “o risco de haver um problema no decurso do parto”, tanto com a mãe como com o recém-nascido, que não pode ser resolvido em casa com a mesma facilidade com que seria no hospital, “é muito grande”.
O obstetra apresenta ainda números: na Holanda, o “paradigma” da experiência do parto domiciliário, a taxa destes partos era de 80% no final dos anos 70. Atualmente, baixou para menos de 30%. “O Serviço Nacional de Saúde holandês agora obriga a que esteja sempre disponível uma ambulância e ela é utilizada em 15% dos partos, ou seja, apenas 15% é que são efetivamente partos em casa”, afirma Luis Graça. E adianta que “a morbilidade neonatal em Portugal é duas vezes e meia menor do que na Holanda.”
Quanto aos partos traumáticos destas mulheres, Luís Graça sublinha que se tratou de um “azar”, “de uma ocorrência que não se irá repetir”. “Todos temos más experiências na vida que não tem a ver com o facto de os hospitais precisarem de mudar. Podemos sempre mudar, mas não nos esqueçamos que os hospitais estão sub-lotados de funcionários, há uma sobrecarga de trabalho, o serviço de urgência é de 24 horas porque não é possível cumprir a lei das 12 horas de dia. Não podemos pensar que se pusermos o médico ou a enfermeira a dar a mão à grávida isso vai mudar alguma coisa.” Para isso, acrescenta, é que as mães passaram a ter alguém a acompanhá-las, nomeadamente o companheiro: para dar esse “apoio moral” que a equipa médica não tem disponibilidade para dar.
“Os médicos devem olhar para a grávida em vez de olhar para o computador”
Para os especialistas, cabe aos profissionais da saúde desconstruir estes medos ligados ao parto. “É normal a mulher ter fantasias e medos. Agora, é preciso escutá-los e ajudá-la a elaborar isto tudo durante os nove meses de gravidez”, afirma a psicóloga Vera Ramos, referindo-se especificamente ao desejo das mulheres em fazer uma cesariana.
“Se nós médicos estivermos a olhar para a grávida em vez do computador para desmistificar estas patetices, tiramos o medo às pessoas”, diz Luís Graça. “Infelizmente, por vezes, são médicos e enfermeiros que metem na cabeça das mulheres riscos que são extremamente raros. Isto acontece principalmente nestas ‘pseudo-preparações’ para o parto, em que são transmitidas uma data de tolices”, acrescenta.
Já a especialista da MAC destaca as componentes “de ordem física e psicológica” dos cursos de preparação para o parto para a mulher saber “como é o trabalho de parto”, “como lidar com o corpo” e “aumentar a consciência” em relação ao mesmo. “O ioga, a natação, as técnicas de relaxamento, tudo aquilo que seja facilitador de um melhor controlo do seu próprio corpo, do melhor controlo de si própria é facilitador destas ansiedades.”
E o papel fundamental do companheiro. “É fundamental que o companheiro compreenda e colabore em todo este processo de tranquilização e securização da mulher que está grávida.”
Acima de tudo, Maria de Jesus Correia sublinha a importância de as mulheres terem um “bom acompanhamento pré-natal” por parte de uma equipa multidisciplinar. “É fundamental uma relação de confiança com os profissionais que se escolhem para seguir a gravidez e colocar-lhes todas as questões de forma a sentir-se securizado, compreendido e entendido por esses profissionais.”
Alguns casos poderão requerer uma intervenção a nível psicológico, seja na sequência de um parto traumatizante, seja durante a gravidez. “Não nos podemos esquecer de que a própria vivência de uma gravidez é fragilizadora do ponto de vista psíquico, portanto, tudo aquilo que existe de inseguranças e fragilidades prévias ficam exacerbadas pelo próprio estado de gravidez.”