A tradição portuguesa dita que a duração das revistas literárias e culturais contrasta em grande força com o seu impacto. Conspirações de dias e noites de grandes discussões culminam em obras-primas que nunca chegam ao prelo, revistas-relâmpago persistem durante anos nos currículos dos seus autores e mesmo as grandes sensações literárias têm vida curta.
Ainda assim, o fascínio pela revista não cessa. Todas as grandes conspirações intelectuais culminam no planeamento de uma revista, verdadeiro agregador dos entusiasmos políticos e artísticos, vista como o veículo mais prático para alcançar a glória ou abalar um país. E se esta esperança depositada nas revistas pode parecer absurda num país que pouco lê, a verdade é que radica numa experiência bastante frutífera.
O princípio do século XX trouxe-nos um verdadeiro arsenal de revistas políticas, culturais, artísticas, que ainda hoje faz as delícias de eruditos e colecionadores. Não é preciso ir aos casos mais óbvios, da Orpheu e da Presença ao Panorama; a quantidade de revistas de qualidade trazidas por grupos de expressão marginal é quase inacreditável. Do Instituto, onde Leite de Vasconcelos pontificava junto à mais expedita equipa de arqueólogos e etnólogos que o país já viu, à Museu, com José de Figueiredo à cabeça, quase todos os campos da atividade cultural foram cobertos por revistas que conseguiram concentrar eruditos, estudiosos e curiosos com obras que ainda hoje resistem ao tempo.
Ora, o que é interessante nesta produção é que ela foi também aproveitada – e de uma forma pouco comum – politicamente. Nunca, como no princípio do século XX, o salto das curiosidades do espírito para as implicações políticas foi tão praticado. A verdade é que uma série de domínios que davam os primeiros passos e despertavam a curiosidade dos intelectos mais atentos permitiam entrar com novas armas num campo entupido pela balbúrdia. Enquanto a política propriamente dita baqueava perante o escalar de incompatibilidades que impediam governos de se manterem no poder, a atividade intelectual encontrava um campo aberto para uma batalha de retaguarda. Num mundo político enxundiado por orçamentos e questiúnculas técnicas, o combate cultural, num tempo que assistia ao nascimento da história da literatura e da etnografia modernas, que via a psicologia propagar os seus experimentos, que começava a perceber o alcance da sociologia de Durkheim, de Comte ou de Le Play, era de facto mais interessante.
O que é curioso, porém, é que essa batalha cultural remava de facto ao contrário da política propriamente dita. Se o princípio do século XX assistiu à consagração dos republicanos, não só como “donos da razão”, como governantes de facto, também viu o campo oposto ganhar uma prevalência cultural imprevista.
É o próprio António Sérgio, para defender que o grande contributo para a erudição portuguesa é feito por uma estrangeira, Carolina Michaelis, que admite que a recente “erudição” ganha foros cada vez mais nacionalistas. E isto deve-se, em parte, àquela que foi uma das primeiras aversões dos seareiros – o Integralismo Lusitano.
O Integralismo tornou-se um movimento curioso porque as suas figuras cimeiras não são, a bem da verdade, grandes eruditos. Raúl Proença divertiu-se a elencar erros crassos cometidos por alguns dos maiores integralistas e estes, de facto, não são o maior exemplo de rigor nem de minúcia. Aquilo que o Integralismo conseguiu, porém, foi dar a sensação de que aquilo que os grandes eruditos portugueses estudavam – de Leite de Vasconcelos a Paulo Merêa, da História do Direito à História da Arte – culminava naquilo que o Integralismo defendia.
A grande arte do Integralismo (e, sobretudo, de António Sardinha) não consiste na grande originalidade ou consequência doutrinária, nem sequer num conhecimento profundíssimo da História. O que o torna importante e influente de um modo que ainda não está suficientemente estudado é a sua capacidade para pegar nos temas, nas ciências e nas descobertas e torná-los próximos do nacionalismo integral. Fê-lo ao tornar Teófilo Braga “mestre da contra-revolução”, ao aproveitar o espiritualismo de Leonardo Coimbra, ao interpretar a História de Portugal numa progressiva reinterpretação da independência Portuguesa e na apropriação, já feita por Maurras, do positivismo Comteano. Sardinha conseguiu agregar tanto o romantismo em que via uma recuperação literária do sentido medieval da descentralização, como o mais oposto clacissismo, representante da razão romana herdada pelos povos latinos.
Esta capacidade de agregar tanto a história como os métodos novos das ciências sociais tornou as revistas integralistas sempre interessantes. Não são precisos grandes ensaios doutrinários para tornar A Nação uma grande revista – a junção de artigos eruditos, mesmo que pouco doutrinários, está de tal modo enquadrada que a própria cultura parece inclinar-se para o Integralismo. Estudar a cultura portuguesa é quase uma profissão de fé nacionalista, dada a força com que Sardinha, Pequito ou Hipólito conseguiram interpretá-la.
Ora, é neste cenário que a Seara Nova nasce, e é só neste contexto que pode ser percebida a sua importância. A força do Integralismo era tal que a própria revista Águia, órgão primeiro da Renascença e de onde migraram alguns dos mais importantes seareiros, era mais facilmente, e à revelia dos seus autores, vista como um órgão de tendência nacionalista pervertida do que como uma revista democratizante. O esforço da Seara Nova é, assim, o de reinterpretação da cultura portuguesa de um modo que fuja ao do Integralismo e, posteriormente, ao do Estado Novo, seu herdeiro intelectual (pelo menos na forma como interpretou a História). Esta tarefa é tanto mais difícil quanto uma das principais bandeiras de António Sérgio, um dos principais seareiros: é a luta pela compreensão da razão como universal, contra as especificidades nacionais e as tradições folclóricas.
É, assim, interessante que o grande projeto da Seara Nova se forme em torno da cultura portuguesa, ao mesmo tempo que procura negar a sua especificidade. Os grandes expoentes da Seara Nova, Jaime Cortesão, António Sérgio e Raúl Proença, farão assim da revista uma engenhosa forma de interpretar a cultura portuguesa, não pelo seu carácter específico, mas como manifestação de tendências progressivas universais, que encontrarão por vezes resistências, por outras terrenos mais férteis. A luta pelo racionalismo será um dos temas clássicos de Sérgio, como o carácter democraticizante dos descobrimentos fará parte das teses mais conhecidas de Cortesão.
No fundo, aquilo que o Integralismo fará para um lado, a Seara procurará fazer para o outro. Sérgio ataca o lirismo da poesia portuguesa, dos mais românticos poetas a Junqueiro, reclama com o atraso no ensino provocado pelos ensino clerical, fará uma topografia constante das forças progressivas e democráticas contra as forças impeditivas do progresso, com a particularidade de ser um idealista clássico, crente na razão e nas “ideias”, o que lhe dará uma abrangência e uma originalidade que os críticos marxistas dos anos seguintes não terão. A interpretação da história ou da literatura feitas por Sérgio, embora menos capazes, não serão tão dicotómicas como as de Borges Coelho ou de Óscar Lopes, e isso dá-lhes um interesse que, embora hoje em muitos aspetos nos pareça datado, no seu pedagogismo ingénuo e na crença algo vaga nas reformas das mentalidades, é bastante invulgar nos ensaístas portugueses.
É claro que a Seara Nova também ganhou importância pelo envolvimento direto de alguns dos seus membros principais na contestação ao Estado Novo; talvez, se a militância política não fosse tão clara, a revista fosse menos conhecida; no entanto, a Seara tem de facto outra vantagem em relação às revistas do seu tempo, e particularmente em relação às revistas Integralistas. É que se os Integralistas conseguiram combinar a erudição com a capacidade de interpretar a História e as ciências a seu favor, a verdade é que nunca chegaram a agregar propriamente num conjunto de autores o conhecimento profundo com a análise (à exceção talvez seja Alfredo Pimenta, cujo feitio e tendência para se perder em polémicas espúrias também não contribuiu para a consistência da sua obra).
Na Seara, porém, a combinação é completa. Embora Sérgio não se considerasse um erudito, consegue ter uma consistência histórica e literária que Sardinha não tinha. Mesmo Jaime Cortesão combinou o seu conhecimento historiográfico com a veia literária que o tornam fácil de ler, sem nunca perder uma visão de conjunto nem se desleixar no pormenor.
A colaboração na Seara foi diversa e desigual, de Aquilino a Câmara dos Reis, e de Hernâni Cidade a Rodrigues Lapa. Foi, como todas as revistas, uma publicação desigual e a sua colaboração artística, embora de nomeada, não deixou grande marca. Ainda assim, o esforço dos seus principais colaboradores em repassar toda a cultura portuguesa é dos mais influentes que o século XX português produziu.