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Vera Lynn recorda-se bem de onde estava quando ouviu o anúncio de que a Alemanha Nazi se tinha rendido: estava na casa onde vivia com os pais e a avó, em Barking, na zona leste de Londres, quando souberam da notícia. “Estávamos no jardim a ouvir a telefonia sem fios quando foi anunciado”, recordou recentemente ao Daily Mirror. “Ficámos sentados ao sol a pensar ‘Que notícia maravilhosa!’. Estávamos em êxtase. Não creio, porém, que tenha havido lágrimas, porque isso fazia-se em privado. As pessoas não demonstravam as suas emoções.”
É curioso como uma cantora tão célebre como Vera Lynn era no Reino Unido, à altura, se tenha limitado a apanhar sol e a fazer um brinde de xerez com os vizinhos, mais tarde. Chamavam-lhe “Forces’ Sweetheart”, algo que poderia ser traduzido como “A Namoradinha das Tropas”, pelo seu papel no encorajamento dos soldados que serviam na II Guerra Mundial.
Mas eis que, ao saber que essa Guerra terrível chegara ao fim, não houve nem uma lágrima por parte da mulher que chegou a ser acusada de cantar “porcarias sentimentais”. Vera Lynn era conhecida por todos do lado de lá do Canal da Mancha — foi pela sua voz que se tornou conhecido o êxito We’ll Meet Again, que se tornou a banda sonora oficiosa da II Guerra entre os britânicos. “Vamos encontrar-nos outra vez / Não sei onde / Não sei quando / Mas sei que vamos encontrar-nos outra vez num dia de sol”, cantava docemente Vera, uma e outra vez, tantas vezes quanto a BBC quisesse, tantas vezes quanto as tropas pedissem.
E o sucesso de uma canção tão simples e de mensagem inspiradora pode dever-se, precisamente, à aparente frieza que a fez conter lágrimas naquele Dia da Vitória, a 8 de maio de 1945. “Os ingleses típicos, em geral, têm dificuldade em demonstrar os seus sentimentos, até àqueles que lhes são mais próximos. A We’ll Meet Again pelo menos servia um pouco para fazer isso por eles”, arriscou como explicação em 1975, no seu livro de memórias Vocal Refrain (sem edição em português).
Eis que, 80 anos depois, a canção de Vera Lynn é recordada e ganha simbolismo a dobrar. Primeiro, com a menção feita pela Rainha Isabel II no seu discurso a propósito da situação da pandemia de Covid-19, com a monarca a garantir “Vamos encontrar-nos outra vez” — o que fez, de imediato, com que houvesse um aumento de 200% na procura da canção no Spotify.
“Foi maravilhoso”, declarou a própria Vera Lynn ao Daily Telegraph sobre a menção da Rainha à sua canção. Não sabia que Sua Majestade ia terminar com as palavras ‘Vamos encontrar-nos outra vez’, mas creio que elas falam da esperança que todos devemos ter durante estes tempos preocupantes.”
Agora, a propósito das celebrações dos 75 anos do Dia da Vitória, foi a própria Casa Real a sugerir aos britânicos que cantem We’ll Meet Again à porta, à janela, na varanda ou no jardim, depois do Discurso da Rainha, feito às 21h — exatamente a mesma hora a que o seu pai, Jorge VI, discursou a propósito da rendição da Alemanha. A velha canção tocada uma e outra vez na década de 40 como hino da II Grande Guerra ganha agora outro significado: a de melodia de resistência ao vírus que nos mantém separados.
Vera Lynn, a crooner de “voz pesarosa”, capaz de gravar à primeira
Composta pelos britânicos Ross Parker e Hughie Charles em 1939, We’ll Meet Again não foi inicialmente escrita como sendo uma música para um período de guerra, mas rapidamente ganhou esse cunho ao ser gravada pela voz de Vera Lynn e assumir um tom de despedida, para muitos interpretado como sendo a de um soldado que parte para a frente de batalha e a sua apaixonada.
Por isso, perguntar de onde vem a canção é também perguntar de onde vem Vera Lynn. Nascida Vera Welch, acabaria por adotar o apelido de solteira da mãe, Lynn, por razões artísticas. As raízes na música sempre foram profundas, com Vera a atuar em bares e clubes da zona leste de Londres desde os sete anos. Aos 14 anos, foi trabalhar para uma fábrica, cosendo botões — e rapidamente decidiu que esse não era o seu destino, regressando à música. Aos 18 anos, cantou pela primeira vez na rádio. Aos 20 já era vocalista da banda Ambrose Octet. Aos 22, é-lhe dada a oportunidade de gravar We’ll Meet Again e Vera agarra-a com ambas as mãos.
Numa altura em que as gravações eram feitas ao vivo, num só take, a importância de não desafinar em nenhum momento era crucial. A cantora orgulha-se ainda hoje, aos 103 anos, de ter sido sempre capaz de gravar à primeira, como contou ao Telegraph: “Se o trompetista desafinasse na última nota, tínhamos de gravar tudo outra vez. Por isso, tínhamos de garantir que o nosso take era perfeito”.
O sucesso de We’ll Meet Again não estava em grande arrojos na voz ou agudos impecáveis. Para a jornalista de música Liz Thomson, isto era o que tornava Vera Lynn um sucesso: “Ela era ela própria e soava sincera, e isso dizia algo aos ‘rapazes’ (como ela lhes chamava) e às raparigas deles cá na Grã-Bretanha. A voz ligeiramente pesarosa dela era relativamente grave, o que lhe dava um certo calor, e tinha um toque de vibrato. O seu tom e a entoação estavam sempre corretos, a sua dicção era clara como água”. Vera Lynn era, no essencial, “uma crooner”, diz Liz Thomson, comparando-a aos cantores românticos masculinos, como Sinatra ou Dean Martin.
Vera Lynn não cantava We’ll Meet Again em tom desesperado ou lancinante. Ela embalava quem a ouvia, dando um conforto e uma esperança aos soldados na linha da frente, às noivas que trabalhavam nas fábricas, às mulheres e homens nas filas para o racionamento.
Ao sucesso da canção seguiu-se um programa de rádio na BBC, Sincerely Yours (Verdadeiramente Vossa), que passava aos domingos à noite. Estávamos em 1941 e em pleno Blitz que abalava o Reino. Mas o programa, em direto, nunca párava, mesmo que estivessem a acontecer bombardeamentos, como relatou a própria Vera Lynn ao Telegraph.
Para Lynn, de acordo com a académica Kate McLoughlin, o programa foi a oportunidade para tentar “chegar às pessoas”. “Como eu, muitas mulheres descobriram novas possibilidades e uma renovada confiança no seu papel na Guerra”, afirmou a cantora. O Sincerely Yours funcionava como uma espécie de transmissor de recados, com pessoas a telefonarem para conversar com Vera e deixarem mensagens aos seus soldados. Mas cedo surgiram queixas sobre o programa, inclusivamente de deputados, que criticavam músicas que não passariam de “porcarias”, cantadas por “crooners sem espinha”, e exigiam que a BBC se dedicasse a passar canções “mais viris” que encorajassem os soldados no esforço de guerra.
O programa seria cancelado, mas a carreira de Vera Lynn continuou, protagonizando um filme musical chamado precisamente We’ll Meet Again em 1943. No ano seguinte, Sincerely Yours regressava à BBC, por pedido expresso do público.
Guerra nuclear, Pink Floyd e Johnny Cash. As múltiplas vidas de We’ll Meet Again
A carreira de Vera Lynn seguiria com sucesso no pós-guerra, inclusivamente nos Estados Unidos, mas a sua imagem ficaria para sempre associada ao seu maior sucesso. We’ll Meet Again tornou-se tão emblemática no Reino Unido que não faltaram várias referências à canção, em múltiplas situações.
Durante a Guerra Fria, a BBC decidiu que, em caso de desastre nuclear, esta seria uma das canções que tocaria para acalmar os sobreviventes. Em 1979, os Pink Floyd decidiram perguntar se alguém se lembrava de Vera Lynn em pleno álbum The Wall e perguntar “Vera, o que te aconteceu?” entre as faixas Nobody Home e Bring the Boys Back Home.
Mais recentemente, em 2002, We’ll Meet Again fariam uma aparição no álbum American IV: The Man Comes Around, de Johnny Cash — álbum esse que ficaria mais conhecido por um outro cover (a famosa Hurt, dos Nine Inch Nails) e por ter sido o último álbum lançado pela estrela do country ainda em vida. E eis que, em 2009, quando Vera Lynn já tinha 91 anos, decidiu processar o partido de extrema-direita britânico BNP por terem usado a We’ll Meet Again sem a sua autorização. “Um dia depois da paz ter sido declarada, telefonaram-me e levaram-me à Alemanha”, contou ao Telegraph para explicar essa decisão, acrescentando que, como Forces’ Sweetheart que era, foi levada para cantar para as tropas que libertaram campos de concentração. “Mostraram-me os fornos. Vi as câmaras de gás.”
Setenta e cinco anos depois dessa experiência, e 81 depois de cantar We’ll Meet Again pela primeira vez, as ruas do Reino Unido voltam a encher-se de britânicos prontos a cantar a canção que é, no fundo, a expressão de um desejo. Realizável ou não, fácil ou difícil de cumprir, continua a ser um conforto ouvir dizer que o reencontro será possível e que, na vida, tudo passa. Vera Lynn, atualmente confinada em casa com a companhia da filha e do genro, pode assistir à ressurreição da canção da sua vida. “As pessoas usaram-me, de certa forma, para alcançarem algo e eu fico feliz por isso”, revelou numa entrevista. “Estava apenas a fazer o meu trabalho”, concluiu. Em 2020, voltámos a encontrar-nos, Vera.