A garantia já foi dada por Fernando Medina. A isenção de IVA num cabaz de 46 produtos vai ser estendida até, pelo menos, ao final do ano. E está em aberto a hipótese de se manter em vigor ainda em 2024. Nos primeiros seis meses de vigência, entre abril e outubro, o custo estimado da medida para os cofres do Estado é de 410 milhões de euros. Que sobe para 590 milhões se contabilizados os apoios à produção incluídos no pacto setorial que tornou possível o IVA zero. Entre abril e julho, o preço médio dos produtos incluídos no cabaz desceu 10%, de acordo com o Governo. Mas quanto deste impacto se deve, verdadeiramente, ao IVA zero? “Ninguém sabe”.
A dúvida, que vem com crítica, é apontada por economistas ouvidos pelo Observador, que duvidam da prorrogação da medida sem estudos sobre o seu real peso na descida dos preços. É que no bolo de 10% existem várias camadas que explicam a evolução dos preços, referem os especialistas, nomeadamente os fatores de produção, cujos valores, em alguns casos, também têm estado em trajetória descendente desde há alguns meses. É o caso da energia, dos fertilizantes ou dos combustíveis, apontam responsáveis do setor agroalimentar. Pelo que não é só o IVA que explica a quebra nos preços.
“Não há uma linha reta, não há uma razão única, há várias razões” para a descida do valor do cabaz, sublinha Manuel Tarré, membro da direção da CIP e presidente da Ancipa (Associação Nacional de Comerciantes Industriais de Produtos Alimentares) e da ALIF (Associação da Indústria Alimentar pelo Frio). “Não dá para quantificar o impacto do IVA zero”. Além de que, apesar da descida global dos preços, houve produtos cujo valor até aumentou. “Mas politicamente é um gesto simpático”, considera. O Observador questionou o Ministério das Finanças sobre o impacto da medida em cada um dos 46 produtos abrangidos mas não obteve resposta.
Para Ricardo Ferraz, investigador do ISEG e professor da Universidade Lusófona, a conclusão está à vista: “O impacto da medida em termos orçamentais é muito grande para o reflexo que tem” nos preços. “Se esses produtos deixaram de ser taxados de um dia para o outro, claro que há uma redução dos preços”, começa por apontar, ao Observador, o professor e economista. Mas nos meses seguintes, “o abrandamento dos preços já tem incorporado o IVA zero, e tem que ver com outros fatores”, defende, recorrendo ao cabaz compilado pela Deco para explicar porque duvida do impacto da isenção de IVA.
“Entre março de 2022 e a primeira quinzena de março de 2023 os preços aumentaram. O cabaz custava 180 euros e passou para 234 euros a 15 de março de 2023. Mas a partir da segunda quinzena de março deste ano, o preço começou a reduzir. Na semana passada custava 215 euros. Uma primeira conclusão que podemos tirar é que a descida dos preços já estava em curso antes da entrada em vigor do IVA zero. Essa redução continua nos meses seguintes de maio a julho. [O IVA zero entrou em vigor em abril]. E nestes meses não houve alterações no IVA. Essa descida dos preços já não tem que ver com o IVA”. Ou seja, sublinha, os preços teriam descido na mesma sem o IVA zero.
A Deco também tem monitorizado o cabaz sujeito a 0% de IVA e concluiu que entre 17 de abril e 19 de julho “todas as categorias de produto monitorizadas viram os seus preços descer”, com destaque para as mercearias (-9,66%), seguidas pelo peixe (8,28%), a carne e os laticínios (6,62%) e as frutas e legumes (2,47%). No entanto, oito dos 41 alimentos monitorizados estão mais caros face ao período em que eram taxados a 6%. Os produtos com aumentos mais significativos foram os brócolos e a maçã gala.
Pedro Brinca, professor da Nova SBE, nunca foi fã da medida, que classifica de “má, se resultar”, e “horrível, se não resultar”. Na visão do economista, a medida é má “porque foi concebida para combater a inflação, que é o desequilíbrio entre oferta e procura”, como acontece atualmente. E o que o Governo fez com o IVA zero “estimula a procura, porque tornou os produtos mais baratos”. E apesar do intuito de ajudar as famílias, acaba por ser “cega”, diz, porque abrange de igual forma os mais carenciados e os que não precisam.
Mas há outro fator de preocupação para o economista. Afinal, quanta desta descida de 10% é atribuível à descida do IVA? “Esse estudo não foi feito em Portugal. A única resposta que alguém pode dar é: não sei. Ninguém sabe”. Nem o INE, ressalva, consegue dar essa resposta.
No destaque de maio sobre o índice de preços ao consumidor, o INE inclui uma caixa na qual explica o impacto do IVA zero, e que calcula o impacto sobre a variação do IPC total de maio em cerca de 0,8 pontos. Mas deixa a nota: “dada a natureza mecânica desta simulação, que pressupõe que a isenção de IVA se reflete integralmente no preço final de cada produto abrangido, os resultados não traduzem o efeito efetivo da isenção de IVA nos preços do consumidor. As respostas dos mercados são condicionadas por vários fatores, nomeadamente, os graus de regulação e de competição, ou as elasticidades da procura e da oferta relativamente ao preço. Desta forma, a estimativa efetuada constitui apenas uma referência para avaliar o impacto desta alteração”. Para Pedro Brinca, aqui reside o problema.
“O INE não sabe o impacto na descida da inflação. Assume que a descida do IVA levou à descida dos preços de igual montante. Isto não é uma avaliação do impacto da medida. Nunca ninguém isolou o efeito dos outros contributos”, ressalva. Para o economista, “é preciso um trabalho de adequado tratamento estatístico dos dados para se concluir que o IVA zero teve impacto nos preços e esse trabalho ainda não foi feito, por isso não se pode dizer que a medida teve efeito”. Esse tratamento, defende, “deveria ter sido feito antes de se decidir gastar mais centenas de milhões de euros” na medida.
Quando apresentou a medida, o Governo estimava que tivesse um impacto de 0,2 pontos na descida da inflação. “Isso poderá ser difícil comprovar porque há outros fatores a atuar no mesmo sentido que podem provocar a perceção de que o IVA zero poderá ter tido um maior impacto do que realmente teve”, adianta Ricardo Ferraz. “Não conseguimos dissociar o que se deveu ao IVA e o que se deveu a outros fatores. Pode ter havido uma descida maior em abril do que nos outros meses, mas nos meses seguintes ela continua, com a medida já tomada”.
Vendas não aumentaram com IVA 0%. “Não há ninguém a açambarcar”
O impacto na receita do Estado de 410 milhões de euros é uma estimativa de abril. O Observador questionou o Ministério das Finanças sobre o peso da medida até ao momento, e qual o custo esperado de prolongá-la até ao fim do ano, sem resposta. Para quem assinou o pacto — distribuição e produção — o IVA zero não é, nem nunca foi, a tábua de salvação para a subida dos preços. Mas ajudou. E poderá continuar a fazê-lo.
“É uma medida puramente fiscal que tem um efeito imediato de redução de 6% no preço dos produtos. Os associados da APED comprometeram-se a cumprir o que está no diploma e no dia estipulado tiraram o IVA do cabaz de produtos e essa foi a nossa contribuição imediata”, destaca Gonçalo Lobo Xavier, diretor-geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição.
Veja a lista de 46 produtos do cabaz alimentar que passam a ter IVA zero a partir desta terça-feira
Para o responsável, “o IVA zero veio dar uma ajuda e uma folga às famílias”. E quanto aos 10% que o cabaz já desceu “representam o que sempre dissemos: que não eram os retalhistas que estavam a aumentar os preços ou as margens”. Os preços, aponta, aumentaram em 2022 e no início de 2023 “por razões objetivas que tinham que ver com o preço da energia, dos transportes e das matérias-primas”. Agora, “o preço da energia finalmente desceu, o custo dos produtos petrolíferos e dos transportes também, e isso tem logo um impacto direto na cadeia de valor”.
Além disso, “houve uma relativa estabilização em algumas matérias-primas essenciais que estavam a impactar o cabaz”. como a alimentação dos animais. “O que dissemos em março para explicar os aumentos mantém-se válido para explicar as descidas. Estes custos dos fatores de produção desceram e as matérias-primas também”, admite. “Mas continuamos muito pressionados em áreas essenciais, como os cereais. O facto de não ter havido acordo na Ucrânia vai ter impacto nos cereais e em toda a fileira”.
Também há uma pressão grande na logística, diz Manuel Tarré. “O transporte continua muito caro, o transporte de contentores é um oligopólio de empresas que nunca tiveram tanto lucro na vida como têm hoje. Vão ganhar nestes dois ou três anos, de Covid-19 e guerra, mais do que ganharam nos últimos 10 ou 15. O custo do transporte em contentores em alguns casos aumentou 200%”, revela.
Ainda assim, olham para a manutenção das etiquetas “0%” nas prateleiras com bons olhos. “Não dá para expurgar o impacto” dos fatores numa folha de Excel, ressalva Lobo Xavier. “Mas é um contributo muito relevante”. A medida, acredita, está a resultar, “é benéfica como sempre dissemos e como foi benéfica para o mercado espanhol quando foi tomada, ao contrário dos que alguns comentadores diziam. Estas coisas têm de ser avaliadas com uma série suficientemente grande para terem impacto, não se pode pensar que ao fim de duas semanas a medida ia ter resultados”.
É verdade que as famílias carenciadas beneficiam o mesmo que uma família da classe média, “mas o peso relativo da descida numa família carenciada é mais valorizado do que pela classe media. Parece-nos bem continuar com a medida e cá estaremos para assumir”. Até porque para o resultado da operação é igual, “as vendas não aumentaram, não há ninguém a açambarcar produtos por estarem com IVA zero, o que há é uma gestão de orçamento mais eficaz”.
“É uma ajuda, não vem para ficar, não me parece que o Governo vá deixar a taxa zero nos produtos referenciados, voltarão a 6%, mas é uma ajuda. Quando a oferta for maior que a procura, o preço vai baixar”, nota Manuel Tarré.
Preços vão baixar mais? “Difícil de calcular”
Em alguns produtos, a redução pode começar a notar-se “no final de agosto ou início de setembro”, acredita Gonçalo Lobo Xavier. Será nessa altura que os produtores já terão usado as verbas acordadas no pacto, 180 milhões de euros, e que só lhes chegaram em meados de julho, para financiar as suas produções e colheitas. Mas esse efeito também pode não chegar.
“Essas coisas são difíceis de calcular. Agosto é o mês com mais turistas em Portugal, há seca, vem a JMJ, são tudo pressões sobre a compra de produtos. No verão normalmente os preços sobem porque há menos disponibilidade de produtos. É difícil de calcular”, refere Luís Mira, secretário geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), que assinou o pacto do IVA zero. E dá exemplos. “Tivemos a peste suína que levou ao aumento dos preços, ninguém consegue controlar isso. Não foi pelo apoio que eles mudaram o preço. O valor da maioria dos produtos do cabaz desceu mas alguns subiram, como os ovos e a carne de porco”.
No caso dos ovos, a gripe das aves e a “enorme procura por parte dos consumidores”, ressalva Lobo Xavier, que indicia que as pessoas estão a deixar de comprar carne e peixe, motivou o aumento. “Houve uma subida da procura e com a escassez o preço aumentou”. Há, portanto, uma catadupa de fatores alheios ao IVA, ressalvam os economistas.
Sobre o prolongamento da medida até ao fim do ano e, quem sabe, até 2024, é bem vista por quem assinou o pacto. Mas do lado dos produtores há exigências. “O pacto tem duas partes. Uma parte imediata de redução do IVA, e que se vê logo nos preços, e outra parte, que é o facto de ser necessário que a produção tenha condições para vender os produtos baratos”. Ou seja, para que a isenção de IVA se mantenha, terá de haver mais apoios à produção. “Só queremos ter as mesmas condições dos espanhóis e franceses. Por isso é que foi concedido um apoio, que ainda não está pago, na totalidade à produção. O prolongamento do IVA zero tem de incluir o prolongamento da outra parte, nem vejo isso de outra maneira”. Mas, para já, nada se sabe. “Ainda ninguém falou connosco sobre o prolongamento, não houve nenhuma conversa. Sabemos pelos jornais”. Prolongar a medida “é bom desde que envolva produção”, conclui.
Do lado dos economistas, mais céticos, a relevância de prolongar a medida ainda está por provar. “Num contexto em que as prestações aos bancos aumentam e as rendas, e os salários não acompanharam, não me parece que a medida faça grande diferença na vida das pessoas, apesar do elevado impacto orçamental. Mas é melhor do que nada. Mais vale haver do que não haver”, diz Ricardo Ferraz. Até porque “é positiva uma medida que implique a redução de impostos porque nós somos dos países da OCDE menos competitivos fiscalmente”. E tem a vantagem de ser automática. Mas o economista preferia uma alternativa. “Teria colocado no orçamento de 2023 uma redução mais significativa do IRS, para ajudar mais a classe média. Isso permite um aumento dos salários, retenção de talento e uma redução de esquemas de fraude fiscal”.
Já para a CIP, a luta agora é outra. E “mais séria”, considera Manuel Tarré. Passa por baixar o IVA de todos os produtos alimentares de 23% para 6% . “Somos o único país da Europa que tem a alimentação a 23%. Portugal trata a alimentação como um bem de luxo”. Na visão da CIP, que baseia o pretensão num estudo pedido à Nielsen e à Deloitte, a medida custaria 110 milhões aos cofres do Estado, uma vez que “os alimentos taxados a 23% rendem, em média, 150 milhões de euros por ano” aos cofres públicos, e “caso passe a ser aplicada a todos os alimentos a taxa de 6% de IVA”, a receita do IVA associada a estes produtos deveria passar a ser de 40 milhões de euros. “Isso sim, teria muito mais impacto na vida das pessoas”.