Os pobres estão mais pobres, a taxa de risco de pobreza subiu pela primeira vez em sete anos e foi no grupo de crianças e jovens que esta situação mais se agravou. Estas são algumas das conclusões da Pordata no seu retrato sobre a pobreza em Portugal, descrita como um dos “desafios mais urgentes” que o país enfrenta atualmente.
Num relatório publicado esta quinta-feira, em que se assinala o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, a base estatística da Fundação Francisco Manuel dos Santos compilou uma série de dados que permitem perceber como a pobreza evoluiu em Portugal e quais os grupos em maior risco. O trabalho analisa também os temas que a influenciam diretamente, como os baixos salários e os elevados custos com a habitação.
Em destaque está o facto de, em 2022 (ano a que se reportam as conclusões do relatório), 17% da população ter ficado abaixo da linha de pobreza em Portugal. Um valor muito “elevado”, como sublinha a diretora da Pordata ao Observador, destacando o facto de os baixos salários em Portugal — dos mais baixos da União Europeia —, não terem acompanhado a “gritante” subida dos preços da habitação.
Famílias monoparentais, crianças e jovens: os grupos de risco
Um dos grupos que em Portugal tem uma maior taxa de risco de pobreza é o das famílias monoparentais com crianças. “Temos que pensar que, nestas famílias, o rendimento que entra mensalmente é só de uma pessoa”, começa por dizer Luísa Loura.
Para se estar em risco de pobreza em 2022, os rendimentos líquidos anuais teriam de ser inferiores ao limiar de 7.095 euros (591 euros por mês). Nesse ano, quase uma em cada três famílias monoparentais vivia nessa situação, destaca o relatório da Pordata.
Esta realidade, acredita Luísa Loura, pode estar por trás de duas consequências identificadas também no relatório: primeiro, que as crianças e os jovens (menos de 18 anos) são o grupo em que a taxa de risco de pobreza mais aumentou; segundo, que um número significativo de pessoas empregadas estão em risco de pobreza.
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Por um lado, a taxa de risco de pobreza aumentou para 20,7% no grupo de crianças e jovens, em 2022, uma subida de 2,2 pontos percentuais face ao ano anterior. É o grupo que demonstra “maior vulnerabilidade”, com valores superiores ao conjunto nacional (17%) e a outros grupos etários (17,2%, nas pessoas com 65 ou mais anos e 16% entre os 18 e os 64 anos). Por outro lado, sabe-se também que no mesmo ano um em cada dez trabalhadores era considerado pobre.
1,9 milhões com menos de 591 euros por mês
O primeiro dado que salta à vista no retrato da evolução da pobreza da Pordata é que, em 2022, 1,9 milhões de pessoas em Portugal encontrava-se em risco de pobreza e vivia com rendimentos inferiores a 591 euros mensais, de acordo com o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR). Um valor que aumentava para 2,1 milhões de pessoas se se somasse todos aqueles que não têm capacidade financeira para adquirir bens essenciais.
Além disso, destaca-se uma taxa de risco de pobreza de 17%. Na prática, esta é a fatia da população abaixo da linha de pobreza no país, mesmo contabilizando as pensões resultantes de uma vida de trabalho e os apoios sociais distribuídos pelas famílias, seja para educação, habitação, doença, invalidez, desemprego ou combate à exclusão social.
Este valor representa um aumento face ao ano anterior, o primeiro aumento em sete anos, já que o valor tinha vindo a diminuir desde a crise financeira, com exceção do ano da pandemia de Covid-19. A diferença é ligeira (de 16,4% para 17%) mas é uma prova de que “não só não se melhorou como a situação se agravou”, diz Luísa Loura ao Observador.
A diretora da Pordata sublinha que é um valor muito alto, principalmente quando comparado com a realidade da União Europeia. Portugal tem a 11.ª taxa mais elevada entre os países da UE. Fica mesmo abaixo do Luxemburgo (18,8%) e acima da Malta (16,6%). No entanto, alerta a diretora da Pordata, é preciso cuidado ao olhar para estes resultados.
Por cá, chega-se ao valor de 17% com base num rendimento de 7.095 euros anuais, o que dá uma média de 591 euros por mês — a mais baixa da UE. Já no Luxemburgo, a base é um rendimento de 28.582 euros anuais, o que equivale a 2.382 euros por mês, a mais elevada da UE. Por comparação, isto torna a pobreza em Portugal “mais grave”, diz Luísa Loura. “Preocupa-me que não estejamos a conseguir sair deste círculo, sendo que, na posição relativa aos outros países, a nossa tem vindo a agravar-se”, admite.
Os pobres estão mais pobres
Outra das conclusões da Pordata é a de que os pobres estão mais pobres. Isto porque a taxa de intensidade de pobreza — a distância do rendimento mediano da população que está em risco de pobreza face ao valor do limiar da pobreza — sofreu o maior aumento da última década.
Traduzido para números, metade das pessoas em situação de pobreza tinha, em 2022, um rendimento monetário disponível 25,6% abaixo da linha de pobreza.
Isso traduz-se no aumento de pedidos de apoio social que vão chegando a várias associações. A Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), por exemplo, revelou esta quinta-feira que registou um aumento geral de 73% nos pedidos de apoio social. “Um reflexo da crescente vulnerabilidade da população num contexto de empobrecimento e aumento do custo de vida”, pode ler-se num comunicado enviado às redações.
Também o apoio prestado às pessoas em situação de sem-abrigo tem crescido significativamente, diz a CVP. Entre 2022 e 2023, registou um aumento significativo, passando de 389 para 1.986 o número de pessoas acompanhadas. “A erradicação da pobreza é um desafio urgente que exige ação coletiva e compromisso”, sublinhou António Saraiva, Presidente Nacional da CVP.
Ter emprego não significa evitar a pobreza
A relação entre o desemprego e a pobreza é bem conhecida. Mas é com preocupação que a Pordata vê aumentar a incidência da pobreza na população desempregada, “especialmente vulnerável” a esta realidade.
Em 2022, registou-se um aumento da incidência da pobreza neste grupo (em 3,3 pontos percentuais), o que se traduz numa das subidas mais elevadas da última década, com exceção do ano da pandemia de Covid-19, e na subida mais elevada entre toda a população portuguesa (46,7%).
Se o desemprego permanece como um dos principais fatores de pobreza, ter emprego não é um sinal de segurança. Diz a Pordata que, em 2022, um em cada dez trabalhadores era considerado pobre.
É certo que a proporção da população empregada que vive em situação de pobreza diminuiu nesse ano, de 10,3% para 10%. No entanto, na última década o valor pouco tem mudado. “Haver um em cada dez indivíduos que, apesar de ter emprego, é pobre, deve ser encarado, a par dos valores de outros indicadores, como um fator de preocupação”, destaca-se.
O preço das casas mais do que duplicou face a 2015, mas os salários não acompanharam
Este ano foi marcado por manifestações um pouco por todo o país pelo direito à Habitação. No final de setembro, por exemplo, milhares de pessoas de 22 cidades portuguesas aderiram ao apelo da plataforma Casa Para Viver e, munidas de cartazes, saíram às ruas em protesto. E o tema da Habitação, destaca a Pordata, é também incontornável no retrato da pobreza em Portugal.
Em 2023, o país viu mais do que duplicar os preços no mercado de compra e venda das casas, comparativamente a 2015, para 106%. Um valor muito acima do registado na União Europeia (48%). No entanto, nota a Pordata, esta subida não foi acompanhada pelos salários: “Verificamos que, face a 2015, os salários em Portugal aumentaram 35%, muito aquém do aumento de 105% das casas.”
Esta diferença é “gritante”, considera Luísa Loura, acrescentando que este problema também é visível quando se olha para os inquilinos em sobrecarga financeira devido às despesas relacionadas com a habitação. No ano passado eram 27%, ainda assim uma ligeira descida face a 2022.
Na prática, significa que mais de um em cada quatro inquilinos estava a gastar pelo menos 40% do seu rendimento com a renda da casa, água, luz e gás. Ao nível da União Europeia, a sobrecarga financeira atinge um quinto dos inquilinos (20,8%) e, desde que há registos, nunca ultrapassou os 27,1%.
[Artigo atualizado às 9h51 de dia 17 de outubro, tendo sido retirada a referência ao aumento percentual de pessoas em situação de sem-abrigo apoiadas pela Cruz Vermelha Portuguesa]