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Que mundo vamos encontrar quando sairmos à rua?

Quando nos fechámos em casa, sabíamos que um dia voltaríamos a sair. Até lá, o mundo transforma-se. Mas no quê? Num mundo "mais pobre e mais ruim", dizem uns. Outros tentam não "desperdiçar" a crise.

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Quando nos fechámos todos em casa, sabíamos que um dia voltaríamos a sair. Porém, essa certeza é hoje mais diluída (com os países a adiarem sucessivamente o fim das ordens de confinamento) e é tomada por outra: a de que, quando finalmente abrirmos a porta de casa e pusermos os pés na rua, estaremos a pisar em terra incógnita.

Neste texto, procuramos antecipar que mundo que nos espera lá fora — e exploramos cinco hipóteses, da política ao ambiente.

Política. O fim dos populistas e o regresso dos tecnocratas?

Num avião lotado, um homem levanta-se e, num gesto de indignação, vira-se para trás e diz aos restantes passageiros: “Estes pilotos presunçosos não querem saber de passageiros comuns como nós. Quem é que acha que eu devia pilotar o avião?”. Perante a pergunta, todos põem o braço no ar. Se for para respeitar a vontade da maioria, será um qualquer passageiro a comandar aquela aeronave e não um “piloto presunçoso”.

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Esta foi a alegoria proposta pelo cartunista Will McPhail, da revista New Yorker, poucas semanas antes da tomada de posse de Donald Trump como Presidente dos EUA, em janeiro de 2017. Donald Trump preparava-se então para iniciar um mandato que conquistara, em parte, por se distanciar do politicamente correto — tornando-se, assim, aos olhos de quem nele votou, numa lufada de ar fresco na política.

Não foi o único, nos últimos anos.

Em Itália, menos de uma década de campanha anti-política foi quanto bastou ao Movimento 5 Estrelas para saltar da Internet para o governo. No Brasil, Jair Bolsonaro conseguiu entrar no Palácio do Planalto à primeira tentativa numas eleições em que derrubou com facilidade velhas certezas à esquerda e também à direita. Aqui ao lado, em Espanha, o governo liderado pelo PSOE tem como parceiro o Podemos, partido que cresceu na denúncia da “casta”, conceito que abrangia não só os ricos mas também os políticos em geral. A estes, juntam-se os exemplos de outros populistas pelo mundo inteiro que irromperam na política dos últimos anos com promessas de ruptura, como é Andrés Manuel López Obrador no México ou Rodrigo Duterte nas Filipinas.

Trump chegou ao poder com uma mensagem anti-sistema. Agora, com a crise do coronavírus, a sua retórica pode fazer ricochete se se criar a perceção de que geriu mal a crise (Alex Wong/Getty Images)

Alex Wong/Getty Images

Com a economia de vento em popa, sem imprevistos na ordem política e à falta de tumulto social, não seria de estranhar que qualquer um daqueles líderes, e tantos outros que encaixam no molde do populismo, se mantivessem no poder com relativa facilidade — passando de novatos a statu quo mais do que confirmado.

Porém, com a crise do novo coronavírus, tudo isso pode desabar. Se é verdade que a popularidade de alguns daqueles líderes subiu nas primeiras ondas do tsunami do coronavírus (como é o caso de Donald Trump, que, projetando a imagem de um Presidente em tempos de guerra, tem neste momento a maior taxa de aprovação desde que tomou posse), a tendência historicamente registada é de uma descida a pique após esse efeito se anular — isto é, quando as coisas correm mal. Como pode acontecer, por exemplo, com uma pandemia como esta.

“A Covid-19 está a tornar-se na terceira maior crise do pós-Guerra Fria, seguindo-se aos ataques do 11 de setembro de 2001 e ao colapso financeiro de 2008. Esta crise pode criar estragos maiores do que as duas anteriores e tem exposto os limites do populismo como método de governação”, escrevem Thomas Wright e Kurt Campbell num ensaio do think-tank norte-americano Brookings. “A expertise importa. As instituições importam. Existe, de facto, algo que é a comunidade global. E uma resposta informada, mesmo que impopular, importa. O sistema tem de voltar a funcionar.”

“A Covid-19 está a tornar-se na terceira maior crise do pós-Guerra Fria, seguindo-se aos ataques do 11 de setembro de 2001 e ao colapso financeiro de 2008. Esta crise pode criar estragos maiores do que as duas anteriores e tem exposto os limites do populismo como método de governação. A expertise importa. As instituições importam. Existe, de facto, algo que é a comunidade global. E uma resposta informada, mesmo que impopular, importa. O sistema tem de voltar a funcionar.”
Thomas Wright e Kurt Campbell, investigadores do think-tank norte-americano Brookings

Alguns argumentam que, ao longo da História, foram precisamente as epidemias que levaram à lenta mas irreversível criação do Estado moderno — e que esse caminho foi feito através de processos construídos em cima das lições do passado e não de uma ruptura com o mesmo. É esse um dos argumentos centrais do livro “Disease and the Modern World”, do historiador britânico Mark Harrison, da Universidade de Oxford. “A partir da Renascença, o controlo das doenças passou a ser uma das funções mais importantes do Estado, a par com a proteção do seu povo de agressões externas”, lê-se naquele livro, que não tem edição em Portugal. “Por isso, a ameaça de uma praga ou de outras doenças levou a uma ação estatal coordenada sob a forma de quarentena, cuidados médicos, isolamento de vítimas e medidas para limpar o ambiente.”

"Episódio da peste de 1720 em Tourette (Marselha)", de Michel Serre (DEA / G. DAGLI ORTI/De Agostini via Getty Images

De Agostini via Getty Images

Esse longo caminho desde a Renascença até aos dias de hoje foi percorrido mais rapidamente num país que partiu do zero a nível de infraestruturas mas que, baseando-se em conhecimento adquirido frequentemente noutras paragens, rapidamente se construiu: os EUA. Esse exemplo é recordado por Thomas J. Bollyky, diretor do programa de saúde global do think-tank Council on Foreign Relations, num ensaio publicado na Foreign Affairs. “A percentagem de casas com acesso a água filtrada cresceu de 0,3% em 1880 para 93% em apenas seis décadas”, realça o autor, referindo-se a um período em que diferentes cidades dos EUA conheceram vários surtos, entre cólera e tuberculose, e também foram tocados pela devastadora gripe espanhola. Tempos difíceis, mas que trouxeram lições.

Por isso, embora rejeite o “mito de uma boa epidemia”, Thomas J. Bollyky reconhece: “Uma vez que as sociedades, incluindo a dos EUA, têm de arcar a despesa desta terrível pandemia, mais vale que aprendamos a beneficiar com ela”.

O problema para as lideranças políticas — sejam elas populistas ou não — que foram apanhadas pelo novo coronavírus é que, findo o estado de exceção que cada canto do mundo vive à sua maneira, uma má gestão desta pandemia pode vir a ser-lhes cobrada.

Nenhum líder poderá dizer que não sabia do novo coronavírus.

Nem o próprio regime chinês, liderado por Xi Jinping pode dizê-lo, já que decidiu silenciar ainda em dezembro de 2019, os médicos que alertaram para o surgimento de sintomas semelhantes à SARS (que matou mais de 300 pessoas na China entre 2002 e 2003) estavam a surgir.

Essa cobrança, porém, não é possível na China — um regime autoritário que pôs à prova todo o seu aparelho de vigilância e controlo populacional nos últimos meses. O mesmo já não pode ser dito em democracias.

Em dezembro de 2019, a China silenciou os médicos que alertaram para o início do surto do novo coronavírus. No final de janeiro, reconheceu o problema e agiu rapidamente (STR/AFP via Getty Images)

STR/AFP via Getty Images

Nos EUA, o país que já conta com mais casos do novo coronavírus em todo o mundo, a oposição já carrega contra Donald Trump. Uma Super PAC (comité de ação política, ou, dito de outra forma, grupo que junta dinheiro e produz propaganda política) que apoia a candidatura do democrata Joe Biden nas presidenciais de novembro, criou um vídeo com várias declarações de Donald Trump durante esta crise — desde aquelas em que desvalorizava a situação àquelas em que garantia ter tudo controlado. Tudo isto é acompanhado por um gráfico com o número de casos de coronavírus nos EUA — uma linha que não pára de crescer, apesar das declarações do Presidente. O anúncio foi alvo de uma providência cautelar por parte dos advogados de Donald Trump, que argumentaram que aquelas declarações foram tiradas de contexto.

Enquanto isso, Donald Trump continua a fazer briefings diários — porém, em vez de assumir o protagonismo dos primeiros dias, é frequente vê-lo a chamar ao púlpito o epidemiologista Anthony Fauci, homem que aconselha todos os presidentes dos EUA desde Ronald Reagan em matéria de doenças infecciosas. No fundo, o populista está a dar o lugar ao tecnocrata que, de tanto tempo no cargo, se tornou ele próprio numa instituição.

Poderá então esta crise, e o seu efeito que se prevê destruidor, levar ao fim da era dourada dos políticos populistas?

"Olhando para a experiência que a História recente nos dá, apostaria que na melhor das hipóteses a crise do coronavírus terá um impacto moderado nos populistas: alguns vão ganhar, outros vão perder e outros vão ficar na mesma.”
Cas Mudde, especialista em populismo e professor na Universidade da Georgia

Cas Mudde, um dos politólogos mais respeitados no estudo do populismo, não arrisca tal prognóstico — e, a tomar uma posição, pende para o lado que acredita que o populismo em si sobreviverá a este choque.

“É demasiado cedo para fazer grandes previsões de como o coronavírus vai mudar o mundo”, escreveu o politólogo holandês radicado nos EUA numa coluna do The Guardian a 27 de março. “Mas já podemos dizer que quase de certeza que ‘não vai matar o populismo’, pela simples razão de que o ‘populismo’ não tem uma resposta unitária para a pandemia. Olhando para a experiência que a História recente nos dá, apostaria que na melhor das hipóteses a crise do coronavírus terá um impacto moderado nos populistas: alguns vão ganhar, outros vão perder e outros vão ficar na mesma.”

Globalização. Cada um sabe de si e a China sabe de todos

Foi uma medida de desespero.

A 3 de fevereiro, altura em que o novo coronavírus ainda pouco passava das fronteiras da China, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Hua Chunying, fez um pedido sincero ao mundo: “A China precisa urgentemente de máscaras, fatos e óculos de proteção”. À altura, a China tinha capacidade para produzir apenas 20 milhões de máscaras ao dia, tendo por isso recebido donativos de rivais como a Coreia do Sul e o Japão, além do Casaquistão e da Hungria. Para um país que registava 349 das 360 vítimas do novo coronavírus em todo o mundo, não era altura de mostrar orgulho, mas sim fragilidade.

Um mês depois, no início de março, a contagem de mortos na China subiria para lá dos 3 mil. Com 930 milhões de pessoas obrigadas a um confinamento estrito, o gigante asiático parou quase por completo — interrompendo na prática a sua vida económica e industrial para conter a escalada da mais grave pandemia na História do regime comunista. E, ao que tudo indica, conseguiu fazê-lo.

Tanto que, no início de abril, conseguiu dar a volta a um texto onde o seu nome voltava a merecer o epíteto de “O Homem Doente da Ásia”, expressão que no final do século XIX e no início do século XX servia de sinónimo a “China”.

Em apenas dois meses, a China foi de uma posição em que implorava por máscaras a países estrangeiros para passar a abastecer o resto mundo não só de máscaras mas também de equipamento valioso como ventiladores ou até médicos. A lista de países é extensa e Portugal faz parte dela — com a chegada de ventiladores e outro material. Enquanto isso já chegaram produtos a vários outros países.

O maior foco da ajuda chinesa vai para Itália, com mais de 30 médicos a chegarem ao país que mais mortes registou até agora pelo novo coronavírus. Além disso, a China prometeu a Itália mil ventiladores, dois milhões de máscaras e 50 mil kits de testes, entre outros artigos essenciais.

Além de fazer negócio com vários países, o regime chinês enviou ainda ajuda para outras paragens, como o Irão, Iraque ou Sérvia. As imagens da chegada de batalhões de médicos chineses a diferentes zonas do globo foram amplamente divulgadas, servindo tanto para consumo na China como para o resto do mundo. O momento em que a ajuda chinesa chegou a Belgrado foi oportunamente captado pelas câmara das CGTV, televisão financiada por Pequim. Nelas, pode ver-se como o Presidente sérvio, Aleksandar Vučić, aguardava impacientemente pelos médicos no fundo das escadas do avião. Quando os viu descer os degraus, o chefe de Estado da Sérvia avançou sobre a bandeira da China e beijou-a. Um dia depois, viria a dizer que Xi Jinping era um “amigo e irmão” da Sérvia e que a solidariedade europeia era “um conto de fadas que não chegou a sair do papel”.

À iniciativa pública do regime chinês, junta-se a iniciativa privada de algumas empresas e empresários de relevo e próximos da cúpula do Partido Comunista da China. A Huawei, que disputa com os EUA a concessão da rede 5G em vários países, sobretudo da Europa, enviou milhões de máscaras para países como Itália, Irlanda, República Checa, Polónia, Holanda e Espanha. Também o multimilionário Jack Ma, fundador do gigante de vendas online Alibaba, financiou o envio de testes e máscaras um pouco para todo o mundo: EUA, alguns países na Europa, vários na Ásia e ainda para todos os de África. Neste último caso, a distribuição de 20 mil testes, 100 mil máscaras e mil fatos de proteção pelos 54 países do continente africano fica a cargo da Ethiopian Airlines — a transportadora pública da Etiópia, que, à semelhança de muitas outras esferas da economia daquele país, se tem mantido à tona à custa de empréstimos chineses.

“O novo coronavírus revelou um cenário geoestratégico fraturado e reativou as velhas discussões entre a abertura [democrática] e a eficácia. Este vírus deixou bem claro a liderança do ditador da China, mas também trouxe luz às incompetências das democracias ocidentais."
Robert Peckham, professor na Universidade de Hong Kong e autor do livro "Epidemics in Modern Asia"

“Consciente de que está em causa um jogo diplomático de alto risco, a China está a transformar a narrativa no sentido de dar ênfase ao sucesso das suas medidas de confinamento em massa e retirar importância às preocupações relativas às suas falhas iniciais”, escreveu na Foreign Affairs o académico Robert Peckham, especialista na História das doenças infecciosas na China. “O novo coronavírus revelou um cenário geoestratégico fraturado e reativou as velhas discussões entre a abertura [democrática] e a eficácia. Este vírus tornou bem visível a liderança do ditador da China, mas também trouxe luz às incompetências das democracias ocidentais. À medida que os governos democráticos impõem medidas de quarentena abrangentes, a China espera que o seu estilo draconiano de gerir a epidemia prevaleça como a nova norma global.”

Em suma, a China conseguiu pegar numa fraqueza debilitante como é o novo coronavírus e transformá-lo, com uma máquina de poder que mais nenhum outro país possui, num êxito de diplomacia pública aos olhos do mundo. Mais importante do que as máscaras ou os ventiladores, que são meros instrumentos, a China vê na crise do novo coronavírus uma oportunidade única para afirmar o seu modelo político e a sua ideia de eficácia — utilizando uma emergência de saúde pública a nível mundial para varrer para debaixo do tapete a má publicidade gerada pela repressão das manifestações em Hong Kong, pela a perseguição ao uigures e, claro, pela ocultação de informação vital no início do surto em Wuhan.

Esta tem sido uma estratégia com frutos. A quem ainda não estiver convencido disso mesmo, talvez se possa recomendar o exercício de consultar o site Trump Twitter Archive (que junta todos os tweets do Presidente dos EUA) como entre 16 e 22 de março Donald Trump se referiu ao “vírus chinês” um total oito vezes — expressão que viria a repetir e defender em entrevistas e conferências de imprensa. Porém, depois disso, Donald Trump mudou de vocabulário e também de tom perante Pequim, como ficou claro num tweet publicado dias depois.

“Acabei de ter uma conversa muito boa com o Presidente Xi, da China. Abordámos em grande detalhe o coronavírus que está a devastar grandes partes do nosso planeta. A China já passou por muito e desenvolveu um grande conhecimento do vírus. Estamos a trabalhar em proximidade. Muito respeito”, escreveu Donald Trump. O tweet em questão data de 27 de março. No mesmo dia, os EUA ultrapassavam a China no número de casos de coronavírus.

E é esta comparação — entre a China e os EUA e o seu papel durante esta crise — que tem levado vários especialistas do campo das relações internacionais a apontarem de forma quase unânime para um desfecho do mundo pós-Covid-19: com Donald Trump a fazer valer uma política isolacionista durante o combate à pandemia, a China deu um salto de gigante na consolidação da sua posição como referência ímpar na esfera global.

“Estamos a ir em direção a um mundo mais pobre, mais ruim e mais pequeno.”
Shivshankar Menon, diplomata indiano e antigo conselheiro do ex-primeiro-ministro Manmohan Singh

Este momento surge na mesma altura em que países que convivem lado a lado e formam alianças de diferentes ordens, como é o caso da União Europeia (UE) ou a NATO, não conseguem chegar a um consenso em questões de futuro (como é o caso da mutualização, ou não, da dívida gerada pelo novo coronavírus) nem a questões técnicas (como são os parâmetros para contabilizar casos e mortos).

No caso da UE, alguns recordarão ainda que no início desta crise os europeístas Emmanuel Macron e a Angela Merkel aprovaram medidas para impedir a exportação de bens como máscaras ou gel desinfetante. E, enquanto isso, Donald Trump tomou a decisão de fechar as fronteiras a todos os voos chegados da Europa — algo que Bruxelas só soube pelas notícias. Na Foreign Policy, Shivshankar Menon, diplomata indiano e antigo conselheiro do ex-primeiro-ministro Manmohan Singh para questões de segurança externa, resumiu numa simples frase aquilo que vê depois da Covid-19: “Estamos a ir em direção a um mundo mais pobre, mais ruim e mais pequeno”.

Além disso, esta crise criou um caldo em que cada país sabe de si e a China sabe de todos. E a tendência será para, nos próximos tempos, essa certeza se acentuar. “A pandemia vai acelerar uma mudança que já tinha iniciado: o afastamento de uma globalização centrada nos EUA e a aproximação a uma globalização centrada na China”, resumiu, num texto para a Foreign Policy, o veterano Kishore Mahbubani, histórico ministro dos Negócios Estrangeiros de Singapura.

De acordo com aquele especialista, autor do livro assumidamente provocador “A Queda do Ocidente?” (Bertrand, 2018), a dinâmica que se segue refletirá aquilo que já faz parte do zeitgeist de cada um destes países no que toca à maneira de olhar o mundo: “O povo americano perdeu a fé na globalização e no comércio internacional. Os acordos de comércio livre são tóxicos, com ou sem Donald Trump como Presidente. Pelo contrário, a China não perdeu essa fé”, escreve. “As últimas décadas de crescimento económico foram o resultado de compromissos à escala global. Além disso, o povo chinês passou por uma explosão de confiança cultural. Eles sentem que podem competir em qualquer parte do mundo.”

Governo. O Estado vai crescer — e pode ficar a olhar para nós lá de cima

O recurso às metáforas bélicas tem abundado entre os líderes políticos quando toca falar sobre o combate ao novo coronavírus.

Donald Trump falou dele próprio como um “Presidente em tempos de guerra” e Emmanuel Macron repetiu várias vezes “nós estamos em guerra”. Outros, recorreram à comparação com guerras passadas para sublinhar a importância do momento. Foi o caso  espanhol Pedro Sánchez disse que “esta é a situação mais grave que Espanha viveu desde a guerra Civil” e também da alemã Angela Merkel, que disse: “Desde a Segunda Guerra Mundial que não há um desafio que exija à nossa nação um nível de ação comum e união como o atual”. Em Bruxelas, nunca neste século se tinha ouvido falar tanto do “Plano de Marshall”. E também em Portugal, António Costa falou de uma “luta pela nossa própria sobrevivência” e Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou que estamos perante uma “verdadeira guerra”.

Enquanto o debate em torno da adequação da metáfora bélica para aquilo que estamos a viver no presente decorre — com uns a acreditarem que é uma figura motivadora e criadora de solidariedade, e outros a apontarem que são realidades incomparáveis e que uma comparação indevida pode dar frutos indesejados —, há porém uma certeza quanto ao futuro que se segue: a partir daqui, o Estado vai crescer. E aí, sim, será como nas guerras e depois delas.

“Em apenas algumas semanas, um vírus com um décimo de milésimo de um milímetro de diâmetro transformou as economias ocidentais.”
Editorial da edição de 26 de março da "Economist"

Isso mesmo está patente nos programas de auxílio à economia apresentados por vários países, liderados muitas vezes por figuras insuspeitas de defenderem uma presença forte do Estado na vida produtiva do país — de Boris Johnson a Emmanuel Macron, passando por Donald Trump e Angela Merkel. Por mais que cada um destes líderes, e outros tantos, tenham feito carreiras políticas a defender a iniciativa privada, agora chegou o momento de eles próprios assumirem que o Estado terá de crescer — abrindo os cordões à bolsa e, pelo caminho, endividando-se ainda mais — para fazer frente ao novo coronavírus.

No Reino Unido, Boris Johnson anunciou um plano que, feitas as contas, equivale a 15% do PIB nacional. Em França, o somatório das medidas chega quase aos 14% do PIB. Nos EUA, o acordo fechado pelo Congresso e aprovado por Donald Trump ronda os 10% do PIB. O mesmo valor foi praticado na Austrália e na Alemanha, sendo que no país de Angela Merkel ainda acresce a tudo isto um pacote fiscal. Em Espanha, o valor ronda os 8% do PIB — mas quase duplica se for tido em conta o dinheiro esperado da banca. Em Portugal, os números são mais tímidos: o total de 9,2 mil milhões anunciados em apoios à economia rondam os 5% do PIB.

A dimensão da situação foi resumida da seguinte forma num editorial da Economist de forma bem descritiva. “Em apenas algumas semanas, um vírus com um décimo de milésimo de um milímetro de diâmetro transformou as democracias ocidentais”, escrevia aquela revista.

No mesmo editorial da revista, por norma conhecida pela defesa de um Estado pouco ou nada interveniente na economia das nações, reconhecia-se ainda assim que “o Estado tem de agir decisivamente”, mesmo que tudo isto represente um “problema” para aqueles que, tal como o conselho editorial da Economist, são “defensores de um governo limitado e do mercado livre”.

Pelo contrário, para quem defende um maior papel do Estado na economia, esta crise pode servir de ocasião para nacionalizações (como já defenderam ministros em Espanha, França e também Portugal, com o detentor da pasta da economia, Pedro Siza Vieira, a admitir a possibilidade de se nacionalizar a TAP) e também para maior investimento em setores como a saúde pública. Neste último caso, muitos relembram as palavras de Rahm Emmanuel, primeiro chefe de gabinete de Barack Obama, que perante as consequências do colapso financeiro do final de 2008 cunhou a frase: “Nunca se deve desperdiçar uma crise”.

A China utilizou a sua experiência de vigilâcia massiva para garantir o cumprimento das regras de confinamento — mas não foi o único país do mundo a fazê-lo (ANTHONY WALLACE/AFP via Getty Images)

ANTHONY WALLACE/AFP via Getty Images

Porém, o crescimento do Estado que o mundo pós-Covid-19 pode herdar não se cinge apenas à economia — muitos apontam para a probabilidade de governos das mais variadas geografias, e com diferentes conceções daquilo que deve ser uma democracia, aumentarem o grau de vigilância sobre as suas populações.

O exemplo da China, regime autoritário que está na vanguarda da tecnologia de vigilância dos seus cidadãos, é frequentemente referido para falar dos perigos da intromissão do Estado na vida privada das pessoas. Naquele país, já há cidades em que é obrigatório ter a aplicação Alipay Health Code no telemóvel, onde cada um tem o seu estado de saúde registado. A polícia pode pedir para ver o telemóvel. Se o código for verde, não haverá problema e poderá prosseguir. Se for apanhado na rua com um código amarelo (o que significa que a pessoa devia estar confinada durante sete dias) ou vermelho (duas semanas), estão previstas punições.

Coreia do Sul. Medidas extremas para salvar a economia, vigilância apertada e testes, muitos testes

Porém, no esforço de combater o novo coronavírus, houve outros países que, apesar de serem democracias consolidadas, decidiram apertar na vigilância para controlar o surto. É o exemplo da Coreia do Sul, onde as pessoas infetadas com o novo coronavírus foram obrigadas a ceder às autoridades os dados dos seus cartões de multibanco e de telemóvel, de forma a tornar possível saber onde estiveram e a que horas. Com esses dados, o governo passou a avisar todos os cidadãos, infetados ou não, que tivessem frequentado uma sala de cinema com um infetado ou que fossem vizinhos de alguém com Covid-19. Para garantir que esse rastreio é correto e abrangente, cada infetado é obrigado a ter o telemóvel por perto — idealmente no bolso. Dessa forma, se tentar sair de casa, as autoridades serão alertadas.

No Financial Times, o historiador e autor do bestseller “Sapiens – História Breve da Humanidade” (Elsinore, 2019), o israelita Yuval Noah Harari aborda o tema da privacidade no mundo pós-Covid-19 em três partes. Primeiro, recua ao passado. Depois, analisa o presente. Finalmente, projeta o que pode vir aí no futuro.

Primeiro, o passado.

“Há 50 anos, o KGB não tinha como seguir 240 milhões de cidadãos soviéticos durante 24 horas por dia, nem era capaz de processar toda a informação recolhida. O KGB contava com agentes e analistas humanos e simplesmente não podia colocar um agente humano a seguir cada cidadão.”

Depois, o presente.

“Até aqui, quando colocamos o dedo num ecrã de um smartphone e clicamos num link, o governo pode saber exatamente no que é que o nosso dedo clicou.”

E, enfim, um futuro assustador.

“Mas, com o coronavírus, o foco mudou (…). Agora, o governo quer saber a temperatura do nosso dedo e a pressão sanguínea por trás dessa pele.”

“Se uma pulseira consegue monitorizar a minha temperatura corporal, pressão sanguínea e pulsação cardíaca enquanto assisto ao vídeo, também pode perceber o que é que me faz rir, chorar ou ficar muito, muito irritado."
Yuval Noah Harari, historiador e autor do livro “Sapiens - História Breve da Humanidade”

Yuval Noah Harari chega a utilizar o exemplo — para já fictício — de uma pulseira capaz de monitorizar em tempo real a temperatura e a pulsação dos cidadãos, que seriam obrigados a utilizá-la. Tal artefacto poderia ser utilizado para seguir o estado de saúde das pessoas: “As cadeias de transmissão poderiam ser drasticamente encurtadas ou até interrompidas”. Mas, por outro lado, uma pulseira capaz de recolher aqueles indicadores poderia chegar a outras conclusões. O autor coloca a hipótese de uma pessoa ver um excerto da CNN ou da Fox News, duas televisões que marcam a polarização política dos EUA. “Se uma pulseira consegue monitorizar a minha temperatura corporal, pressão sanguínea e pulsação cardíaca enquanto assisto ao vídeo, também pode perceber o que é que me faz rir, chorar ou ficar muito, muito irritado”, diz.

Nos EUA, e em qualquer outra democracia consolidada, isso seria mau. Já na Coreia do Norte, seria fatal, explica o historiador israelita. “Imagine a Coreia do Norte em 2030, quando toda a gente tiver de usar uma pulseira biométrica 24 horas por dia”, sugere o autor, propondo aos leitores que se coloquem na pele desse norte-coreano. “Se estiver a ouvir um discurso Grande Líder e a pulseira detetar sinais de revolta, você está feito.”

Desigualdade. Uma proposta “portuguesa” de 1516

À falta de algum rigor, podemos dizer que é uma ideia Made in Portugal.

Tudo começou na cabeça de Rafael Hitlodeu, homem português apesar do apelido grego, nascido no final do século XIV. Navegador por vocação, era também um filósofo habituado a pensar o mundo e a sociedade com quem travava conhecimento. Foi o caso de um inglês chamado Thomas More, a quem contou histórias de uma ilha que encontrou e desde então utilizou como exemplo: Utopia. Ali, formou a convicção que, mais do que punir quem rouba por necessidade, deve dar-se os meios para ele subsistir.

“Seria muito melhor garantir que cada homem recebesse os meios necessários para poder viver e dessa forma ser poupado à necessidade de roubar e morrer dessa forma”, defendeu Rafael Hitlodeu numa conversa em 1516.

Importa fazer algumas clarificações, já com o rigor ausente, excecionalmente ausente, nos últimos dois parágrafos. Primeiro, há que reconhecer que Rafael Hitlodeu é português, mas não é real — trata-se antes de uma personagem fictícia. Depois, aquela conversa não foi ouvida por “um” Thomas More mas sim por Thomas More, o escritor inglês que publicou o livro “Utopia”, precisamente em 1516.

Ora, pouco mais de cinco séculos depois, aquilo que Rafael Hitlodeu propunha grosso modo ficou globalmente conhecido como o Rendimento Básico Universal — sob a ideia de que para fazer frente aos desafios do mundo laboral os estados devem dar uma quantia razoável a todos os cidadãos adultos de forma a garantir o seu bem-estar.

Rafael Hitlodeu fala com Thomas More numa ilustração do livro "Utopia". Terá sido nele que se sugeriu, apesar do tom satírico, pela primeira vez o RBI (Ann Ronan Pictures/Print Collector/Getty Images)

Ann Ronan Pictures/Print Collector/Getty Images)

A ideia já foi testada em diferentes partes do mundo, como em grupos escolhidos de forma aleatória na Finlândia ou aldeias específicas no Quénia. Nos últimos meses, saltou para algumas das principais discussões políticas dos EUA, com o candidato — entretanto retirado — às primárias democráticas Andrew Yang a sustentar grande parte da sua campanha nessa promessa a que chamou de “Dividendos da Liberdade”. Para defender a sua ideia, Andrew Yang referiu várias vezes a crescente automatização do trabalho — apontando, no fundo, que para cada robô a funcionar numa fábrica um número superior de empregos seria sacrificado. Uma fonte de rendimento sem condições e estável, na ordem dos 1.000 dólares ao mês, seriam suficientes para garantir a sobrevivência de cada adulto afetado.

Isto era no mundo pré-Covid-19. Agora, no mundo Covid-19, Andrew Yang mantém a ideia — mas com uma importante alteração. “Pelos vistos, devia ter falado de uma pandemia em vez da automatização”, escreveu no Twitter.

O mundo pós-Covid-19 pode ser mais desigual e discriminatório do que aquele em que vivemos agora — e de várias formas.

“Novo pensamento distópico: irá emergir um mercado a curto prazo no qual os empregadores estarão dispostos a pagar mais a (ou a competir por) trabalhadores que provem documentalmente que são imunes à Covid-19."
Nicholas Christakis, diretor do Human Nature Lab, da Universidade de Yale

O médico e sociólogo Nicholas Christakis, diretor do Human Nature Lab, da Universidade de Yale, que o Observador entrevistou no final de março, propôs aos seus seguidores no Twitter que ponderassem um cenário distópico em que “os empregadores estejam dispostos a pagar mais a (ou a competir por) trabalhadores que provem documentalmente que são imunes à Covid-19”.

Se este cenário imaginado por Nicholas Christakis parece distante, o facto é que em França, no campo da habitação, já houve profissionais do setor da saúde a serem ostracizados por vizinhos que passaram a vê-los como possíveis transmissores do vírus.

Sophie Davens, auxiliar num hospital em Toulouse, chegou um dia a casa depois do trabalho e reparou que tinha um recado à sua espera. Eis um excerto do que ele dizia: “Sabendo da sua profissão, será possível, pela nossa segurança, que não toque nas portas das zonas comuns ou, talvez, alojar-se noutro sítio?”. Há também a história de uma enfermeira de Vancouver que se instalou num apartamento desabitado mesmo ao lado do Hospital Tenon, após oferta do proprietário. Pouco depois de se instalar, começaram a surgir queixas de dois habitantes do prédio. “Não queremos que a nossa família e o resto dos habitantes corram o risco de serem infetados”, terá dito um deles. Pouco depois, a enfermeira voltou a fazer as malas e foi-se embora.

https://www.facebook.com/sophie.davens/posts/10212666045446008

Para a socióloga Theda Skocpol, da Universidade de Harvard, o mundo que se segue pode ser também mais desigual no trabalho. Se as dinâmicas instaladas por esta necessidade repentina de distanciamento social se arrastarem no tempo, o teletrabalho e o ensino à distância podem passar a ser norma. Nesse caso, argumenta aquela socióloga, seriam exacerbadas as diferenças entre as famílias de “profissionais com salários altos ou gestores, [que] vivem em casas prontas para servirem de local de teletrabalho e onde cada criança tem o seu quarto” e as famílias que “não podem trabalhar a partir de casa” e as suas crianças, se estas viverem “em casas sem internet de alta velocidade que lhes permita terem aulas à distância”.

O teletrabalho e o ensino à distância podem exacerbar as desigualdade de famílias que vivem em casas mais pequenas e menos equipadas (Xavier Laine/Getty Images)

Xavier Laine/Getty Images

Perante esta e outras situações de desigualdade, que podem resultar na perda de emprego, rendimento ou até de habitação por parte de uma pessoa, seja ela infetada, imune ou negativa à Covid-19, são várias as vozes que agora dão razão à proposta de um Rendimento Universal Básico — ou, pelo menos, a versões mais tímidas do mesmo.

No acordo aprovado pelo Congresso e promulgado pelo Presidente dos EUA, está previsto o envio de cheques que podem ser de 1.200 dólares (1.111 euros) para adultos que ganhem até 75 mil dólares (69,4 mil euros) por ano ou de 2.400 dólares (2.222 euros) para os casais com rendimentos até aos 150 mil dólares (138,9 mil euros) anuais. Para os casais, acrescerá um cheque de 500 dólares (463 euros) por cada filho a cargo. Ainda desses valores, também será enviado dinheiro, mas menos — serão retirados 5 dólares a cada 100 dólares que ultrapassem aqueles limites de rendimento anual. Só a partir dos 99 mil dólares (91,6 mil euros) anuais para solteiros ou 198 mil dólares (183,3 euros) por casal é que o Estado norte-americano se escusará a enviar dinheiro.

Os cheques podem começar a chegar já no início de abril e, se for respeitada a vontade de Donald Trump, serão enviados com a sua assinatura.

Ao contrário do Rendimento Básico Universal, a medida anunciada pela Casa Branca não deverá ser repetida. Porém, o facto de esta ideia de ter sido aprovada por Trump e, antes disso, apoiada por republicanos como o ex-candidato presidencial e senador pelo Utah Mitt Romney é um sinal de que, em tempos de crise, este pode ser um cenário a adotar — e talvez a expandir.

“É significativo ser um político da direita a apoiar uma medida assim”, disse o diretor do Centro de Ética, Economia e Políticas Públicas da Universidade de San Diego, Matt Zwolinski, à revista Time. “Isso pode ajudar a legitimar uma ideia que nalguns círculos seria vista como uma espécie de socialismo.”

“Os programas de estabilidade não vão resgatar um vasto número de restaurantes, teatros, cafés, pubs e lojas que vão continuar a cair nos próximos dias. Os grandes investimentos em infraestrutura não sustentam esses pequenos negócios, que são 99% das empresas do Reino Unido, e cujos bolsos não são fundos o suficiente para sobreviverem à disrupção dos próximos meses.”
Daniel Susskind, economista e professor na Universidade de Oxford

Num ensaio para o Financial Times, o economista britânico Daniel Susskind, da Universidade de Oxford, admitiu que a crise do novo coronavírus — ou a perspetiva do que ela trará — o fez passar a apoiar a ideia de um Rendimento Básico Universal perante a aquilo que tem sido proposto nos pacotes de estímulo à economia propostos em todo mundo. Recorrendo ao caso específico do Reino Unido, o autor escreve: “Os programas de estabilidade não vão resgatar um vasto número de restaurantes, teatros, cafés, pubs e lojas que vão continuar a cair nos próximos dias. Os grandes investimentos em infraestruturas não sustentam esses pequenos negócios, que são 99% das empresas do Reino Unido, e cujos bolsos não são fundos o suficiente para sobreviverem à disrupção dos próximos meses.”

Assim, o autor propõe que sejam transferidas 1.000 libras mensalmente a cada britânico maior de idade — seja quem for, ganhe o que ganhar, detenha o que detiver. “Tão simples quanto isso. Se o pico da crise está para chegar dentro de semanas, essa é uma virtude que não deve ser ignorada.”

Ambiente: a casa está arder, mas agora temos uma pistola apontada à cabeça

“Quero que ajam como se a nossa estivesse a arder. Porque está.”

Esta foi uma das frases provavelmente mais ouvidas no ano de 2019, em que a jovem ativista sueca Greta Thunberg foi certamente uma das pessoas que mais atenção mereceu em todo o mundo. Aliando-se a outros jovens, e outros nem tanto quanto isso, de várias partes do mundo, Greta Thunberg tornou-se no rosto de uma causa que a antecede (o ambientalismo) e imprimiu-lhe um novo tom de urgência.

A Covid-19 presta-se a outro tipo de metáfora: a de que, um dia, acordámos todos com uma arma apontada à cabeça. Por isso, mesmo que seja de extrema importância apagar as chamas que nos podem reduzir a casa a cinzas, dificilmente isso será tão urgente como garantir antes de tudo que o intruso que nos acordou com um cano de arma encostado à cabeça não dispara.

O que crises anteriores demonstram é que esse raciocínio deverá ser feito nos próximos tempos tanto pelo cidadão comum como pelas empresas. É expectável que em tempos de crise financeira, optem por opções mais baratas — o que, muitas vezes, significa também “mais poluente” e menos sustentável a longo prazo.

“Os consumidores podem vir a alterar as suas preferências em resposta à crise, dando primazia a considerações economicistas a curto prazo em relação às considerações ambientais."
Gonzalo Escribano e Lara Lázaro Touza, do think-tank espanhol Real Instituto Elcano

O caso mais evidente disso mesmo remete para o combustível utilizado por cada cidadão para atestar o seu carro ou por cada empresa para mover a sua frota automóvel. O mesmo se aplica quando tanto o consumidor como a empresa precisar de comprar um carro — sendo mais provável que em momentos de maior incerteza opte por um carro mais barato mas também mais poluente em detrimento de um carro de emissões zero mas mais caro. A refletir essa lógica, as ações da Tesla caíram de um pico histórico de 917 dólares (848 euros) a 19 de fevereiro deste ano para 361 dólares (334 euros) a 18 de março.

“Os consumidores podem vir a alterar as suas preferências em resposta à crise, dando primazia a considerações economicistas a curto prazo em relação às considerações ambientais”, resumem Gonzalo Escribano e Lara Lázaro Touza, do think-tank espanhol Real Instituto Elcano.

A ajudar a essa tomada de decisão a favor de combustíveis mais poluentes, está a queda abrupta do preço do petróleo em plena crise do novo coronavírus — produto de uma guerra no seio da OPEC em torno da imposição de novos limites à produção defendidos pela Arábia Saudita e que contaram com a oposição da Rússia. Resultado: o preço do barril de Brent caiu de valores próximos dos 50 dólares no início março para iniciar uma queda que aterrou nos 20,3 dólares a 1 de abril.

Posto isto, quem quererá nos próximos tempos comprar um carro elétrico se este for mais caro do que um carro movido a combustíveis fósseis?

Resposta: muito poucos.

A não ser que, subitamente, o carro elétrico passe a ser mais barato. E é aí que, num mundo pós-Covid-19, os diferentes estados poderão servir-se do seu crescente poder de regular da economia em contexto de crise para incentivar um consumo mais sustentável para o ambiente.

Também neste contexto se cita Rahm Emmanuel: “Nunca se deve desperdiçar uma crise”.

Para aqueles investigadores do Real Instituto Elcano, os governos podem tomar dois tipos de decisões, que podem ser complementares, nesse sentido.

“Em vez de piorar a tragédia, ao deixar que ela prejudique as transições para as energias limpas, precisamos de aproveitar a oportunidade para acelerá-las."
Fatih Birol, diretor executivo da Agência Internacional de Energia

Primeiro, podem fazer uso da “grande oportunidade” para elevar os impostos sobre os combustíveis fósseis sem causar uma subida do preço final para o consumidor em relação aos valores pré-Covid-19 — uma matemática volátil, já que é apenas possível no caso de o preço do petróleo não subir nos próximos tempos. Depois, podem olhar para a atual crise como uma “oportunidade para moldar um capitalismo diferente” e, através de um “maior papel do Estado para condicionar o apoio público para a conversão para a economia verde e para a descarbonização aos setores que o solicitem”.

Essa mesma medida já foi defendida pelo diretor executivo da Agência Internacional de Energia, Fatih Birol. “Sem medidas dos governos, a energia mais barata leva sempre a que os consumidores a utilizem de forma menos eficiente. Isso reduz o apelo de comprar carros mais eficientes ou de adaptarem as suas casas e escritórios de maneira a pouparem energia. Isso seria uma péssima notícia”, escreveu num texto de opinião publicada em sede própria.

“Em vez de piorar a tragédia, ao deixar que ela prejudique as transições para as energias limpas, precisamos de aproveitar a oportunidade para acelerá-las”, continua FatihBirol, como quem não se esqueceu do incêndio que lhe levar a casa mesmo quando tem uma arma apontada à cabeça. Como tal, pediu, naquele texto de 14 de março, que os países colocassem “as energias limpas no coração dos planos de estímulo económico”.

A julgar pelo resultado, porém, não é visível que o apelo tenha surtido efeito — sinal de que, com ou sem arma apontada à cabeça, a casa deverá continuar a arder.

(Scott Barbour/Getty Images)

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