O filme já vai avançado. Já tivemos vislumbres vários de como é que a partir de um quarto Billie Eilish e o irmão Finneas fizeram canções que hoje são êxitos planetários — às vezes sentados, às vezes esparramados sobre a cama, vestindo o que poucas popstars mostrariam em público (as t-shirts largueironas, os pijamas, os calções confortáveis, o cabelo de andar por casa, os chinelos que não se mostram fora de quatro paredes). E de repente Billie Eilish diz uma coisa que deixa qualquer um a matutar. Di-lo num vídeo de uma entrevista: “Eu nunca me sinto feliz. Porque escreveria sobre coisas que desconheço? Eu sinto as coisas sombrias. Sinto-as com muita intensidade”.
Quem ouvir isto é capaz de coçar pela cabeça. É capaz de puxar por ela, tentar lembrar-se de como foi ser adolescente, essa permanente convulsão interna, esse duvidar constante de si, esse guerrear constante com os outros (tantas vezes só imaginado). Mas a frase tem um efeito forte: “Eu nunca me sinto feliz”.
Tratar-se-á só de Billie Eilish, naquela entrevista antiga, a ser uma adolescente trágica como todos os adolescentes o são de quando em vez? E será que essa aura (ou pose?) trágica, aliada aos seus dotes musicais (aquela voz que parece ter mel quando sussurra, como se às vezes viesse de uma garota em posição fetal, profundamente sofrida, a refugiar-se do mundo nas cantigas) ajuda a explicar porque é que ainda nos ecoam nos ouvidos e na cabeça os gritos histéricos que ouvimos na Altice Arena em 2019, sinais de uma devoção raramente vista?
Não é afinal só “Billie” a ter o seu momento trágico-juvenil, a que todos temos direito. Até porque perto do fim de “Billie Eilish: o mundo está um pouco turvo”, filme que está disponível há cerca de uma semana na Apple TV+, ouvimo-la recordar o seu passado, neste caso os seus 14 e 15 anos: “Tinha lâminas escondidas e pensos escondidos num cantinho do meu quarto. Andava sempre com pensos nos pulsos. Trancava-me, literalmente, na casa de banho e fazia-me sangrar porque achava que merecia”. E vemos as paredes em que cresceu, a sua pequena casa íntima que é o quarto da casa de família em Los Angeles onde passou a adolescência decorada a escritos trágicos: “Uma sensação intensa de um fim absoluto”, “dó até quando não dói”, “aconteça o que acontecer, estarei sempre danificada”.
O filme não tenta escavar muito a fundo na cabeça de Billie Eilish, não tenta perceber de onde é que tudo isto vem, o que é que a levava a mutilar-se em miúda, o que é que a levou a encarar a vida como uma experiência profundamente incompetente na tarefa de lhe oferecer alegrias – o que talvez faça algum sentido, porque nem é sempre fácil explicar porque somos como somos, porque nos inclinamos para certo modo de ser e não para outro – mas tem tudo para deliciar os interessados no fenómeno e ainda mais os seus fãs acérrimos.
Quando dizemos que tem tudo, tem mesmo tudo. Desde logo tem bastante tempo: ultrapassa as duas horas, o que num tempo de “singles” e “minisséries” é quase uma Odisseia. Tem revelações íntimas de que ninguém esteve a par – por exemplo, que Billie Eilish teve um namorado chamado “Q” que aparece no filme (a relação entre os dois, que já acabou, é aliás amplamente mostrada e abordada, tendo um peso relevante no documentário). Tem uma espécie de best-of dos momentos marcantes na curta carreira de Billie Eilish, da conquista dos Grammys ao lançamento do seu popularíssimo álbum de estreia, dos concertos mais pequenos às atuações em arenas e à primeira vez no imponente e assustador Coachella. E tem o lado íntimo que qualquer bom fã adora e que qualquer curioso não enjeita: uma rapariga a ser acordada pela mãe que lhe leva à cama a notícia de que foi nomeada para seis Grammys ainda antes de fazer 18 anos, uma rapariga a tentar alinhavar uma canção testando ideias e experimentando cantar “I’m a bad guy”, uma pós-adolescente popstar a tentar cantar no quarto a canção que fez para o novo 007 e a temer estar a espalhar-se ao comprido, uma cantora antes da fama assaltada por pequenas dúvidas e medos e inquietações.
É claro que a aura trágica (mas também a imagem de esquisóide, de anti-normal, de anti-arrumadinha) de Billie Eilish tem aqui um papel decisivo. A dada altura, entre a perspicaz análise sociológica e o desejo enternecedor de que a sua filha não seja assim tão diferente da maioria dos miúdos, ouvimos a mãe de “Billie” defender que há uma nova geração de deprimidos, de miúdos atolados em informação que até para adultos é depressiva e difícil de assimilar, de rapazes e raparigas que se confrontam com problemas tão insignificantes quanto uma absoluta incerteza de futuro, poucas oportunidades de trabalho, sensação de que terão uma vida pior e mais medicada do que a dos pais, ascensão de extremismos e trincheiras digitais, culto de imagem e pressão de vidas enfabuladas nas redes sociais. Não é que a música da filha seja “deprimente” como se diz, aponta a mãe — os miúdos é que “estão deprimidos”.
É evidente que Billie Eilish é também um produto disso, que – embora hoje não tenha propriamente de se preocupar com a subsistência mensal (vemo-la rir no sofá do quão surreal é ver-se como “milionária”) – não escapa às ansiedades geracionais de uma data de rapazes e raparigas que graças ao Twitter se apercebem todos os dias do quão distante está o mundo daquilo que gostavam que ele fosse. Ela não é uma pós-adolescente normal e tradicional, mas corporiza como ninguém uma série de coisas — da inquietação etária aos combates a convenções, uma noção de normalidade ou padrões estéticos de beleza ditatoriais – de que a geração de que faz parte se alimenta.
Seria um disparate pintar a geração de Billie Eilish, os atuais adolescentes e recém-adultos, como uma bando de ansiosos-deprimidos sem dissidentes: a sua geração é obviamente, como qualquer outra, feita de gente muito diferente entre si. Mas parece impossível não notar nos silêncios, nas tiradas mordazes, na vulnerabilidade das canções de Billie Eilish por um lado um espelho das e por outro uma reação às ansiedades digitais modernas, ativismos arreigados, provocações língua-de-fora em poucos caracteres. À “Super Sad Generation” que a britânica Arlo Parks (de quem Billie Eilish é fã) cantava em 2019.
Quem quiser perceber estes tempos e uma geração que já cresceu com telemóveis a trocar impressões políticas, feministas e amorosas pela internet pode ouvir as canções de “Billie”: está lá a imensa solidão e o silêncio insuperável da comunicação digital (a melancolia pop-eletrónica impregnada de silêncios que já se ouvia por exemplo nos The XX), ouve-se ali a sensação de que há uma permanente festa acelerada e movida a speeds algures no mundo – mas também a de que estamos todos movidos a Xanax a assistir a essa festa mais do que a participar nela, incapazes de acompanhar a velocidade com que tudo acontece. Que a EDM, a pop eufórica e a festa musical mais auto-celebratória descansem em paz, os tempos são agora outros. E Billie Eilish se não é “A” voz da sua geração, é certamente a mais marcante e ouvida das muitas que a compõem.
A certo ponto de “Billie Eilish: o mundo está um pouco turvo”, vemos a rapariga sentada a trabalhar até que é interrompida pela mãe. Ora esta mãe apresenta-se perante as câmaras como uma mãe-modelo, diríamos quase mãe-galinha, a progenitora que se derrete ao falar da filha, que se emociona ao falar da filha, que está sempre presente, que fica perturbada por estar ao telefone e não conseguir falar com a miúda antes desta partir para a primeira viagem sozinha a conduzir (ia para casa de uns amigos). Mas toda a gente que tem mães-modelo sabe que não é isso que as faz compreenderem por inteiro os filhos (alguém se compreende, mesmo?), que não é isso que as faz não fazerem as perguntas erradas.
O que a mãe de Billie Eilish pergunta é: “Vais ser tão sombria com esta música?”. Na “música” em causa, Billie cantava sobre o desejo de saltar de um telhado, de se atirar (isto é, de injetar na sua vida alguma adrenalina e alguma tragédia reais, que não existam só na sua cabeça). É claro que isto pode soar preocupante a uma mãe, mas Billie despacha a coisa com uma clareza desarmante: “Dizê-lo é melhor do que fazê-lo” e é cantar isto e dizer isto sem desfaçatez na canção, explica a jovem, que a ajuda a não experimentar pôr o desejo em prática.
As origens, a internet e uma família que era “uma canção grande como o raio”
O começo de todo este fenómeno é por si só uma história estupenda, o arquétipo do velhíssimo sonho americano a cruzar-se com a vida de uma adolescente de 13 anos. Resumindo a coisa com algum simplismo: digamos que a narrativa em torno do trajeto de Billie Eilish é de que do dia para a noite a internet (isto é, o mundo) descobriu uma miúda a chegar aos 14 anos e fez dela uma estrela. A história tem desde logo um lado utilitário: permite aferir a autenticidade de Billie Eilish, mostrar que ela pode ser uma estrela pop mas não é um produto polido da indústria. Antes pelo contrário, é produto “cru” e dos fãs, das gentes comuns que a descobriram obrigando a indústria a curvar-se humildemente, reconhecendo o que o fã comum já percebera: que a miúda tinha realmente um dom especial e natural para as canções.
Talvez, arriscamos, a tese seja simples de mais, romântica e idílica de mais, talvez tenha contornos e nuances que não conhecemos. Pode ser cinismo nosso, mas se há factos indesmentíveis — uma rapariga de 13 anos publicou uma canção na sua conta de Soundcloud (uma plataforma de alojamento de música), a canção tornou-se muito popular — talvez fosse até ingénuo julgar que conhecemos cada detalhe da ascensão de Billie Eilish a artista reconhecida pela indústria musical, a artista apoiada por uma editora multinacional que a quis pôr a conquistar o mundo.
O que é certo é que essa canção existiu e foi publicada online. Chamava-se “Ocean Eyes” e em março de 2016, quatro meses depois de ser carregada no Soundcloud e tendo Billie Eilish já feito os 14 anos há três meses, chegou ao Youtube com um teledisco. Às 20h15 desta terça-feira, 2 de fevereiro de 2021, tinha sido visto 340.605.836 vezes (isso mesmo: 340 milhões de vezes).
O filme que agora chegou à Apple TV+ não podia deixar de retratar o início da atividade musical, primeiro, e da fama, depois, de Billie Eilish. É aliás a informação que o filme dá ao espectador desinformado logo no arranque, como que contribuindo para o misticismo de uma história épica começada aos 13 anos. No ecrã vemos Billie Eilish em casa, com um microfone, a fazer caretas. Vemo-la com um telemóvel na mão, feliz, enquanto uma voz entusiasmada regozija-se com uma coisa que hoje parece cómica de tão corriqueira: uma canção de Billie Eilish ter passado na rádio (ainda por cima “na rádio mais cool, a KCRW”).
Depois de mostrar uma imagem de um concerto de Billie Eilish em 2018, pouco mais de três anos depois daquela canção inaugural, já com a adolescente na versão cantora-famosa-mas-não-muito — vemo-la a ir cumprimentar fãs às grades, a cantar-lhes o tema de 2017 que entrou na série “13 Reasons Why” (“Bored“) mas ainda longe das arenas e enchentes pop –, o filme foca o início de “Billie”: uma criança e o seu irmão, que se viria também a tornar músico, produtor musical e braço direito da estrelinha da família, a cantarem juntos, perto de um piano. E os pais babados: “Fizeram um dueto, o vosso primeiro dueto”.
A mãe, ficamos a saber pelo filme, ensinou Billie Eilish a escrever canções — o que não abona muito a seu favor, já que a filha dirá mais adulta que odeia fazê-lo (prefere cantar e escolher o que cantar) — e o pai ensinou-a a tocar piano e ukulele. “Billie”, como é tratada pela família, participou em talent shows enquanto crescia. E a música, pelas imagens, estava muito presente. A família era “just one big fucking song”, uma canção grande como o raio, diz agora Billie Eilish.
Um álbum feito no quarto do irmão (e connosco a ver)
Por um lado estão lá momentos-chave que o público conhece: digressões importantes, concertos marcantes, o álbum de estreia que foi um sucesso estrondoso. Por outro, estão ligações implícitas entre canções — maioritamente mostradas ao vivo, em interpretações de Billie Eilish em concertos — e a vida pessoal da protagonista, que a equipa que rodou o filme também acompanhou. Não ficamos com a certeza de que determinadas canções sejam inspiradas em determinadas experiências de vida relatadas no filme, porque ninguém confirma nem o afirma para as câmaras, mas a montagem torna difícil pelo menos não imaginar relações entre momentos da vida de Billie Eilish e as suas letras.
Na verdade, isto é possível porque o material que temos em “Billie Eilish: o mundo está um pouco turvo” é de primeira água, uma mina de ouro para o espectador. É como se de repente tivéssemos uma janela que funciona como máquina do tempo, permitindo-nos espreitar a par e passo os momentos marcantes do passado de Billie Eilish: as chatices pessoais, os momentos enternecedores em família, as canções (batidas e letras) a construírem-se descontraidamente, take a take no quarto onde Finneas e Billie gizaram o esqueleto dos temas que os tornariam a dupla de irmãos mais forte da pop desde os manos Gallagher (que tinham uma relação bastante menos harmoniosa).
De tudo o que o filme permite ao espectador espreitar de entre o passado de Billie Eilish e Finneas, poucas coisas haverá mais importantes do que a feitura das canções. Para um ouvinte que se tenha encantado com When We All Fall Asleep, Where Do We Go?, o álbum de estreia de Billie Eilish (editado em 2019), ter acesso à autora e ao irmão descontraidamente no quarto a fazerem e discutirem as canções é um trunfo forte da longa-metragem. Vemo-los por exemplo aos dois logo de início, ela de t-shirt, calções e meias cor-de-rosa a cantar:
What do you want from me?
Why don’t you run from me?
(…)
When we all fall asleep, where do we go?
Billie Eilish parece estar só a fazer uma experiência qualquer, mas na verdade está a interpretar um esboço do que se viria a tornar “Bury a Friend”. Quando a vemos no filme a cantar o tema que incluiria no disco, sentada em cima da cama do quarto do irmão, com um microfone montado e phones nos ouvidos, Billie Elish está entusiasmada. Tenta encontrar o modo certo de cantar, entusiasma-se com a batida (“that’s dope”). O irmão pergunta-lhe, presumivelmente sobre o instrumental de que se encarregou (como habitual): “Está fixe, não está?” E Billie responde: “Genial”. A olhar para a câmara, ela mostra o caderno e “o desenho que fiz desta canção, desenhei-a”. Vê-se um monstro de boca aberta e dentes afiados, a simbolizar os monstros debaixo da cama que todos guardamos na cabeça.
Também interessantes são as projeções de futuro que batem certo com a realidade que acabámos todos por conhecer: Billie Eilish a dizer que queria “fazer coisas com asas” (fez mesmo: veja-se o videoclip de “All The Good Girls Go To Hell”), que queria futuramente “fazer algo em que bebo um líquido preto, depois os meus olhos ficam pretos e eu sangro líquido preto dos olhos” (ora reparem no videoclip de “When the party’s over”).
Em grande medida, o filme acompanha o processo de feitura do disco que mal saiu (na primeira semana) chegou a número um de vendas e “cliques” em 37 países em simultâneo: temos as dúvidas e o entusiasmo, os receios e as convicções, os avanços e recuos. Por ter sido o êxito que lhe deu o trono da pop, “Bad Guy” tem de ser mencionada: vemos Finneas sentado ao comutador e Billie Eilish sentada na cama do irmão, a “inventar coisas à toa”. E se cantasse, pergunta ela, “you think you’re such/so a criminal” E se a canção tivesse um destinatário a quem cantasse uma farpa, algo como ‘pensas que és mesmo um bad guy’, mas na verdade “o que ficava no ouvido”, propõe Billie, “era: but I’m the bad guy“?
Também vemos em dueto os irmãos a cantarem “I Love You” e Finneas a ser um miúdo parvo (com todo o direito a sê-lo) com o pai, que comentara que aquela parecia uma canção do Shrek mas ainda assim diferente e a quem Finneas contrapôs: “Quem não escreve músicas lembra-se sempre de outras músicas” (se estás cá é porque o homem te deixou, ó artista!). E ouvimos os manos a tentarem cantar “My Strange Addiction”, com Finneas a apresentá-la como “uma batida fatela, mas…” e Billie Eilish a ripostar: “Até é gira”.
Um dos momentos mais interessantes e que nos sugere que este filme não é um frete, arriscando-se a entrar em território sensível, acontece quando em pleno processo de fazer o disco ouvimos as dúvidas da pessoa aparentemente mais preocupada com o maior ou menor sucesso do álbum, aquele que sem o dizer explicitamente à irmã ficou encarregue de garantir que a música que fazem juntos se torna um êxito: Finneas. Ouvimo-lo dizer que está a tentar escrever a canção simultaneamente “melhor e mais acessível” que já fizeram. Vemo-lo pensar num plano B caso um tal de Riback diga que “não ouve nada de grande sucesso [comercial] no disco” — o tal Riback é Sam Riback, o homem responsável pela prospeção de talento e desenvolvimento artístico e comercial das bandas e músicos da Interscope Records, a editora de Billie Eilish. E ouvimo-lo a ser o tipo responsável e sem queixumes quando Billie Eilish lamenta que o álbum tenha de estar inteiramente pronto e terminado até ao dia do seu 17.º aniversário.
Mais inesperado do que tudo isto: ouvimos Finneas, globalmente tratado ao longo do filme como um grande criador e produtor de canções (talvez sem o talento para as interpretar e para criar uma persona musical única da irmã) confessar para as câmaras uma coisa que se calhar já não diria hoje. Diz ele: “Sinto-me num campo de minas porque sinto que me disseram para escrever um sucesso [hit] mas disseram-me para não o contar à Billie. A Billie odeia escrever músicas, em geral. Está tão consciente da sua persona [identidade] na internet que acho que tem imenso medo de que qualquer coisa que faça seja odiada. Acho que a perceção dela é que quanto mais famosa uma coisa for, mais odiada será”. E ainda vemos Finneas assumir que um dos seus objetivos é que antes das canções chegarem ao público e convencerem os ouvintes, cheguem a um executivo da Interscope e este pense: “Wow, disse-lhes para escreverem um sucesso e para mim isto é… bom… um sucesso da porra!”.
A esta revelação de Finneas segue-se o momento de maior tensão familiar em todo o documentário, uma altura em que Billie Eilish aparece e parece sentir-se abespinhada por estarem a falar da sua música com ela ausente. A mãe tenta introduzir algumas palavras com cuidado, com uma dose de calculismo: ainda faltava escrever algumas canções para o disco e talvez o irmão pudesse “ajudar” Billie a fazer “algo que gostes mas que seja mais convencional, acessível”. A cara da pós-adolescente contorce-se numa careta e havia coisas a dizer sobre esta ideia de música “acessível”: “Estão a falar de algo que sinto que sempre vimos como algo negativo, em que as músicas são para todos e todos se conseguem relacionar. Não gosto disso. Estão a dizer-me que devíamos escrever músicas para todos”.
Isto pode parecer estranho vindo de uma rapariga que aos 12 anos chorava baba e ranho por Justin Bieber, cujas pernas tremeram no momento de (já figura pop de proa) o conhecer e o abraçar, que gravou com o ídolo uma versão nova de “Bad Guy” e que no documentário não poupa nas declarações de devoção à pop star que aparentemente acaba por se tornar seu amigo (ligando-lhe em videochamada quando Billie Eilish vence uma catrefada de Grammys). Mas está lá, sem embelezamentos. Como o estão os momentos de tensão e desencontro com o então namorado “Q” — que passa por namorado ausente, que pouco lhe ligava e que tinha os seus próprios conflitos internos — e o choro e soluços a cantar “I Love You” num concerto, um momento que no filme surge depois da protagonista explicar o fim da relação: “Não estava feliz. (…) Havia uma falta… de esforço, acho. E eu disse-lhe: meu, não tens amor suficiente sequer para te amares a ti mesmo. Não me podes amar, meu. E não amas, só achas que sim. (…) Não quero… não consigo consertá-lo. Não consigo, já tentei”.
Também vemos a mãe de Billie a vestir o fato de progenitora, dizendo que a filha tem de se preocupar mais em ser genuína e dizer o que pensa (no caso, sobre álcool e drogas) do que em calcular cada palavra pensando se não poderá futuramente trai-las. Reparamos em Billie Eilish nervosíssima no Coachella, triste depois do concerto por “Q” não ir ter com ela e por se ter esquecido de uma letra mas que fez uma versão ao vivo estupenda de “When The Party’s Over”. E percebemos que isto de fazer dos concertos enérgicos vida é de uma dureza extrema, que provoca lesões: são disso prova o gelo permanente na perna, os exercícios constantes, a fisioterapia para recuperar.
Vemos Billie Eilish ter um ataque de tiques, ela que sofre da síndrome de tourette. Estamos lá quando recebe o automóvel dos seus sonhos como prenda, quando tira a carta, nos concertos mais pequenos e nos momentos de aclamação popular. Sem que ninguém nos veja, aparecemos como penetras na sua festa de 18º aniversário. Regozijamo-nos com ela quando acaba o álbum, rimo-nos quando conhece Orlando Bloom sem se aperceber que é ele e percebemos o aviso que Katy Perry lhe faz sobre os próximos anos que terá: serão loucos. (Pausa para respirar) Maravilhamo-nos com um discurso do pai, cheio de alertas sobre a filha não poder acelerar prego a fundo só porque tem carta de condução. Ouvimo-la em casa e só com um microfone e um teclado a atacar “Listen Before I Go”. Vemo-la agradecer os cinco Grammys vencidos no primeiro ano em que foi nomeada. E ouvimo-la dizer “para ser honesta, nunca pensei chegar a esta idade” mas também, em contraponto, “a vida corre-me bem”.
Com este filme, passamos também nós a fazer parte do passado de Billie Eilish. Mesmo que sejamos só uma mosca manobrada pelo realizador R. J. Cutler. Mesmo que só vejamos o que ele quer num filme que teve como produtora… a editora discográfica de Billie Eilish.