“When you hear talk of devaluation, spit in the eye of whoever is talking about it”. A frase é do presidente do Banco Central da Rússia em 1998, Sergei Dubinin, em resposta aos oligarcas russos com interesse no gás e no petróleo que pediam uma desvalorização do rublo para contrapor à queda pronunciada nos preços do petróleo e do gás (barril de petróleo estava a custar 11 dólares) e numa tradução bem mais simpática que a sua versão literal dizia qualquer coisa como “não lhes deem ouvidos”.
A forte desvalorização do rublo no último ano – já caiu mais de 50% face ao dólar –, em especial a queda dos últimos dias, está a ressuscitar as memórias da crise de 1998 que levou a Rússia a entrar em incumprimento na sua dívida. Uma queda abrupta nos preços do petróleo, a desvalorização expressiva do rublo, fragilidades na economia em geral, são alguns dos pontos em comum.
17 de agosto de 1998: o Governo russo anuncia um conjunto de medidas para impedir a escalada da crise, estando entre elas: a desvalorização do rublo aumentando os limites entre os quais a moeda podia flutuar, o incumprimento do pagamento de dívida de curto prazo, Bilhetes do Tesouro, assim como de dívida pública a mais longo prazo em rublos e uma moratória de 90 dias nos pagamentos dos bancos comerciais a credores externos.
Este é o dia frequentemente apontado pelos economistas como o ponto de não retorno no caso da crise russa de 1998. Mas o que levou a esta situação? A Rússia vinha de um período de abertura iniciado na Perestroika e em 1997, pela primeira vez desde a formação da Federação Russa e (consequente fim da União Soviética), viu a sua economia crescer.
Mikhail Gorbachev liderou a União Soviética de 1985 a 1991 e foi responsável pelo período reformista conhecido por Perestroika
Boa parte das razões para as melhorias esteve no profundo processo de reformas económicas e na capacidade da Rússia de adiar o pagamento de dívida pública, de quase 60 mil milhões de dólares, que herdada ainda da antiga União Soviética. Moscovo foi aceite no Clube de Paris como país credor e beneficiou dessa credibilidade com um aumento da confiança dos investidores e do aumento no rating do país. As limitações começaram a diminuir, os bancos russos começaram a pedir mais dinheiro emprestado no estrangeiro e os investidores estrangeiros investiram mais em dívida pública russa.
Alguns dados económicos suportavam este otimismo: as contas externas estavam a melhorar em direção à sustentabilidade, as relações com o Ocidente melhoravam (o que significava também mais apoio financeiro do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional), a inflação reduzia-se para níveis comportáveis, de 131% de 1995 para 11% em 1997, a economia ia crescer 0,8% em 1997, o barril do petróleo estava nos 23 dólares por barril, um valor elevado para a altura (o petróleo era um principais produtos exportados pela Rússia) e a taxa de câmbio do rublo face ao dólar estava limitada a uma margem estreita ente os cinco e seis rublos por dólar.
No entanto, apesar das melhorias, muitos problemas permaneciam ainda. Por exemplo, em média, os salários reais pagos na economia russa eram, na verdade, menos de metade daquilo que era pago em 1991, seis anos antes, e só 40% dos trabalhadores recebiam por completo o seu salário e a horas. O investimento estrangeiro era muito baixo e o défice orçamental continuava elevado. As receitas fiscais eram muito baixas, muito por culpa de um sistema que repartia as receitas entre o Governo federal e os governos regionais, o que criou incentivos para que as regiões ajudassem as empresas a esconder parte dos lucros para receber em troca uma transferência direta para o governo regional.
Com estes problemas, a Rússia era, ainda assim, admitida no Clube de Paris (onde as maiores potências discutem o perdão de dívida de países subdesenvolvidos). A entrada dava-lhe grande credibilidade, mas os pressupostos da sua adesão eram questionáveis: a Rússia era credora de países como Cuba, Vietname ou Mongólia, por dívidas à antiga União Soviética.
O regime de Fidel Castro, na foto com Nikita Khrushchev, foi muito apoiado pela URSS
O aumento do endividamento dos bancos russos, graças a esta credibilidade extra, foi considerável: em 1994 representava apenas 7% do total dos seus ativos, em 1997 passou a ser de 17%.
Mais importante, ainda, o Governo russo já esperava um aumento considerável na amortização de dívida pública nos anos imediatamente seguintes, quando venciam empréstimos do FMI. Para aguentar a fatura com a dívida, o Governo estava a contar com um crescimento económico na ordem de 2% em 1998. O resultado final foi bem diferente. Em 1998, a economia russa sofreu uma recessão de 4,9%.
O problema foi que, alguns meses antes, no verão de 1997, um conjunto de países (em especial a Tailândia, a Indonésia e a Coreia do Sul) no sudeste asiático sofreram uma crise em muito semelhante ao que viria a acontecer na Rússia. Em resposta a um ataque especulativo ao rublo, o banco central da Rússia perdeu, em novembro desse ano, quase seis mil milhões de dólares a tentar defender a moeda.
Protestos na Coreia do Sul durante a crise asiática
Ao mesmo tempo, os investidores estrangeiros em dívida de curto prazo russa começaram a defender-se da possibilidade de uma desvalorização do rublo (como aconteceu antes nas economias asiáticas) comprando contratos forward com o banco central da Rússia que lhes permitiam trocar rublos por moeda estrangeira, no futuro, a um preço pré-definido, independentemente das condições que estivessem a ser praticadas no mercado.
A este cocktail explosivo juntou-se um valor substancial de potenciais perdas dos bancos russos que estavam escondidos fora dos seus balanços, que eram essencialmente estes contratos forward com investidores estrangeiros que chegavam aos seis mil milhões de dólares apenas na primeira metade de 1998, e, por fim, no final de 1997 os preços do petróleo e gás começaram a cair.
Investidores começam a tremer
A incerteza começou a deixar os investidores receosos que o Governo russo não fosse capaz de honrar os seus compromissos. O Governo ainda tentou promover um ambiente mais favorável ao investimento com uma reforma do sistema fiscal, mas partes cruciais dos novos códigos fiscais, que iriam dar uma muito necessária receita ao Estado, caíram no Parlamento.
A situação começou então a piorar. O Governo russo pediu ajuda financeira ao FMI, mas não conseguiu chegar a acordo com o fundo. O Presidente da Rússia, Boris Yeltsin, decidiu demitir o Governo em março, nomeando para primeiro-ministro Sergei Kiriyenko, de apenas 35 anos. A desconfiança em torno do inexperiente primeiro-ministro levou a que a Duma demorasse um mês a confirmá-lo e isso só aconteceu depois de Boris Yeltsin ameaçar dissolver o Parlamento.
Boris Yeltsin liderou a Rússia entre 1991 e 1999
Foi então que uma série de mal-entendidos provocou ainda mais problemas. Quando, em maio, o governador do banco central da Rússia alertou o Governo do risco de uma crise de dívida nos três anos seguintes, os jornalistas presentes na reunião entenderam o alerta como uma manifestação de intenções do banco central em direção a uma desvalorização do rublo. Seguiu-se o primeiro-ministro a dizer, em entrevista, que o Governo estava “bastante pobre”. O que o jovem primeiro-ministro se esqueceu foi de falar sobre os planos que o Governo tinha para reduzir a despesa e aumentar a receita.
Seguiu-se, então, um episódio caricato, que prejudicou ainda mais a visão dos investidores na Rússia, quando um dos mais altos responsáveis por assuntos económicos internacionais dos Estados Unidos lhe viu negado um encontro com o primeiro-ministro. Tratava-se de Larry Summers, que na altura ocupava o cargo de secretário de Estado Adjunto do Tesouro. Um assessor inexperiente achou que o título de Larry Summers não era digno de um encontro com o primeiro-ministro russo.
A queda
A 18 de maio, as taxas de juro da dívida russa já atingiam 47%. O banco central da Rússia aumentava a taxa a que emprestava aos bancos de 30% para 50% e, em apenas dois dias, já tinha gasto mais de mil milhões a tentar defender a taxa de câmbio do rublo. Uma semana depois, os juros já ultrapassavam os 50% e a Rússia não conseguiu o financiamento todo de que necessitava num leilão de dívida no mercado.
Foi nesta altura que, com os preços de petróleo a cair para 11 dólares (menos de metade do que se verificava no ano anterior), os oligarcas russos começaram a pedir uma desvalorização do rublo para valorizar as suas exportações de petróleo e gás e o governador do banco central pediu, de forma pouco simpática, para que se ignorassem esses pedidos. A taxa de juro a que emprestava aos bancos subiu de 50% para 150%.
O plano para evitar a derrocada veio tarde e não funcionou. Boris Yeltsin fazia aparições na televisão russa à noite para convocar a elite russa para reuniões no Kremlin onde lhes pedia que investissem no país. O banco central perdia mais cinco mil milhões a tentar defender o câmbio do rublo e, mesmo com a ajuda do FMI, o valor elevado dos empréstimos que tinham de ser pagos em setembro precipitaram a queda.
Boris Fyodorov, ministro das Finanças da Rússia em agosto de 1998
A 13 de agosto de 1998, a bolsa russa, o mercado de obrigações e cambial colapsaram devido aos receios de uma desvalorização do rublo e de um default da dívida. Os juros sobre a dívida pública russa atingiram 200%, a bolsa teve de fechar 35 minutos depois de abrir e as ações perderam mais de 75% do seu valor desde o início do ano.
A 17 de agosto de 1998, o Governo avançou com a desvalorização do rublo, o incumprimento do pagamento de dívida de curto prazo e com uma moratória de 90 dias nos pagamentos dos bancos comerciais a credores externos.
A 2 de setembro de 1998, o banco central decidiu remover os limites à variação da taxa de conversão do rublo para o dólar, o que levou a uma forte depreciação do rublo: em apenas três semanas, o rublo perdeu dois terços do valor em relação à divisa norte-americana.
Por fim, a inflação subiu para 27,6% em 1998 e, mais tarde, para 85,7% em 1999. O brutal aumento nos preços, em especial no que dizia respeito aos alimentos, desencadearam manifestações e protestos em várias cidades. No final de 1998, a economia, em vez de crescer os 2% necessários para pagar a dívida, acabou por sofrer uma recessão de 4,9%.