Irving Rosenbaum foi mandado a Dachau pouco depois de o exército americano lá chegar e se deparar com o horror neste campo de extermínio nazi. Podia ter sido o seu destino. Judeu e natural de Dresden, na Alemanha, acabou acolhido pelos Estados Unidos em 1938, fugido do regime de Hitler. Foi transferido para a unidade de guerra psicológica, depois de ter passado pelo exército americano, porque eram necessários tradutores que dominassem a língua alemã. Naquele dia de 1945 o seu comandante queria que alguém lhe relatasse diretamente o que tinham descoberto na data que ficaria para sempre na História como o Dia da Libertação.
Anos mais tarde, numa viagem de carro, Irving tentou relatar ao filho de 14 anos — que adorava ouvir as histórias do pai sobre o exército — aquilo com que se deparou na altura. Estava a nevar e o rádio tinha-se avariado. Conversavam. “Sabes, fui enviado para Dachau, no dia seguinte à sua libertação”, disse-lhe. Naquela época não se falava muito sobre o Holocausto, mas o adolescente sabia bem do que se tratava: “O que é que viste?”, perguntou-lhe. Confrontado com a pergunta, ele olhou para a estrada. E o filho testemunhou o poder das memórias: os olhos de Irving brilhavam e as lágrimas corriam-lhe pela cara. Estava de boca aberta: “Ele estava a tentar responder-me, mas não conseguia falar.”
Esta foi a primeira vez que Eli Rosenbaum viu o pai chorar. Reconhece, em entrevista à AJC, que o Holocausto também ditou o rumo da sua vida. O seu currículo não mente: foi conselheiro geral do Congresso Judaico Mundial, organização que representa as comunidades e organizações judaicas em 115 países; foi diretor do Gabinete de Investigações Especiais do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, responsável por identificar, desnacionalizar e deportar mais de uma centena de criminosos de guerra nazis. É, atualmente, o Diretor de Estratégia e Política de Aplicação de Direitos Humanos.
Estava prestes a reformar-se, mas o plano teve de ser adiado: aos 67 anos, acaba de ser nomeado pelo procurador-geral dos Estados Unidos, Merrick B. Garland, para criar uma equipa de responsabilização de crimes de guerra para trabalhar com a Ucrânia e com outros grupos internacionais de aplicação da lei depois da invasão russa.
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A nova equipa, avança o americano The New York Times, vai incluir funcionários do Departamento de Justiça e especialistas externos. Além de dar assistência às equipas ucranianas, vai levar a cabo a investigação, liderada por Eli Rosenbaum, de “potenciais crimes de guerra sobre os quais os Estados Unidos possuem jurisdição”, como a morte de jornalistas americanos que estão a fazer a cobertura do conflito, que se iniciou a 24 de fevereiro, com a invasão da Rússia à Ucrânia.
Quem foram os nazis “caçados” por Eli Rosenbaum?
Chamam-lhe o caçador de nazis. A alcunha de Rosenbaum diz muito sobre o trabalho que desenvolveu ao longo da sua carreira. Mas não é que goste dela: “Não é uma expressão da qual eu goste particularmente, porque sugere que esta missão é algo diferente do que é, que é a aplicação da lei. Não estamos envolvidos em caçadas ou qualquer coisa do tipo. Mas estamos há quatro décadas a investigar agressivamente e a tomar medidas legais contra participantes de crimes contra a humanidade da era nazi”.
Foram muitos aqueles que, a seu cargo, foram acusados e deportados por crimes de guerra nazis. Entre eles estão, Josef Mengele, o médico que realizou experiências monstruosas em Auschwitz; Alexander Lileikis, o chefe da força policial colaboracionista lituana durante a ocupação alemã de Vilnius; ou Arthur Rudolph, o projetista dos foguetes V2, conhecido como um “mestre de escravos” nazi.
Entre os detidos está também o caso de Kurt Waldheim, um dos mais mediáticos da sua carreira. Rosenbaum estava nesta altura no Congresso Judaico Mundial, a cargo da investigação que viria a expor o então ex-secretário geral das Nações Unidas, entre 1972 e 1981, e presidente da Áustria entre 1986 e 1992 (voltou a ser reeleito, mesmo depois da polémica). O político nunca chegou a ser acusado, mas foi proibido de entrar nos Estados Unidos, que concluiu que este tinha sido membro dos serviços de informação do regime nazi, responsável por interrogatórios e massacres brutais. Sobre este caso, Eli Rosenbaum assinou “Betrayl: The Untold Story of the Kurt Waldheim Investigation and Cover-Up”, livro que pretendia provar a ligação entre o político e o regime de Hitler, distinguido pela “Notable Books of 1993”, pelo jornal The New York Times e pelo The San Francisco Chronicle.
Falta ainda falar daquele que poderá ser o último caso do Departamento de Justiça norte-americano contra um criminoso de guerra nazi: no início de 2020, foi Rosenbaum quem liderou a investigação a Freidrich Karl Berger, um ex-soldado alemão que terá sido guarda de um sub-campo de concentração, em Neuengamme, tendo também patrulhado a devastadora Marcha da Morte, no final da Segunda Guerra Mundial. O homem, então com 94 anos, residente no estado americano do Tennessee, onde constituiu família e trabalhou como fabricante de aparelhos para desencapar fios elétricos, foi deportado, no ano seguinte, para a Alemanha — onde continuava, aliás, a receber uma pensão pelo seu serviço de guerra, contou pela altura o The New York Times.
Sobre o caso, relatou que para a revelação da verdadeira identidade de Berger contribuiu a descoberta mais de dois mil cartões de identificação alemães — que, viria a perceber-se depois, pertenciam aos guardas do sistema de campos de concentração. Foram encontrados em 1950 num navio de carga alemão, que tinha sido bombardeado pela Força Aérea Real Britânica, pouco antes do fim da guerra, a 3 de maio de 1945. A informação foi trabalhada pela polícia alemã e, desta forma, puderam ser identificados os mais de 1.500 guardas. “Descobriu-se que dos mais de 1500, talvez apenas dois estivessem vivos — um deles nos Estados Unidos, o Senhor Berger.”
“Quando comecei como estagiário de verão em 1979, nunca imaginei que isto se tornaria no trabalho da minha vida”
Nascido a 8 de maio de 1955, filho de Irving (que veio a tornar-se no presidente da antiga S.E. Nichols Corp) e Hanni, Eli Rosenbaum cresceu em Westbury, em Nova Iorque. Formou-se em 1976 pela Wharton School, na Universidade da Pensilvânia, a mesma instituição onde completou o seu MBA. Entrou para o Departamento de Justiça dos Estados Unidos logo no início da sua carreira — tinha acabado de se graduar na Escola de Direito de Harvard, em 1980.
Mas tudo começou um pouco antes, num estágio de verão no gabinete que viria a dirigir: “Estávamos sobrecarregados com as investigações. Tínhamos herdado a responsabilidade do antigo Serviço de Imigração e Naturalização, depois de o Procurador-Geral lhes ter retirado [essa responsabilidade]”, conta na mesma entrevista ao AJC. “Quando comecei como estagiário de verão em 1979, nunca imaginei que isto se tornaria no trabalho da minha vida.”
Foi aqui que permaneceu até 1984, ano em que deixou o Departamento de Justiça para trabalhar no escritório de advocacia Thacher & Bartlett, em Manhattan, tendo assumido depois o cargo de conselheiro geral do Congresso Judaico Mundial. Em 1988, regressou ao Gabinete de Investigações Especiais do Departamento de Justiça, tendo sido nomeado, primeiro, diretor adjunto, ocupando, depois, o cargo de diretor.
Nestes anos a investigar criminosos de guerra lembra a importância do trabalho dos historiadores — cujas informações vieram a revelar-se mais preciosas do que as dicas deixadas por outros governos (chegavam sobretudo da União Soviética, cuja intenção era sempre dúbia). “Éramos a única entidade de aplicação da lei em todo o hemisfério que tinha o seu próprio grupo de historiadores”, contou. “Eram as pessoas que podiam encontrar as agulhas nos palheiros.”
O resultado foi o de uma lista com mais de 70 mil nomes de suspeitos. Um por um, cada uma destas identidades foi analisada, considerando os registos de imigração nos Estados Unidos e, às vezes, outros documentos. “Analisamos esses nomes e obtivemos um número surpreendente de correspondências, Nessa altura, a investigação começou a sério.” O Gabinete de Investigações Especiais do Departamento de Justiça acusou 130 pessoas de crimes de guerra. 109 destes casos foram dirigidos por Eli Rosenbaum. Agora, o seu papel vai ser o mesmo, o terreno é que muda: passa a ser na Ucrânia na mais recente guerra da Europa.