Os alegados 14 milhões de euros que ofereceu a Ricardo Salgado, como forma de agradecimento às portas que o banqueiro lhe abriu para prosperar em Angola, são apenas um entre vários gestos que teve para com diversos empresários e políticos que têm sido investigados nos últimos anos. “Zé Grande”, como é conhecido o misterioso empresário do ramo da construção, foi assim apelidado não por mero acaso. José da Conceição Guilherme, que nunca aparece publicamente, chegou a oferecer um almoço ao autarca de Oeiras, Isaltino Morais, por altura do seu aniversário – que lhe custou 3400 euros. Era este o valor aproximado, aliás, dos cabazes que oferecia pelo Natal. Uma carrinha cheia deles. À frente de uma mão cheia de empresas, o empresário até “deu” o seu escritório ao ex-ministro José Sócrates, para a sede de uma empresa que teve com Armando Vara.
Uma das suspeições que recaem sobre Ricardo Salgado será a prenda de milhões que o empresário lhe deu. Quando testemunhou, em dezembro de 2012, o banqueiro justificou aquele valor como uma “liberalidade”. Segundo o Negócios, esta oferta em dinheiro teria sido um agradecimento. Salgado conhecia José Guilherme “há décadas” e este veio pedir-lhe conselhos para investir no Leste. O banqueiro tê-lo-á aconselhado a virar-se para Angola e até lhe deu contactos. E é por aqui que o empresário tem prosperado nos últimos anos.
Num interrogatório feito a um gestor da Akoya – a financeira suíça que está no centro da investigação Monte Branco – Nicolas Weber Figueiredo, detido em maio de 2012, confirmou a ligação do empresário a Salgado. Segundo a revista Sábado, Salgado tinha contas no Credit Suisse em nome da “entidade Savoices”, que recebeu “fundos com origem em contas controladas” de uma outra chamada Solutec. Por sua vez, os beneficiários da Solutec eram José Guilherme e o seu filho Paulo. O gestor explicou que estas sociedades seriam usadas para “transações financeiras no exterior de Portugal suspeitas de fuga ao fisco”.
Os “fundos” da Solutec enviados para a Savoices teriam origem em contas bancárias da família Guilherme abertas no BESA e cujos pagamentos resultavam de negócios em Luanda, designadamente um empreendimento situado na zona de Talatona, “ao que se recorda designado Dolce Vita”, prossegue a Sábado. Nicolas Figueiredo confirmou que “os movimentos financeiros (…) entre a Solutec e a Savoices poderão ter atingido o montante de cerca de 14 milhões de euros”.
Mas esta não foi a primeira vez que o nome de José Guilherme apareceu associado a negócios investigados por suspeitas de corrupção. Durante dez anos o Ministério Público (MP) investigou alegadas irregularidades na câmara da Amadora. O processo acabou arquivado em finais de 2012. E foi no âmbito deste processo que a Polícia Judiciária (PJ) escutou, entre 2003 e 2005, José Guilherme e percebeu que as suas ligações a políticos e empresários decorriam ao mais alto nível.
José Guilherme, natural de Abrantes e residente na Amadora, onde está à frente de mais de uma dezena de empresas (algumas já extintas), foi escutado a falar com o antigo ministro-adjunto de Durão Barroso, José Luís Arnaut, com quem se encontrava pessoalmente no edifício da presidência do Conselho de Ministros. Pedia-lhe ajuda para uma licença de um couto de caça. Ao Diário de Notícias, que teve acesso ao relatório final da investigação, Arnaut admitiu ser amigo de José Guilherme e da sua família e disse nunca ter sido notificado de qualquer processo. Garantiu que nunca tomou qualquer decisão que lhe dissesse respeito.
Um dos outros contactos que a PJ escutou foi com o antigo secretário de estado da Agricultura e presidente da Câmara de Gouveia (atualmente da Guarda), Álvaro Amaro. Este terá tentado, através de Luís Marques Mendes, convencer a então presidente da câmara de Oeiras, Teresa Zambujo, para aprovar um projeto nos terrenos que comprara da Fundição de Oeiras.
Aliás, a propósito da discussão sobre o índice de construção no concelho de Oeiras, o Público deu conta em 2008 de uma reunião ocorrida, quatro anos antes, com Teresa Zambujo. Presentes estavam o dono dos terrenos da Fundição de Oeiras, o construtor civil José da Conceição Guilherme, bem como José Manuel de Sousa, presidente da empresa do Grupo Espírito Santo que gere o Invesfundo, o fundo de investimento fechado – que acabou depois por adquirir os terrenos.
A 3 de julho de 2005 o jornal Expresso publicava uma manchete onde dizia que o ex-autarca Isaltino Morais e alguns empresários de construção civil estavam a ser investigados. Entre eles estaria José Guilherme. O processo levou o autarca a sentar-se no banco dos réus, em Sintra, por suspeitas de corrupção. Numa das sessões, a ex-secretária e ex-chefe de gabinete de Isaltino falou na relação do autarca com os empresários locais. Um desses empresários, José Guilherme, chegou mesmo a pagar um jantar de aniversário do presidente camarário na Fortaleza do Guincho, que custou 680 contos (3 400 euros), disse na altura a principal testemunha de acusação, Paula Nunes. No final da sessão, o presidente da Câmara de Oeiras afirmou que “todas as testemunhas têm dito a verdade e é com a verdade que se faz um julgamento”, considerando que Paula Nunes não foi uma exceção.
No processo que investigava a autarquia da Amadora, e que foi arquivado, os inspetores da PJ referem ainda que José Guilherme e o filho chegavam a oferecer mais que um cabaz de Natal por pessoa, a autarcas e a funcionários de câmaras. Os cabazes eram comprados no Largo do Rato, em Lisboa, e custavam entre três mil e quatro mil euros.
O dinheiro não é um problema para José Guilherme. Neste mesmo relatório policial, José Guilherme é escutado a pedir bilhetes do Benfica ao já falecido Eusébio. “Eu não me importo que seja duzentos, seja aquilo for”. Alguns bilhetes foram depois oferecidos a Joaquim Raposo, então presidente da câmara da Amadora.
Nesta altura José Guilherme já tinha ligações à SAD do Benfica. A história já foi contada pelo Correio da Manhã e envolve, mais uma vez, o BES. Segundo aquele jornal, quando Manuel Vilarinho precisou, em 2001, de fazer um aumento de capital da SAD, os construtores José Guilherme e Vítor Santos avalizaram a operação, que foi conduzida pelo Banco Internacional de Crédito, entretanto fundido por incorporação com o Banco Espírito Santo (BES), em 2006. Atualmente o empresário detém 856 900 ações, o que equivale a 3,28% da SAD das águias.
A PJ traçou também ligações ao ex-deputado Duarte Lima. Em causa a história de um piano que o construtor comprou para que o político e advogado oferecesse a um jovem promessa da música de nome Domingos António. O caso ocorreu em março de 2004 e também foi apanhado nas escutas, como contou o Jornal i depois de o processo ser arquivado anos depois. Duarte Lima terá pedido que o ajudasse a adquirir o piano para oferecer ao rapaz. A PJ considerou que “Zé Grande”, como constatou que era apelidado José Guilherme, quis “agradar” ao deputado. O contexto político, diz a PJ, “era, e continuou a ser, bastante favorável a Duarte Lima, dada a sua proximidade ao novo primeiro-ministro [Pedro Santana Lopes]”.
Outra das ligações que a PJ estabeleceu durante as escutas foi ao próprio antigo primeiro-ministro, José Sócrates. A 16 de março de 2003, o filho de José Guilherme foi ter com José Bernardo Pinto de Sousa (primo de Sócrates) a uma dependência do BES para lhe entregar “um saco que ali se encontrava guardado há seis meses de uma conta antiga de José ou de Paulo”, revelou a PJ. Pinto de Sousa foi referenciado no processo Freeport por suspeitas de ter recebido dinheiro.
José Guilherme terá também beneficiado, em 2005, com a alteração dos limites da Zona de Proteção Especial (ZPE) de Moura/Mourão, no mesmo dia em que foi alterada a ZPE de Alcochete – o que deu origem ao chamado processo Freeport. É no município de Moura que José Guilherme explora a zona de caça turística da Herdade dos Arrochais por despacho publicado em Diário da República em 2007, era Sócrates primeiro-ministro. Aliás, José Guilherme não se dedica só à caça por aqui (onde acabou por ser visitado por inspetores da PJ). O empresário está agora a dedicar-se à produção de vinho e até já deu nome a algumas garrafas, que têm feito sucesso em Angola. Por cá, só podem comprar-se através da internet.
As suas ligações a Sócrates vão mais longe. José Guilherme é gestor de uma série de empresas na zona da Venteira, Amadora. E foi numa delas que teve sede, em 1989, a empresa Sovenco – Sociedade de Venda de Combustíveis, da qual José Sócrates, Armando Vara e Jorge Silvério foram sócios durante cerca de dois anos.
José Guilherme, homem que não aparece publicamente que não fala a jornalistas, chegou a ser referido numa outra notícia do Correio da Manhã, quando um advogado foi torturado e deixado misteriosamente à sua porta. O caso ocorreu em março deste ano e está a ser investigado pela PJ. O advogado Francisco Cruz Martins teve negócios em Angola e será responsável por um buraco de milhões de euros para o Estado angolano com a compra de ações do Banif.
O empresário José da Conceição Guilherme foi investigado e constituído arguido com outros sete suspeitos numa investigação a alegadas irregularidades na câmara da Amadora. Mas o Departamento Central de Investigação e Ação Penal do MP arquivou o processo e nunca o acusou.