O sistema nacional de defesa da floresta assenta em três pilares a quem compete desenvolver as políticas de prevenção, combate a incêndios e reflorestação: o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), onde estão concentradas funções mais ligadas à prevenção e reflorestação; a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC), que centraliza o combate; e um corpo especializado da Guarda Nacional Republicana (GNR), onde estão integrados os guardas florestais.
Mas se a estrutura parece simples no papel, as coisas complicam quando tentamos perceber quem deve fazer o quê e a quem responde, isto porque estas instituições envolvem as tutelas de vários ministérios: Agricultura e Ambiente (ICNF) e Administração Interna (ANPC e GNR) e disputam verbas do Orçamento do Estado e do fundo florestal permanente.
O Observador questionou os organismos e as tutelas sobre a dimensão dos recursos humanos e financeiros dedicados à proteção da floresta, incluindo o combate aos fogos, mas as perguntas enviadas ao Ministério da Agricultura (que tutela o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas), Proteção Civil e GNR numa semana quente, no terreno e na política, ficaram para já sem resposta.
A partir da consulta dos planos de atividades e relatórios das instituições que têm competências nesta área, concluímos que as funções de prevenção e combate aos incêndios florestais movimentam mais de 120 milhões de euros e mais de 3.000 pessoas, entre a proteção, vigilância e o combate. A proposta de Orçamento do Estado para este ano indica uma previsão de despesa de 211 milhões de euros para a proteção civil e incêndios, mas não discrimina a distribuição do bolo.
Os dados recolhidos apontam para um maior número de recursos humanos do lado da prevenção e proteção da floresta, mas na prática é difícil perceber quantos estão exclusivamente afetos a essas funções, já que desempenham também outras atividades.
Já quando chegamos à distribuição do dinheiro a balança cai de forma clara para o lado do combate, uma assimetria que tem sido constante nos últimos anos.
O ataque aos fogos florestais está concentrado numa instituição na tutela da Administração Interna. A Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) tem um orçamento anual, dados de 2017, de 138 milhões de euros. O dinheiro vem do Orçamento do Estado, quase 60%, e de receitas próprias, onde se destacam as dotações da Autoridade de Supervisora de Seguros e Fundos de Pensões, 32 milhões de euros, e da Santa Casa da Misericórdia, 17 milhões de euros.
As verbas orçamentadas para a atividade de combate aos incêndios, sobretudo florestais, ultrapassam ligeiramente os 100 milhões de euros (plano de atividades de 2017), divididos pela contratação de meios aéreos — cerca de 43 milhões de euros — e pelas despesas correntes e operacionais com a Escola Nacional de Bombeiros e com os corpos de bombeiros — 62,5 milhões de euros. A maioria dos meios humanos da ANPC, mais de 800, está dedicada à atividade dos bombeiros.
Prevenção. Menos dinheiro e mais disperso
Já do lado da proteção e conservação da floresta, o cálculo é mais complexo, até porque estas funções estão mais dispersas por entidades e tutelas.
A única verba totalmente vocacionada para a prevenção vem do Fundo Florestal Permanente, um instrumento que recebe cerca de 20 milhões de euros por ano, financiados pelos automobilistas que pagam uma contribuição de 0,25 cêntimos por litro de gasolina e gasóleo criada em 2004, no Governo de Durão Barroso.
O organismo de bandeira nesta área é o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) que tem um orçamento anual de 55 milhões de euros. Este bolo inclui uma parcela que serve para financiar investimentos e despesas correntes, sobretudo salários, relacionados com atividades florestais, mas esses números não estão autonomizados em documentos públicos. Existem também programas com verbas comunitárias que financiam projetos privados e não só para a floresta, em particular no que toca a reflorestação, sivicultura e ordenamento da floresta, como o programa de desenvolvimento rural.
O ICNF é financiado pelo Orçamento do Estado, recebeu cerca de 24 milhões de euros no ano passado, mas a maior fatia vem de receitas próprias que resultam das atividades de licenciamento, taxas, coimas, prestações de serviços e venda de madeira das propriedades sob sua gestão. O instituto também passou a gerir o fundo florestal, mas estas verbas têm destinos próprios que vão desde o investimento no ordenamento florestal, através das ZIF (zonas de intervenção florestal) até ao pagamento da parte do Estado do custo com as equipas de sapadores florestais e ainda o financiamento da vigilância promovida no terreno pela GNR durante a época de incêndios.
Se o lado da prevenção e da defesa parece ser um parente pobre no que toca à mobilização de verbas por parte do Estado, também ao nível das decisões políticas e administrativas tomadas nos últimos anos, as florestas têm sido vítimas de um percurso acidentado. Um sinal disso foram os vários organismos que tiveram esta responsabilidade em mais de uma década e meia.
Como chegamos ao atual modelo
Portugal viveu em 2003 o pior ano de sempre em fogos florestais com mais de 400 mil hectares de área ardida. E havia um consenso político e na administração de que era preciso mudar.
Nesse ano, o Governo de Durão Barroso cria a Autoridade Nacional Florestal, uma entidade na tutela do Ministério da Agricultura que tinha como missão concentrar as funções nesta área, e que estavam na direção-geral das florestas. No ano seguinte, é lançada a APIF (Agência de Prevenção para os Incêndios Florestais), que foi criada pelo Executivo do PSD/CDS, com Sevinate Pinto à frente da pasta da agricultura. Foi este organismo que pediu um estudo independente sobre os incêndios florestais com uma proposta para um novo modelo de atuação junto da floresta.
A proposta técnica elaborada pelo Instituto Superior de Agronomia (ISA) foi já entregue ao novo Governo socialista liderado por José Sócrates que atravessou, meses depois de chegar ao poder em 2005, mais um ano infernal, o segundo com mais área ardida. Então ministro da Administração Interna, com a tutela dos bombeiros, António Costa preparava já mudanças profundas no dispositivo de resposta aos incêndios que pouco ou nada tinham em comum com a proposta “revolucionária” dos especialistas.
A proposta técnica do ISA para um plano de defesa da floresta defendia uma mudança de paradigma que colocava a ênfase na gestão ativa da floresta virada para o ordenamento e prevenção, com investimentos avultados. Propunha também a criação de uma super-entidade, na dependência do primeiro-ministro, com poderes transversais e integrados no que toca à floresta, da prevenção ao combate de incêndios, com uma força especial profissionalizada, independente das corporações de bombeiros.
Ainda em 2005, foi criada uma estrutura na Administração Interna, que era concorrente da APIF que funcionava no quadro do Ministério da Agricultura. Os relatórios e recomendações da Autoridade Nacional para a Proteção dos Incêndios Florestais (ANIF), terão sido decisivos para as opções políticas então adotadas e que centraram a estratégia na reforma do dispositivo de combate aos incêndios, promovida em 2005 e 2006, sob o comando de António Costa.
Pelo caminho ficou a APIF, entidade que no tempo do Executivo de Durão Barroso encomendou um estudo independente sobre a estratégia para a floresta e os incêndios florestais, no rescaldo do pior anos de fogos enfrentados em Portugal, 2003. O estudo técnico teve quase o mesmo destino, ainda que várias das propostas apresentadas tenham sido incorporadas no Novo Plano de Defesa da Floresta contra Incêndios, aprovado em 2006.
A extinção da APIF foi vista como mais um sinal da prioridade política dada ao combate, em prejuízo da aposta dada à prevenção proposta no relatório dos especialistas do ISA. Para isto contribuiu também alguma desvalorização do papel do Ministério da Agricultura na estratégia de defesa da floresta, um resultado que não foi contrariado politicamente e que conduziu ao esvaziamento das funções e meios dos seus organismos.
Investigador. “O Estado recuou demais, debilitou-se, na sua função de gerir a floresta”
A reforma que foi feita
O passo mais decisivo na nova organização foi dado com a criação da Autoridade Nacional de Proteção Civil, concretizado em 2007, uma iniciativa do então ministro António Costa, a partir da reestruturação do serviço nacional de bombeiros e de proteção civil.
A ANPC representou uma mudança na abordagem ao combate aos incêndios, impondo uma lógica de comando único e integrado de todas as forças no teatro das operações, desde o nível local até ao central, depois de detetadas falhas de coordenação no terreno entre as várias entidades envolvidas no ataque aos grandes fogos de 2003 e 2005.
Feita a reforma dos serviços de combate aos incêndios por António Costa, ministro, ficou por por fazer a reforma da floresta, reconheceu António Costa, primeiro-ministro. Na entrevista à TVI, o líder do Governo avisou que essa reforma estrutural era trabalho para uma década.
“Quando cheguei ao Governo — com a tutela da Administração Interna — enfrentei um dos piores anos de incêndios (2005). Quando chegámos ao final fizemos a avaliação e tiramos a ilação: fizemos uma grande reforma dos serviços de proteção civil, o que nos permitiu estar dez anos com uma área ardida muito inferior ao habitual. No ano passado, tivemos uma época de incêndios muito grande. E agora é altura de fazermos a reforma da floresta ao nível da que fizemos na proteção civil. (…) Posso comprar um avião e usá-lo no dia seguinte. A reforma estrutural da floresta é um trabalho para a próxima década. Com o tipo de ordenamento e povoamentos que temos e a estrutura de propriedade, não resolvemos o problema em pouco tempo. Há dez anos, quando se fez a reforma de proteção civil, disse que estávamos a comprar tempo para fazer a reforma da floresta. E esse tempo esgotou-se”.
António Costa também defendeu que a reforma do sistema de combate foi um sucesso, na medida em que permitiu reduzir a área ardida para valores muito inferiores aos dos anos anteriores. A evolução da área ardida entre 2005 e 2015 até dá força ao argumento do primeiro-ministro, mas basta uma conjugação de altas temperaturas com tempo seco, para pôr em causa os bons resultados, conforme ficou demonstrado no ano passado e este ano.
A reforma que ficou por fazer
Nesta primeira entrevista depois do trágico incêndio de Pedrógão Grande, o primeiro-ministro não explicou, em concreto, porque é que a reforma da floresta não foi lançada no Governo do qual fez parte, ainda que não tivesse à data competências nesta área. Avançou contudo com uma causa: “Temos um problema estrutural na nossa floresta (pequena propriedade privada sem dimensão para ser rentável) e não posso pedir à Assembleia da República que faça uma reforma destas em cima do joelho. Há direitos de propriedade. Há uma razão pela qual não se fez em muitos anos”.
Já depois desta entrevista, soube-se que os partidos, socialistas incluídos, queriam acelerar a aprovação do pacote florestal no parlamento.
O primeiro-ministro reconheceu entretanto que a reforma feita em 2006, centrada no combate, estava esgotada à medida que crescem as dúvidas sobre a coordenação da resposta dada no terreno quando deflagraram os incêndios de Pedrógão Grande e Góis. E fez apelos para avançar rapidamente com o pacote legislativo para a floresta.
Guardas florestais na GNR. Fusão na conservação e florestas
Recuando ao ano de 2006, e na sequência da aprovação do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios, foi ainda decidida a transferência dos guardas florestais, à data cerca de 500, das direção-geral das Florestas, na tutela do Ministério da Agricultura, para a GNR, para integrar o quadro de pessoal civil, no Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (SEPNA).
A ideia não agradou a estes profissionais, nem à própria GNR e foi logo uma medida muito contestada e que terá resultado, segundo antigos dirigentes ouvidos pelo Observador, numa perda de capacidade de intervenção do Estado na floresta, onde a propriedade privada domina. A mudança correspondeu ainda a uma perda de meios e competências na área florestal do Ministério da Agricultura para o Ministério da Administração Interna que tutela a GNR. Atualmente, os guardas florestais são pouco mais de 300 e a sua carreira será extinta.
Guardas florestais avançam para manifestação nacional a 8 de setembro
A “polícia ambiental” da GNR, o SEPNA conta com cerca de 925 elementos que se dedicam a várias ações de controlo e fiscalização das regras e deveres na área ambiental. A GNR contrata ainda todos os anos centenas de vigilantes para ocupar as torres de vigia, mais de 200 em todo o território, na época de incêndios.
Um novo passo para arquitetura atual foi dado pelo Governo do PSD/CDS com a fusão do Instituto da Conservação da Natureza e Biodiversidade com a Autoridade Florestal Nacional que dá origem ao atual ICNF, no tempo em que Assunção Cristas estava à frente do super-ministério MAMAOT (Ministério da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território). A fusão concretizada em 2012 ia de encontro ao espírito de emagrecimento das estruturas do Estado, sobretudo a nível de chefias, que dominou os primeiros anos da governação sob a tutela da troika.
Antes da fusão, dados de 2010, os dois organismos empregavam 1630 colaboradores. Em 2016, o ICNF tinha 1200 trabalhadores para um quadro de efetivos de 1388.
A fase de comando único durou pouco e em 2013 o regresso da separação de pastas resultou numa dupla tutela que nem sempre terá sido fácil de gerir. Do ponto de vista orgânico e administrativo, o ICNF está sob a tutela do Ministério da Agricultura, mas em matéria de política de conservação natureza responde ao Ministério do Ambiente. A duplicidade de tutelas criou alguma conflitualidade ao nível das decisões. Um antigo dirigente recorda que chegou a ter de responder perante quatro responsáveis políticos.
Sapadores florestais. Desde 2011 que não é criada uma equipa
O Instituto de Conservação da Natureza de Floretas herdou um conjunto vasto de missões e competências — das florestas à biodiversidade, passando pelas áreas protegidas, pesca, caça e florestas — que nem todas as letras do abecedário são suficientes para descrever: vai do a ao z para acabar no ae. No total, são 30 as atribuições que no passado foram desempenhadas por um quadro muito maior de funcionários.
Na primeira linha da defesa da floresta estão os sapadores florestais. Estes profissionais têm treino específico e estão exclusivamente dedicados à prevenção dos incêndios , mas não são quadros do instituto, embora a sua contratação passe pelo ICNF e pelo Ministério da Agricultura.
As equipas de sapadores florestais são estruturas locais especializadas, vocacionadas para o desenvolvimento de ações de silvicultura preventiva, sensibilização e de vigilância armada, primeira intervenção e apoio a operações de rescaldo e vigilância ativa pós-rescaldo, sendo ainda os sapadores florestais agentes de proteção civil, nos termos da Lei de Bases da Proteção Civil.
Lançados em 1999, depois de eliminados os sapadores florestais do Estado — com Capoulas dos Santos na pasta da Agricultura — estas equipas têm em média cinco pessoas. O seu custo anual é dividido entre o Estado e as entidades privadas ou locais — associação de produtores, autarquias, associações municipais, ou até freguesias, para as quais vão trabalhar, sobretudo a preparar a época de incêndios. No Inverno podem trabalhar para o Estado. Cada equipa terá um custo médio de 75 mil euros anuais, entre equipamento e custos salariais. O Estado reforçou a comparticipação financeira para 40 mil euros por equipa, de acordo um despacho publicado este ano.
Em 2016, segundo dados do ICFN, existiam cerca de 270 equipas de sapadores, mas é muito difícil dizer quantos estavam operacionais. Fontes contactadas pelo Observador, realçam que é difícil segurar estes profissionais que são mal pagos e não têm grandes possibilidade de progressão na carreira. Às vezes, dos cinco candidatos que iniciam formação, só três chegam ao fim. Desde 2011, ano do resgate a Portugal, que não é criada uma nova equipa.
Na semana passada, o ministro Capoula Santos anunciou a contratação imediata de 20 novas equipas. Este reforço estava já previsto no plano de atividades do instituto de 2016, mas só foi lançado em março deste ano, estando a conclusão prevista para os próximos dias, disse o ministro da Agricultura em entrevista à SIC. O processo envolve um concurso público, o que também ajuda a explicar o lapso temporal na concretização da medida. A intenção é criar mais 20 novas equipas todos os anos até 2020. O Governo avançou ainda com o reequipamento de 44 equipas de sapadores.
Falta de agentes pode ter impacto crítico na capacidade operacional
Os sapadores desempenham o papel principal na prevenção contra incêndios, mas há outros funcionários que têm também competências nesta área. É o caso dos agentes florestais que são quadros do ICNF e herdeiros dos antigos serviços florestais do Estado. As brigadas CNAF (corpo nacional de agentes florestais) foram criadas por Ascenso Simões em 2008, quando era secretário de Estado das Florestas.
Em 2016, o ICNF teria cerca de 1oo agentes florestais em 25 brigadas distribuídas no território, que desempenham várias funções nas zonas florestais — limpeza de povoamento, marcação e cortes de árvores, plantações — sob responsabilidade do Estado, incluindo matas nacionais e zonas de baldio. Nestas áreas fazem a primeira intervenção, apoio ao combate e rescaldo.
No entanto, estes profissionais têm uma idade média elevada e o seu número está a diminuir de forma acelerada a ponto de, no plano de atividades de 2016, o instituto ter deixado o alerta para a “redução significativa de trabalhadores na carreira de assistente operacional e também de assistente técnico, o que é suscetível de gerar um impacto crítico na capacidade operacional do ICNF”.
Esses trabalhadores, acrescenta o instituto são “de extrema importância na ausência de mestres e guardas florestais e dada a insuficiência de técnicos superiores e, por isso, asseguram grande parte de ações de gestão de povoamentos, bem como de proteção dos terrenos afetos ao instituto, nomeadamente na gestão de combustíveis (para fogos florestais) e no apoio ao combate a incêndios florestais, integrando as brigadas do Corpo Nacional de Agentes Florestais”.
Os quadros do instituto contam ainda com os vigilantes da natureza que têm competências específicas nos parques e áreas naturais, que caem na tutela do Ministério do Ambiente e que eram cerca de 120. O ano passado foi anunciada a contratação de mais 20 destes profissionais, um número que fica muito aquém daquele que foi considerado necessário pelo Instituto da Conservação da Natureza e Florestas. A tutela justificado a diferença com o “custo incomportável” de contratar os números ideais referidos pelo ICNF. Também estes quadros têm vindo a diminuir com saídas para a reforma.
Governo invoca “custo incomportável” para limitar contratação de vigilantes da natureza