Um número de telemóvel e o IBAN de uma conta bancária para onde o Presidente da República teria de transferir um milhão de euros — se não pagasse, corria risco de vida. Essas duas pistas iniciais abriram caminho na investigação que a Polícia Judiciária conduziu para descobrir o autor da carta com uma ameaça de morte dirigida a Marcelo, enviada para Belém em outubro do ano passado. Esta terça-feira, a PJ anunciava a detenção do suspeito: Marco A., antigo militar do Exército e uma figura já conhecida das autoridades, condenado em tribunal, dois anos antes, por ameaçar expor dados pessoais de altas figuras do Estado — mas esse caminho que levou os inspetores ao principal suspeito foi sinuoso.
A PJ não demorou a perceber que o IBAN e o número de telemóvel eram verdadeiros: a conta correspondia, de facto, a um titular e o contacto telefónico pertencia exatamente à mesma pessoa. Mas quando esse primeiro suspeito foi sujeito a interrogatório — e confrontado com a ameaça de morte que tinha sido dirigida ao chefe de Estado —, depressa se percebeu que não fazia ideia daquilo que os investigadores lhe falavam. Só depois de uma investigação mais aprofundada, em que a PJ tentou perceber quem teria interesse em prejudicar aquele homem, foi possível chegar a Marco A., primo do suspeito número 1. Nesse momento, as autoridades ligaram os pontos e perceberam que estavam perante o autor de ameaças semelhantes no passado. E nesse momento não tiveram dúvidas em avançar com a detenção.
No primeiro interrogatório judicial a Marco A., esta quarta-feira, esse foi um dos argumentos usados pelo ex-oficial do Exército, aspirante a espião, para justificar por que motivo enviou aquela carta ameaçadora a Marcelo. Na verdade, garantiu, a intenção não era receber o milhão de euros. O objetivo, alegou, seria que o primo, com quem se incompatibilizou no passado, fosse responsabilizado por essa tentativa de extorsão. Era a mesma justificação que já tinha dado em 2019, quando foi detido por suspeitas de ter tentado obter pagamentos de meio milhão de euros de figuras como a Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, o Diretor Nacional da PJ, Luís Neves, e elementos dos serviços de informações e respetivas famílias. Nesse caso, a ameaça era a de que, se não fosse paga a verba exigida, revelaria publicamente dados da Segurança Social a que tinha acedido indevidamente. Não era o dinheiro que lhe interessava, garantiu.
Nessa altura, o mais próximo de uma explicação para o que fez foi um sonho nunca cumprido de ser espião. Marco era, à data, um inspetor superior estagiário no Instituto da Segurança Social, quando percebeu que tinha acesso direto a informação confidencial. Nesse momento, terá sido tomado por uma “euforia”, segundo explicou em tribunal quase um ano depois de ser detido.
Em 2019, assim que teve o primeiro contacto com Marco, agora com 40 anos, o psiquiatra do Hospital Prisional de Caxias percebeu rapidamente que, perante os sinais de alteração psíquica que o homem apresentava, estava perante alguém com um “sintomatologia psicótica”. A ordem de internamento foi imediata, depois de uma injeção para interromper aquele surto psíquico e que o fez voltar a si. A partir daí foi sendo traçado o diagnóstico de uma doença mental que acabaria por ser a justificação para aquilo que ele próprio nunca conseguiu explicar: uma psicose funcional, em que o diagnóstico mais provável seria o da perturbação esquizoafectiva. Uma anomalia psíquica que, se não fosse tratada, teria impacto no funcionamento psicossocial de Marco, concluiu o tribunal no julgamento que terminou em 2020 (e em que o homem foi considerado inimputável por doença mental).
“A perturbação esquizoafectiva é uma psicose de natureza funcional, de evolução crónica, não curável, mas tratável com medicação antipsicótica adequada”, lê-se no acórdão de 2020, referente ao julgamento por tentativa de extorsão e acesso indevido a dados pessoais agravado, a que o Observador teve acesso.
Marco ficou internado entre 31 de julho e 6 de março de 2019, altura em que o tribunal revogou a medida de coação de prisão preventiva, sustentada no estado em que se encontrava e na evolução clínica que o homem tinha registado. Tinha aderido ao acompanhamento clínico e terapêutico e participara nas atividades propostas, como ginástica, leitura e terapia ocupacional. Parecia melhorar.
O Ministério Público, porém, ao mesmo tempo que o acusava dos crimes daqueles dois crimes, pedia ao tribunal que, face aos resultados da perícia a que o arguido fora sujeito, que Marco fosse considerado inimputável — e sujeito a tratamento em ambulatório. Ou seja, o homem não teria tido capacidade para avaliar o que tinha feito.
Como Marco aqui chegou?
Marco tinha 34 anos quando começou a acusar os primeiros sinais de doença mental: tinha dificuldades em lidar com o stresse laboral e foi-lhe então diagnosticado um síndrome depressivo, passando mesmo a receber acompanhamento médico terapêutico. Fez psicanálise até ao primeiro semestre de 2018, mas quando começou a exercer funções na Segurança Social deixou de frequentar as consultas com um psiquiatra.
Filho único de uma casal de agricultores, concluiu o curso de Direito na Clássica, em Lisboa, e foi trabalhar dois anos depois para uma empresa de trabalho temporário, até que aos 26 anos ingressou no Exército como oficial jurista, em regime de contrato. Foi militar durante seis anos. Pelo meio, casou com uma médica e teve uma filha. Ainda hoje conta com um forte apoio familiar.
Quando saiu do Exército, Marco ainda esteve desempregado, mas foi depois trabalhar como oficial de justiça na Direção-Geral de Administração da Justiça; depois, no Ministério Público de Oeiras; na Divisão de Património da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, durante três meses; e na Inspeção-Geral de Atividades de Saúde, como inspetor. Em 2017, ainda fez um estágio como jurista no Instituto de Turismo e ingressou depois na Segurança Social, quando acabou detido. O local de trabalho por onde passou mais tempo foi mesmo no Exército.
Depois de ter sido considerado inimputável pelo coletivo do tribunal judicial de Lisboa, e de ter sido condenado a uma pena suspensa de internamento durante dez anos, Marco tem tido acompanhamento médico e psiquiátrico. No entanto, ao que o Observador apurou junto de fonte judicial, a sua medicação foi sendo ajustada de forma a que conseguisse voltar a trabalhar — a falta de trabalho, aliás, tem sido causa de ansiedade no arguido, por não contribuir para o rendimento familiar, segundo um parecer médico apresentado esta semana em tribunal, depois de detido por ter ameaçado o Presidente da República em finais de outubro de 2022, através da tal carta anónima que trazia uma bala e que, num primeiro momento, empurrou a PJ na direção do seu primo.
Aliás, uma pesquisa pelo seu nome na internet devolve as suas várias tentativas de concorrer a serviços públicos, nomeadamente em autarquias. Num dos casos, falhou os exames psicológicos a que foi sujeito. Ainda antes dos processos criminais, Marco tentou mesmo entrar na Polícia Judiciária, talvez na tentativa de, de alguma forma, tentar cumprir o sonho de ser espião, como chegou a contar.
Em tribunal, porém, o advogado que o defende, Nuno Rodrigues Nunes, terá mesmo alegado que Marco deixou de tomar a medicação e que teve uma recaída.
Mas o que fez Marco em 2019 com as credenciais de uma colega?
Marco trabalhava no primeiro piso do edifício da Segurança Social, na Avenida 5 de outubro, em Lisboa, como inspetor superior estagiário, e tinha acesso a diversa informação confidencial. Mas foi através das credenciais de uma colega que extraiu informação pessoal, como moradas, rendimentos e contactos de familiares próximos de vários elementos da Polícia Judiciária, incluindo o próprio Diretor Nacional, Luís Neves, da Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, e de vários funcionários dos Serviços Secretos.
Segundo o acórdão a que o Observador teve acesso, datado de 30 de maio de 2020, os primeiros crimes ocorreram a 3 de junho do ano anterior, quando, depois de gravar as informações em formato PDF no seu computador, decidiu enviá-las por email (também criado com o nome da colega), ameaçando que publicaria aqueles dados se não lhe pagassem meio milhão de euros.
A mensagem enviada às 15h50 desse dia exigia a entrega, em local indeterminado em Setúbal, de “500 mil euros em notas de 20 e 50 euros não numeradas”, sob pena de serem divulgadas “as identidades de todos os inspetores da Polícia Judiciária, agentes do SIS, agentes do SIED, e demais pessoas em todas as redes sociais nacionais e estrangeiras”, bem como “em todos os jornais do país e do mundo”, lê-se no despacho. Também ameaçava expor os dados e factos pessoais como identificação, moradas e rendimentos do Diretor Nacional da PJ, filho e mulher, e ainda da PGR e do marido.
Dois dias depois, voltaria a insistir com os destinatários por e-mail, reiterando a ameaça de divulgar a “todos os espiões do mundo e jornais internacionais” a informação, caso não lhe pagassem.
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Vítimas de Marco não consideraram ameaças inofensivas
Quando foi julgado, em 2020, o então advogado de Marco disse que o que o ex-oficial do Exército tinha feito não tinha passado de uma “brincadeira”. “As mensagens eram suficientemente excêntricas e grotescas, senão mesmo ridículas, para que a ameaça fosse levada a sério e temida pelos seus destinatários; facilmente se constata que as ameaças não eram reais”, escreveu o advogado na contestação à acusação.
Mas o Diretor Nacional da PJ, Luís Neves, não interpretou as coisas dessa forma. Durante o seu testemunho em tribunal, Luís Neves lembrou que trabalhou anos em investigação criminal lidando com crimes graves e considerou as ameaças que recebeu por email consistentes e com “peso”. No email recebido vinha um anexo com informações de todos os destinatários que era “informação credível, sensível e muito sigilosa, sobretudo a que dizia respeito aos parceiros dos serviços de informações que pensava que estariam bem guardadas e protegidas e que jamais poderiam ser devassadas daquela forma”.
“As listagens anexadas demonstravam que haveria ali atividade criminosa séria e que tínhamos de atuar, de imediato, sob pena de os dados poderem ser divulgados e devassados na comunicação social”, disse à data Luís Neves. E como, explicou ainda, nenhum elemento do Estado cede a uma exigência de pagamento, era preciso atuar com a máxima rapidez.
Arguido reincidiu, como temia o tribunal caso não se tratasse
Quando foi condenado a uma pena de internamento, o tribunal deixou claro haver “fundado receio de que o arguido”, devido à doença de que sofria, viesse “a cometer outros factos da mesma espécie”. E foi isso que aconteceu em finais de outubro de 2022, quando Marco decidiu escrever uma carta ameaçadora ao Presidente da República.
Na carta, Marco exigia um milhão de euros ou então acabaria por matar Marcelo com uma bala igual aquela que decidiu enviar dentro do envelope que continha a carta. A Polícia Judiciária acabou por localizar o suspeito esta semana, em casa, e detê-lo. Voltou ao hospital-prisão em Caxias e a medida de coação de prisão preventiva só será alterada quando o seu estado de saúde melhorar.
Até lá, será sujeito a uma nova perícia psiquiátrica para avaliar se teve ou não noção do que fez, e que permitirá aferir novamente se é, ou não, imputável. A decisão deste processo pode não ser idêntica ao primeiro. E, se não for, poderá influenciar a suspensão da pena determinada no processo anterior.