As alterações legislativas ao sistema de cash rebate, publicadas a poucos dias das eleições deste ano, não estão a ser cumpridas, afirmam os produtores portugueses, e há pagamentos de milhares de euros a produções nacionais e internacionais que “estão atrasados”. É o caso da série Rabo de Peixe (da Ukbar Filmes), série portuguesa na Netflix, que ainda não recebeu a última tranche da primeira temporada, e de Velocidade Furiosa X (da Universal) que está na mesma situação há cerca de um ano. O Estado português, responsável por devolver, através deste sistema de incentivo, uma percentagem das despesas assumidas pelos projetos, está, segundo as produtoras escutadas pelo Observador, em falta com pagamentos que superam milhares de euros a estúdios de cinema e produtoras audiovisuais.
Este incentivo, de acordo com a portaria publicada este ano, deve ser pago em diferentes prestações, a partir da assinatura do contrato de concessão e segundo calendário definido nos acordos. Ou seja, as produtoras entregam as auditorias das despesas que realizaram em Portugal e, caso tudo esteja correto, têm direito a ser pagas em prazos que variam segundo o que consta dos contratos estabelecidos: desde 10 dias úteis no caso da primeira prestação, em função da duração da execução do filme ou da série nas suas diferentes fases no caso da segunda e da terceira prestações. São esses prazos que, segundo os produtores envolvidos em Rabo de Peixe (Ukbar Filmes) e Velocidade Furiosa X (Sagesse Productions), já foram ultrapassados. Sofia Noronha, da Sagesse Productions, afirma que a última auditoria entregue foi a setembro de 2023, ou seja, está quase há um ano para receber a respetiva devolução. Já Pablo Iraola, que entregou as “contas auditadas” da primeira temporada de Rabo de Peixe em maio deste ano, está também à espera, tendo também outros projetos apoiados pelo cash rebate à espera de pagamentos.
Além disso, uma das novidades deste incentivo fiscal para atrair investimento estrangeiro na área do cinema e audiovisual, o chamado cash refund (reembolso em dinheiro para projetos de cinema que gastem 2,5 milhões de euros ou mais em Portugal), com um bolo orçamental de 20 milhões de euros, também deveria ter aberto concurso a 1 de abril, mas ainda não tem data prevista para ser iniciado. O atraso estará a pôr em causa várias produções internacionais e a deixar outras “fugir” para países como Espanha, como confirmou o Observador junto de vários produtores.
Na semana passada, foram anunciados através do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) os vinte candidatos admitidos à primeira fase do concurso do cash rebate que terão de repartir um bolo total de 7 milhões de euros, até 1,5 milhões de euros por projeto. No entanto, volta a repetir-se o que aconteceu em anos anteriores, desde que o incentivo fiscal foi criado, em 2018: vários projetos com pagamentos por efetuar, tendo sido ultrapassados os prazos legalmente estabelecidos para o reembolso. Há também produções portuguesas às quais o incentivo do Fundo do Apoio ao Turismo e ao Cinema (FATC) ainda não pagou.
[Já saiu o primeiro episódio de “Um rei na boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor.]
Outros já tinham sido noticiados no ano passado pelo jornal Público, estando agora, sabe o Observador, agendada uma reunião para agosto com a nova ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, para fazer um ponto de situação sobre prestações vencidas a aguardar pagamentos e sobre contratualizações em atraso. O cenário torna-se mais complexo porque, em 2024, ainda existem produções de grande escala à espera de serem pagas. “Está a haver uma gestão danosa do fundo, com as irregularidades, com celebrações contratuais e lançamento de candidaturas, que é dececionante. Está a transformar o fundo numa situação inábil. E os créditos que ganhámos lá fora estão muito baixos”, alega Fernando Vendrell, da Associação de Produtores de Cinema e Audiovisual.
O chamado cash rebate, que advém do Fundo do Apoio ao Turismo e ao Cinema, é um dos mais importantes incentivos fiscais na Europa para produções de cinema, nacionais ou estrangeiras, filmadas em Portugal, e, segundo um estudo encomendado pelo anterior governo e divulgado no ano passado, já apoiou mais de 160 projetos de cinema e audiovisual, representando um investimento de 238,1 milhões de euros, dos quais 128,7 milhões de euros vieram do estrangeiro.
Entre os vários produtores portugueses ouvidos pelo Observador, há desalento e preocupação, especialmente porque o incentivo fiscal é reconhecido, dentro e fora de portas, como um instrumento de sucesso que conseguiu colocar o nome de Portugal no mapa do audiovisual. Rabo de Peixe, Velocidade Furiosa X, Heart of The Stone ou House of the Dragon, filmados em Portugal, são só alguns exemplos. “Em 2024, estamos, de facto, a perder o comboio do audiovisual”, diz uma fonte do setor. Questionado pelo Observador, o atual governo garante que tudo será pago e que o chamado cash refund é mesmo para avançar. “Aguarda-se a transferência de 20 milhões de receita consignada de IRC para o ICA nos termos previstos na Lei do Cinema, para que as candidaturas possam abrir”, responde o Ministério da Cultura ao Observador, “lamentando a situação”.
O mesmo garante o ICA ao Observador: “Os pagamentos em atraso estão a ser regularizados”, resposta repetida em anos anteriores, sendo certo que a responsabilidade por todas estas regularizações financeiras não é deste organismo público, mas sim do executivo. Compete ao instituto liderado por Luís Chaby Vaz, ao lado da secretaria de Estado de Turismo, agilizar todos os processos relativos a estes incentivos como também a avaliação dos candidatos, sendo o contacto com os produtores mediado pela Portugal Film Comission (PFC).
“Rabo de Peixe” e “Velocidade Furiosa” ainda à espera dos reembolsos por terem filmado em Portugal
Pablo Iraola, produtor independente e sócio da Ukbar Filmes, juntamente com Pandora da Cunha Telles, anda por estes dias a rodar a segunda temporada de Rabo de Peixe, série portuguesa produzida para a Netflix, que estreou a primeira época no ano passado. Ao Observador, o produtor admite que está dividido entre não ter recebido uma das tranches do incentivo, relativa à primeira temporada, e não saber se vai poder candidatar-se ao cash refund com a série criada por Augusto Fraga. O produtor teve de mostrar todos os gastos da série em 2022, começou a rodar em maio desse ano e só recebeu parte do dinheiro no final desse mesmo ano. Recorreu à banca para financiar a produção, sabendo que não poderia bater à porta da Netflix para dizer que não estava a cumprir os contratos estabelecidos. “Esta nova legislação foi assinada na última semana antes de o governo sair, com carácter urgente, porque era preciso apostar nas grandes produções. Era para março, depois abril, maio, chegou a ser falado no Festival de Cannes, e agora julho, o que se passa? Ficamos mal na fotografia e depois estas produções não regressam. Se não temos estabilidade, se existem recuos no incentivo, honestamente, não dá para avançar. É inviável”, afirma.
O produtor dá o exemplo de Espanha, referência no que diz respeito a este tipo de investimento: cada região autónoma tem um incentivo próprio, que pode chegar aos 70% na devolução de despesas (em Portugal pode ascender apenas aos 30%, num montante máximo de 1,5 milhões de euros por projeto), e que está a ganhar com esta indefinição portuguesa. Segundo conta Pablo Iraola, basta ver o que já aconteceu em mercados de festivais de cinema lá fora: “Já recebi telefonemas a perguntar o que se passa, fui abordado nesses mercados e vi produtores a reunirem-se com colegas meus espanhóis, ou seja, dá a sensação de que estamos mesmo a perder o comboio“. No passado mês de junho, num dos mercados de audiovisual mais importantes da Península Ibérica, o Conecta Fiction, onde Portugal foi um dos países representados, vários foram os produtores portugueses que ouviram os seus parceiros estrangeiros a criticar o mau funcionamento do incentivo nacional, relatam produtores ao Observador.
Em causa está a competitividade do mercado. “Esta é uma atividade económica que gera muito dinheiro e tem impacto laboral. Esta demora na abertura do cash refund é matematicamente ilógica, porque se perdemos o comboio, não o apanhamos mais”, diz o mesmo produtor. Para Pablo Iraola, que lamenta a dificuldade que é trabalhar no mercado audiovisual em Portugal sem este upgrade orçamental, caso a reputação portuguesa continue a ficar manchada, o mais provável é que a produção nacional fique outra vez dependente das duas únicas fontes de financiamento públicos existentes até 2018: os apoios do ICA e a ajuda financeira da RTP1 — que não bastam para que Portugal seja competitivo na área, diz-nos. Essa garantia chegou a ser dada pelo ex-ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, que esclareceu que o cash rebate existiria, pelo menos, até 2026. E não há, para já, nenhuma indicação do governo de Luís Montenegro para que essa realidade se altere.
Sofia Noronha, da Sagesse Productions, responsável por trazer para solo português grandes produções como House of The Dragon ou Velocidade Furiosa X, está na mesma situação: por um lado, recebeu a totalidade do dinheiro da produção da HBO, mas está há cerca de um ano à espera de receber o montante relativo ao filme. “Não tive ainda qualquer resposta sobre esse atraso e, neste momento, o cash rebate, tal como está, não é feito para produções internacionais [as produções nacionais passaram a ficar com a maior fatia]. Ou seja, estava a contar com o cash refund. Posso dizer que já perdemos cinco projetos para Espanha por causa desta indefinição do incentivo“, afirma ao Observador. Ao contrário de produções médias ou pequenas (portuguesas ou não) a quem o cash rebate se dirige hoje em dia, grandes estúdios de Hollywood têm capacidade para suportar as falhas dos prazos de pagamentos. O problema, explica Sofia Noronha, está na perda de reputação e de projetos que põem Portugal na rota dos milhões.
Produções internacionais a saltar fora, nome de Portugal posto em causa
Em 2023, só a região autónoma da Madeira recebeu uma única grande produção internacional em solo português: um novo episódio de uma das sagas mais famosas do mundo, A Acólita (Star Wars). Gerardo Fernandes, produtor freelancer com um vasto registo de projetos nesta área, foi o contacto português para a série da Disney. Ao Observador, confirma que, até agora, nenhum pagamento está em atraso e congratula-se com este incentivo, que “funcionou muito bem até 2022”, altura em que começaram os problemas. As críticas do produtor não se dirigem ao ICA, que, entretanto, incorporou a Portugal Film Comission (responsável por agilizar o contacto dos produtores com este incentivo); e também não são apontadas às produções portuguesas que passaram a ser admitidas nesta primeira fase do concurso do cash rebate e que acabam por ficar com a maior fatia. “Fazem-se autênticos milagres nesta área neste país, concordo que também tem de haver mais financiamento para a nossa produção”, diz. As críticas de Gerardo Fernandes têm como alvo as alterações ao cash rebate que foram feitas em março deste ano e às duas janelas tradicionais de abertura de concurso, que colocam projetos no limbo e que deixaram de fazer aquilo a que o sistema se tinha proposto inicialmente: captação de investimento estrangeiro.
Segundo o produtor, o problema está do lado de quem legisla e nas consequências: “Tenho, neste momento, uma produção estrangeira que já garantiu o cash rebate inglês e que deveria começar a gravar em Portugal a partir de outubro deste ano. O produtor estrangeiro já está a pensar saltar fora. Porque é que se foi mexer no incentivo se funcionava? O que está previsto acontecer em Portugal, em 2024, em termos de produções internacionais?”, atira. Que se saiba, só um projeto da Disney. Gerardo Fernandes dá, outra vez, o exemplo espanhol que, segundo diz, contrasta em absoluto com o que se passa cá. “De Madrid a Barcelona estão, neste momento, a decorrer filmagens estrangeiras. O cinema espanhol ultrapassou o português, mesmo que as equipas sejam mais caras. Em Portugal, cada empresa paga à volta de 5 a 10% de Segurança Social por funcionário neste negócio, aqui ao lado não há ninguém sem contrato de trabalho”, continua.
A produtora Margarida Adónis, da Ready to Shoot, que conduziu as filmagens de Heart of The Stone (Netflix), tem as contas auditadas e os pagamentos em dia. Está a terminar uma série da Disney em Portugal, reconhecendo que não foi a tempo de se candidatar à primeira fase do concurso deste ano. O foco virou-se, por isso, para o cash refund. Sabe que as decisões estão sempre, no fundo, nas mãos do Ministério das Finanças (que dá a ordem para que se libertem estas verbas), com quem se quer reunir para tentar que “o incentivo não morra na praia” e para que seja possível trabalhá-lo no próximo Orçamento do Estado. É que o Estado português, garante Margarida Adónis, com a não abertura do concurso para grandes produções, “está a perder entre 150 a 200 milhões de euros em investimento“, diz. E está também a tirar dias de trabalho bem pagos às equipas técnicas. “Cheguei a fazer 73 dias de rodagem, trato os técnicos com muita consideração e, muitas vezes, esses técnicos não querem trabalhar para produções portuguesas porque essa consideração não existe”, continua.
Por isso, menos trabalho, menos investimento e a consequência de o país cair no esquecimento, reforça. “A minha empresa é exportadora de serviços de cinema há 24 anos. Para quem está a definir orçamentos, como é o caso dos estúdios grandes, ou este tipo de incentivos continua a existir, ou o nosso país fica no esquecimento porque os produtores viram-se para quem oferece melhores condições”, nota. E acrescenta, tal como os restantes ouvidos pelo Observador, que já perdeu projetos para Espanha. Tal como Gerardo Fernandes, também Margarida Adónis não vê com maus olhos que o sistema de cash rebate agora funcione também para as produções portuguesas, como um complemento dos apoios do ICA. O problema é que, assim, as duas indústrias (a nacional e a estrangeira) digladiam-se pelo mesmo incentivo. “Para isso têm de aumentar a dotação”, que, recorde-se, tem, este ano, 14 milhões euros para o cash rebate e 20 milhões de euros para o cash refund, tendo vindo sempre vindo a aumentar de ano para ano.
Na mesma linha, Patrícia Lino, da PSP Production, que trabalhou a série Academia de Vampiros em Portugal (2022), relata atrasos normais nos pagamentos, mas destaca a “relação cordial” que manteve com as instituições portuguesas. Ou seja, “o projeto nunca esteve em causa”, ao contrário do que nos disseram outros depoimentos. Ainda assim, este ano, essa cordialidade pode ser afetada. “Agora, o que põe em causa [a não abertura do cash refund] é o nome do país. Vou candidatar-me ao cash rebate na segunda fase [que deveria decorrer no mês de setembro], porque os prazos da primeira chamada eram apertados e o valor foi logo consumido. É muito problemático para mim que o cash refund não abra porque tenho três projetos grandes em mãos. E estas alterações ao incentivo são péssimas, metem tudo no mesmo barco”.
Lista de pagamentos em falta no “cash rebate”: “Isto é um fator de descredibilização profundo”
Entre os autores e produtores portugueses, o Observador sabe que está a circular uma lista de empresas com pagamentos em falta. A essas empresas, o governo responde com uma resolução para o mais breve possível. Filipa Reis, da Pedra no Sapato, e produtora de Grand Tour, filme de Miguel Gomes distinguido com prémio de Melhor Realização no Festival de Cannes, garante ao Observador que “uma fatia dos pagamentos em atraso denunciados à imprensa já foi paga”. No ano passado, a produtora afirmava que a rodagem do filme do cineasta português estava mesmo em risco — mas acabou por acontecer. Desta vez, ao contrário de anos anteriores, resolveu não candidatar-se ao incentivo fiscal. Afirma, no entanto, que a situação não está totalmente regularizada: “Faltam outros pagamentos, sem previsão ou prazo para que aconteçam”, confessa ao Observador.
Já Edgar Medina, da Arquipélago Filmes (Matilha ou Sul), que estava na mesma situação no ano passado, prefere apontar o dedo ao que continua a falhar a quem produz: “Está tudo bem feito. Há uma legislação robusta; o orçamento do incentivo foi sendo reforçado, os produtores estão envolvidos e, depois, chega a altura dos pagamentos e não se concretizam. Contraria-se assim a promoção turística e torna-se num facto de descredibilização nacional profundo”, lamenta.
É certo que este incentivo tem garantido a Portugal a atração de diferentes projetos internacionais, em regime de services — ou seja, empresas portuguesas organizam e produzem filmagens de filmes ou séries estrangeiras em território nacional — o que faz com que praticamente todos os produtores escutados pelo Observador estejam de acordo: esta é uma boa medida, injeta dinheiro na economia portuguesa, garante postos de trabalho a técnicos portugueses durante mais tempo do que uma produção nacional, e tem ajudado diferentes projetos como Matilha ou Mal Viver/Viver Mal a catapultar-se em mercados internacionais.
No passado, o cash rebate esgotou a sua dotação orçamental a meio do ano, mudou as regras e pontos de avaliação dando primazia a guiões com percentagens elevadas de língua portuguesa ou produções em territórios de baixa densidade, foi alterado pelo governo de António Costa e foi criticado, pela sua morosidade, pelos candidatos. Em 2023, ao Observador, o produtor Peter Welter Soler, envolvido em séries como Guerra dos Tronos ou Westworld, avisava que Portugal “estava a perder grandes produções porque nada nos incentivos fiscais era claro”. Um ano depois, o problema parece manter-se.