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Entrevista com António Raminhos, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 09 de Setembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
Entrevista com António Raminhos, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 09 de Setembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
"Nos anos 80, ninguém tinha ansiedade — era-se 'esquisitinho'. Ninguém era obsessivo-compulsivo — era-se 'parvinho'."
"Comecei a entrar num registo em que não era capaz de andar de autocarro, com medo de contaminação, de tocar nas coisas"
"Jantar fora era muito confuso porque verificava se os talheres estavam limpos, se estava tudo organizado"
"Começava a evitar sentar-me num banco na rua, começava a evitar estar em sítios com muita gente"
"Até não sair de casa."
"Só tive diagnóstico aos 26 ou 27 anos. Tragédia. Então agora vão-me dar medicação é porque eu sou maluco! Senti logo esse estigma."
"Neste momento, não estou assim muito bem. Mas não estou mal, já estive pior, há dois dias."
"Se acho que posso estar melhor? Acho que sim. Agora, bem, bem, bem não, mas acho que nem é esse o objetivo."
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António Raminhos é humorista e apresentador de televisão. Foi diagnosticado com transtorno obsessivo-compulsivo aos 26 anos e tem uma depressão basal. É o quarto convidado da série "Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

António Raminhos é humorista e apresentador de televisão. Foi diagnosticado com transtorno obsessivo-compulsivo aos 26 anos e tem uma depressão basal. É o quarto convidado da série "Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Raminhos e o transtorno obsessivo-compulsivo. “Já quase não saía de casa com medo de tocar nas coisas”

Estava sentado à mesa de Natal quando começou aquela que seria a maior das suas crises — ou a maior das suas “pancadas”, como lhes chama. Filho de família alentejana, tinha à frente um prato de mioleira de borrego, com pão, sal e pimenta, que os tios tinham trazido, como era tradição, quando lhe surgiu uma questão simples: “E se existe a doença das vacas loucas nos borregos e tu não sabes?”.

António Raminhos diz que o “e se” é a porta de entrada para todas as suas obsessões — mesmo que não façam “nenhum sentido” — e ali não foi diferente. Ficou imediatamente maldisposto e incapaz de comer o que fosse. Ainda pôs a questão a uma prima veterinária que também ali estava — meio a sério, meio a brincar —, mas já nem a resposta de uma especialista o descansou. Foi para casa, vomitou, esteve dois dias sem dormir e acabou agarrado ao Google, a pesquisar os sintomas que o perseguiam desde quando andava ainda na escola primária.

Tinha 26 anos e o que encontrou na internet surpreendeu-o tanto quanto o tranquilizou: afinal, não estava sozinho. Em todo o mundo havia milhares de histórias iguais à sua. Dali ao diagnóstico foi um passo: tinha transtorno obsessivo-compulsivo.

Numa entrevista da série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental“, uma parceria do Observador e da Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento, o humorista fala de como “a doença da dúvida” chegou a fazer com que quase não saísse de casa, com medo de ser contaminado com alguma doença, e das crises que foi ultrapassando — que podiam ir desde a lavagem compulsiva das mãos ao medo de atropelar alguém sem perceber ou à incerteza sobre a sua própria orientação sexual.

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Muitas das histórias, admite, agora até lhe dão vontade de rir, mas obrigaram-no a começar a fazer terapia e a tomar medicamentos — uma “tragédia”, diz, pelo estigma que sentiu de imediato: “Então agora vão dar-me medicação é porque sou maluco!”. Desde essa altura, aprendeu técnicas para contrariar as dúvidas paralisantes — chegou a comer bolachas do chão, por exemplo —, cometeu o erro clássico de achar que podia controlar a sua medicação e passou a dedicar mais tempo a estratégias para lidar com a ansiedade e com os seus próprios pensamentos, como a meditação e o mindfullness. Começou também a falar mais sobre o tema da saúde mental: lançou o podcast “Somos todos malucos” e publicou o livro “Somos Todos Estranhos — Até Percebermos que isso é Normal”.

A entrevista foi gravada em setembro, no hotel Pestana Palace, em Lisboa, e nessa altura, contou, não estava “assim muito bem” — “mas não estou mal, já estive pior”. E insistiu que a doença não o define: “Eu não sou um perturbado obsessivo-compulsivo. Sou o António Raminhos, que por acaso lida com questões obsessivas, por acaso tem uma depressão basal. Eu não sou estas coisas, eu sou tudo”.

[Veja aqui a entrevista completa a António Raminhos:]

Quando as suas obsessões e compulsões começaram, mas ainda não tinham um nome. O que eram para si?
Eram personalidade. Era a minha maneira de ser. Quer dizer, quando começaram nem eram bem isso. Porque quando começaram eu era muito pequeno, é algo com que eu já lido desde pequenino.

Que idade tinha? 
Nas primeiras recordações de algumas obsessões ou ideias com traços obsessivos, tinha já talvez seis, sete anos.

Na escola primária? 
Sim.

E era exatamente o quê? 
Era muita coisa, podia ser tudo e podia não ser nada. Há pouco tempo a minha irmã contou-me uma história, de que eu não tenho recordação, que é desse período e revela já muitos traços obsessivos. Eu cresci nos Olivais, em Lisboa, e era um bairro que, nos anos 80, tinha uma forte comunidade do toxicodependentes, que andavam pela rua, e cruzávamo-nos muitas vezes. E há um dia que eu chego a casa e começo a dizer à minha irmã que tinha encontrado uma seringa na rua e comecei a questionar se estava contaminado com alguma coisa, se estava doente, se aquilo me ia fazer mal e se poderia manifestar-se alguma coisa mais tarde. Mas com um pormenor: eu nunca toquei na seringa. Só que, como eu era tão pequeno, deixei a minha mente divagar, nem sequer pus em causa a lógica. E isso era já um traço obsessivo. Eu sempre tive muitas questões relacionadas com contaminação e infeções e doenças e lembro-me de, uma vez, ter achado que pisei uma mancha de sangue no chão na rua e ir para casa…

Só “achou” que pisou, não pisou necessariamente?
Não sei, sei lá. Agora já não sei, como é óbvio, que eu era um puto, mas, na altura, achei que tinha pisado. Mas a grande questão é que isto é a doença da dúvida, portanto a verdade nunca é encontrada. Porque, sendo isto a doença da dúvida, a partir do momento em que eu coloco uma hipótese, pode ser qualquer coisa. Eu posso dizer “Isto não me parece uma mancha de sangue”, mas depois aparece aquela questão: “E se é?” Porque eu não tenho modo de confirmar se é ou não é. E, como isto, pode ser outra coisa qualquer, como as pessoas — eu nunca tive esse hábito — que verificam várias vezes o gás, que verificam os pneus dos carros, a porta. Há sempre um “E se?”. Fechaste bem? E se não fechaste bem? E a pessoa volta atrás. E agora se, por teres fechado, achaste que tinhas fechado e afinal abriste? É um jogo mental muito cansativo, é uma pescadinha de rabo na boca.

Nessa altura em que ainda era muito pequenino, mas essas ideias fixas já andavam por aí, eram umas fases, eram muito prolongadas ou era algo permanente? Por exemplo: essa ideia da seringa pode ter ficado na sua cabeça durante quando? 
Eu acho que, por ser criança, as ideias nunca se manifestavam durante muito tempo. Porque me entretinha com outras coisas, brincava, tinha a escola. O meu próprio desenvolvimento intelectual e mental se calhar não era o suficiente para eu ficar preso naquela ideia durante muito tempo. E como não era uma coisa que envolvia repetições — porque eu conheço casos de miúdos mais pequenos que já estão um bocadinho presos nesse registo das repetições ou de bater três vezes numa porta ou seja onde for — e como eram mais registos de contaminação, eu tenho ideia de que eram espaçados no tempo. E podiam variar. Sei que a “pancada”, como eu lhe costumo chamar, mais forte que eu tive quando era pequeno deve ter sido aí por volta dos sete ou oito anos. Na altura nós tínhamos a RTP1 e a RTP2 e há uma vidente que diz que o mundo ia acabar nesse ano e passado um mês. E a RTP, como não havia nada para dar de notícias, lembrou-se que era bom fazer uma notícia com o tema. Eh pá, aquilo afetou-me de tal maneira que fiquei para aí um mês sem conseguir comer, não conseguia engolir. Porque eu próprio comecei a entrar num registo que também é muito típico que é: “E se me engasgo a comer, se não consigo comer e se a comida fica aqui?”. Então entrei no registo de só comer iogurtes, só coisas fáceis. Foi muito penoso para os meus pais, que não sabiam lidar com aquilo.

Entrevista com António Raminhos, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 09 de Setembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
Os primeiros sinais obsessivos surgiram quando estava ainda na escola primária. Ver uma seringa na rua, mesmo sem lhe tocar, fez com que questionasse se podia estar infetado com alguma doença
FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
Entrevista com António Raminhos, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 09 de Setembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
Recusa que a doença o defina. "Eu não sou um perturbado obsessivo-compulsivo. Sou o António Raminhos, que por acaso lida com questões obsessivas, por acaso tem uma depressão basal"
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Entrevista com António Raminhos, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 09 de Setembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
Em 2021 lançou o podcast "Somos todos malucos" e publicou o livro "Somos Todos Estranhos — Até Percebermos que isso é Normal"
FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Contou à sua irmã da seringa, mas tinha esse hábito, quando tinha uma ideia fixa? Partilhou essa questão da vidente com as pessoas da sua família?
Acho que partilhei, só que nos anos 80 ninguém tinha ansiedade — era-se “esquisitinho”. Ninguém era obsessivo-compulsivo — era-se “parvinho”. E eu entrava muito nesse registo de “eh pá, não penses nisso”, que é a pior coisa que se pode dizer a alguém que lida com questões de ansiedade ou qualquer transtorno mental, porque ninguém consegue fazer isso, não é?

Quando diz que, quando a doença ainda não tinha nome, era a sua personalidade, isso era aquilo que o António pensava ou que os adultos à sua volta pensavam? 
Como eu não falava com ninguém, as ideias eram só minhas. Portanto, na realidade, eu achava que só eu é que era assim e acho que misturava muito isso com a possibilidade de ser a minha personalidade. E por isso é que costumo dizer — aliás, é o  título do livro que acabei de escrever — “todos nós somos estranhos até percebermos que isso é normal”. Porque se estou fechado nos meus pensamentos, se estou fechado nas minhas obsessões, nos meus medos e nas minhas ansiedades, se não partilhar isso com ninguém, é muito fácil que entre num registo de “eu sou maluco” ou “isto é meu” ou “eu sou assim”. E não sou, a pessoa não é assim. Simplesmente, a pessoa não partilha as suas ideias, não partilha os seus medos e não percebe que há mais pessoas que estão a passar pelo mesmo.

Ouça aqui a entrevista em podcast.

Labirinto. António Raminhos: “Se me vão dar medicação é porque sou maluco”

Que impacto é que isso teve na escola e na relação com as outras crianças?
Acho que não, porque eu guardava muita coisa, há muita coisa que vivi só para mim. Era sociável, era o palhaço da turma, como é óbvio. Era brincalhão, era um aluno razoável, e acho que guardava muito para mim — e, eventualmente, para a minha irmã, que era a pessoa com quem falava mais. Até à faculdade, a coisa manteve-se mais ou menos discreta.

E era sempre o mesmo tipo de ideias, de fixações, o mesmo processo?
Os processos são sempre iguais — o meu, com as minhas obsessões. Outra pessoa pode variar a obsessão, mas o processo é sempre o mesmo, que é a obsessão e a necessidade de querer responder a esta obsessão. É a compulsão, a necessidade de procurar a resposta. De contaminação já tive ideias de tudo, porque parte sempre dessa premissa muito volátil que se chama “e se?”. A partir do momento em que colocamos o “e se?”, abre-se a porta a tudo.

Mas quando vai ficando mais velho — e, portanto, já não é uma criança que se entretém com outras coisas e já tem uma consciência diferente de si próprio — começou a ser mais difícil lidar com aquilo que lhe estava a acontecer?
Ficou. Eu não gosto de dizer e acho que não sou obsessivo-compulsivo, nem sou ansioso, nem tenho depressão. Acho que todos nós somos uma construção de várias coisas, não é? Todos nós fizemos um caminho que resulta num conjunto de experiências e essas experiências traduzem-se também em emoções e sentimentos, em transtornos, em mágoas, cicatrizes — e em muitas coisas boas, como é óbvio, também pelo meio do caminho. O que eu quero dizer com isto é que a ansiedade, às vezes, não estava diretamente relacionada com o transtorno obsessivo-compulsivo, tal como eu acho que o facto de ter tido uma falta de estrutura na minha família, resultante de várias questões, também contribuiu para que procurasse esse equilíbrio de outras maneiras e compensasse, por exemplo, através das obsessões, que é uma forma de eu tentar controlar, não é? Portanto, acho que nós somos isto ao longo da vida e eu, quando cheguei à faculdade, tinha uns pedacinhos de várias coisas e começou a tornar-se difícil controlar porque, obviamente, entro para a faculdade e entro para um mundo novo. Entro com uma responsabilidade diferente, começou a aumentar a ansiedade, a ansiedade começa a criar-me a necessidade de controlar e comecei a entrar num registo em que, basicamente, já quase não saía de casa. Não conseguia sair de casa porque não era capaz de andar de autocarro, com medo de contaminação, de tocar nas coisas. Jantar fora era muito confuso porque verificava se os talheres estavam limpos, se estava tudo organizado — e, se não estava, “do que é que é esta mancha e porque é que isto é uma mancha e porque é que isso só acontece comigo?”. E então entrei num modo que me cansou de tal maneira que baixei os braços e percebi que tinha de procurar ajuda. E foi a primeira vez, para aí aos 18 anos, que fui ao psicólogo.

"Fiz os exames, os exames obviamente vieram negativos, estava tudo bem, saúde espetacular, e há um momento de tranquilidade muito breve e começam a surgir logo outras questões: "E se o médico se enganou?" Aqui está a prova de que a questão não é a situação em si, é o modo como eu estou a lidar com ela"

Nessa altura houve alguém, que não o próprio António, que tivesse percebido o que podia estar a acontecer e tivesse falado consigo sobre isso, ou teve de ser mesmo um processo muito pessoal?
A minha irmã esteve sempre presente, porque a minha irmã está ligada à área da saúde. Embora eu ache — porque não se falava, não é? — que ela também não sabia o que era. Num dia de desespero, liguei à minha irmã a chorar a dizer que não era capaz de sair de casa. Foi a ela que eu liguei. E percebi que precisava de ajuda, mas esse processo acho que é sempre muito pessoal. É uma coisa que tem de partir da pessoa, quando começa a perceber que a sua vida está limitada de alguma maneira. Porque traços obsessivos todos temos. Qualquer pessoa que está aqui presente nesta sala pode arrumar as cuecas pela cor e isso traz-lhe tranquilidade. E não há problema nenhum. Agora, se ela sente que isso lhe limita a vida, se passa três horas a organizar as cuecas e as gavetas todas ou se não é capaz de sair de casa sem fazer isso, aí já começa a apresentar um limite à sua própria organização do dia. Eu estava nesse nível, não me conseguia organizar, já não saía de casa, e essa decisão de procurar ajuda, obviamente, teve de ser minha.

As suas ideias fixas tinham sempre a ver com dano para si próprio ou para os outros? 
Tinham a ver com tudo, com dano a mim próprio, com os outros… Eu sei de onde vem, da minha história. É curioso, eu consigo relacionar porque é que tenho estas estas questões com a minha infância e com a história da minha família — e cada um terá a sua própria história. Há uma muito engraçada — acho piada às coisas agora, como é óbvio —, por volta dos 18 ou 19 anos, já namorava com a Catarina — nós já somos pessoas muito velhas — e, não sei porquê, lembrei-me de um corte de cabelo que tinha feito há não sei quantos anos, em que o barbeiro me cortou um bocadinho da orelha. E isso é um pensamento perfeitamente normal, mas, de repente, surge aquela vozinha chata que coloca a questão do demo, que é: “E se?”. E eu sei que não é um pensamento real, provavelmente nem sequer plausível é, mas a questão está lá. E nós temos tendência para atribuir significado aos nossos pensamentos.

A sua ideia era que podia ter apanhado uma doença infecciosa.
Sida, provavelmente. Com o corte que ele me tinha feito. Porque depois vêm as associações, os estereótipos todos envolvidos. Eu vivia nos Olivais e aquilo era um bairro com muita gente esquisita, liga com a história da seringa… Portanto, muita gente esquisita e àquele barbeiro também vai muita gente esquisita, alguém podia ter ido antes de mim e ser um toxicodependente. A criatividade é uma coisa incrível, para o bem e para o mal.

Isso durou quanto tempo? 
Eu contei isto à Catarina, na altura, e ela obviamente estranhou, não sabia lidar com isto. Tal como eu não estava a saber, ela também não sabia.

Nessa altura já tinha diagnóstico?
Não. Só tive diagnóstico aos 26 ou 27 anos, por aí. A Catarina estranhou e não lhe fazia sentido a ideia, mas aquilo todos os dias estava na minha cabeça — porque depois começa a juntar-se a ideia de “e se eu tenho?”, “e se já contaminei a minha namorada?”, “e se já contaminei mais pessoas?”, “eu treino a praticar artes marciais e às vezes corto-me, às vezes há sangue misturado”, “tu estás a ser irresponsável” — tem muito o peso da responsabilidade. E, obviamente, o que é que tive de fazer? Tive de ir fazer exames. E aqui há um pormenor muito curioso das questões da perturbação obsessiva-compulsiva: é que eu fiz os exames, os exames obviamente vieram negativos, estava tudo bem, saúde espetacular, e há um momento de tranquilidade muito breve e começam a surgir logo outras questões: “E se o médico se enganou?”; “E se não é o meu sangue?”; “E se só se manifesta daqui a ainda mais tempo?”. Aqui está a prova de que a questão não é a situação em si, é o modo como eu estou a lidar com ela.

E há uma resposta racional no papel e não serve.
Mas o racional não entra na equação. Porque isso é a mesma questão de alguém, como eu conheço, que acha que tem de tocar três vezes numa parede porque senão alguma coisa de mal vai acontecer. Isto causa extrema ansiedade e a pessoa sabe, obviamente, que aquilo não faz sentido nenhum, mas está lá a questão: “Vais arriscar? E se não bates e depois acontece alguma coisa e a culpa é tua?” A pessoa não é capaz de colocar isso em risco porque não fazer a ação causa uma ansiedade extrema. Então prefere manter aquele ritual que lhe traz calma. Só que depois começa a aumentar, não é? “Se fizeste isto para esta situação, se calhar é melhor fazeres também para aquela, porque senão também pode acontecer alguma coisa de mal.” E foi assim é que eu fui evitando situações. Evitava o autocarro, evitei o metro, começava a evitar sentar-me num banco na rua, começava a evitar estar em sítios com muita gente.

Até não sair de casa. 
Até não sair de casa.

Sendo que podia estar em casa e a casa também tornar-se um problema.
Obrigadinho por me estares a lembrar isso agora [risos]. Estou a brincar. Sim, é óbvio.

"Um dia estava com um amigo que é homossexual, estávamos lá todos à conversa, eu nunca tinha tido problema nenhum e a minha cabeça diz-me: "E se tu és homossexual e não sabes?" Pumba. A partir daqui, esquece. Há um ataque de pânico, de ansiedade, não pelo facto em si, mas pela dúvida"

Quando é que chega finalmente o diagnóstico? Vai ao médico? É um médico de família ou um psicólogo?
Aos 18 anos, quando já estava na faculdade, tive essa crise, em que liguei à minha irmã, fui ao psicólogo da faculdade — que era um psicólogo muito estranho, como todos os psicólogos. Eu estou a brincar, como é óbvio, porque o que seria de nós sem os psicólogos, a psicoterapia e a psiquiatria? Ele ajudou-me na minha desconstrução mental, mas não me explicou o que é que era. Ou seja, ele não me fez um diagnóstico. Ou melhor, ele terá feito o diagnóstico, mas não me disse qual era a questão. E lembro-me de que fui a umas quantas sessões e ele fazia-me esquemas e explicava-me o meu modo de raciocínio, normalizava os meus pensamentos. Quando eu dizia, por exemplo, “ah, vou a um restaurante e, se vejo uma colher com uma mancha, não sou capaz de comer porque acho que pode estar contaminada ou suja”, ele dizia-me: “Mas eu também acho que isso pode estar sujo, se calhar também não comia. Não acho que faça mal, mas se calhar também não comia. É uma opção comer ou não comer, mas acho que não vem nenhum mal daí”. Tentava normalizar e fazia-me uns esquemas de como é que funciona a mente, de como nós, respondendo a um pensamento, vamos estar a dar-lhe importância e como podemos quebrar esse ciclo. Acabei por deixar de ir a esse psicólogo, já não me lembro porquê. Sei que ele ajudou-me e, provavelmente, tranquilizei-me e tive ali um período de acalmia. E andei assim até aos meus 26 anos, talvez. Ainda fiz outras terapias mais alternativas — havia uma que era sofrologia, com uma senhora alemã muito castiça, que tem a ver com respiração e eu encontro validade naquilo, mas na altura só queria que me tirassem as ideias da cabeça e aquilo não fazia sentido para isso.

Mas foi procurando ativamente outras terapias? 
Mais por incentivo da minha irmã, que me dizia: “Oh pá, se calhar devias experimentar isto”. Ia experimentando, mas nunca ficava lá muito tempo.

Eram sobretudo coisas para combater a ansiedade?
Para tentar combater a ansiedade e estes pensamentos obsessivos. E só aos 26 anos, já eu vivia com a Catarina, tive uma crise de tal maneira que…

A do corte no barbeiro? 
Não, essa passou. Isso ia passando e iam surgindo outras, iam surgindo muitas ao longo do tempo.

E eram muito frequentes? Eram muito coladas? 
Geralmente resolvia-se um assunto e quando se resolvia era porque estava a ser substituído por outra coisa qualquer. Podia ser uma coisa mais leve, podia ser uma coisa mais intensa, às vezes num período de trabalho ou de mais exames, se calhar não me ocupava tanto a cabeça com questões obsessivas porque estava muito concentrado, mas tive de tudo. Há questões que relato no livro, que hoje são muito distantes e de que me rio. Por exemplo: houve uma altura da minha vida em que achei que era homossexual, o que é uma coisa perfeitamente normal, podia ser e podia achar.

Nessa fase ainda?
Na faculdade. Porque um dia estava com um amigo que é homossexual, estávamos lá todos à conversa, eu nunca tinha tido problema nenhum e a minha cabeça diz-me: “E se tu és homossexual e não sabes?” Pumba. A partir daqui, esquece. Há um ataque de pânico, de ansiedade.

Não pelo facto em si, mas pela dúvida? 
Pela dúvida. Só que o problema é que, a partir do momento em que se assume a dúvida, é como se assumisse a realidade. E então entrei num registo de “tenho de tirar isto da minha cabeça”. Mas torna-se obsessivo porquê? Porque eu passei a questionar todas as minhas ações. Já vou explicar porque é que isto é muito engraçado, porque na altura não teve graça nenhuma. São os estereótipos que se criam na cabeça: “Será que eu tenho trejeitos? Será que eu ando de certa maneira?”. Olhava para um homem e pensava: “Estou a gostar de estar aqui ao pé deste gajo, mas será porquê? É por estar a conversar com ele? Será que ele é bonito? Deixa-me tentar perceber se ele é bonito. Será que não é bonito? Porque é que eu gosto deste filme? É pelo ator? É pela história?”. E isto durante 24 horas. Em qualquer interação com um homem, entrava neste registo. Até que, como tinha vários amigos homossexuais a quem acabei por contar esta história, eles riram-se na minha cara, porque, como eles costumam dizer — e passo a citar — “as bichas têm um radar” e eles todos me diziam: “Pá, tu podes ser o que tu quiseres, mas não és homossexual”.

Eles tinham a certeza.
Eles tinham a certeza e eu dizia “mas como é que vocês sabem, eu posso ser e vocês não sabem”. Já nem me lembro muito bem como é que esta ideia me saiu da cabeça.

  • Entrevista com António Raminhos, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 09 de Setembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
    A entrevista foi gravada em setembro numa das salas do hotel Pestana Palace, em Lisboa
    FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
  • Entrevista com António Raminhos, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 09 de Setembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
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    FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Foi substituída
Não sei, já não me lembro. Mas porque é que eu acho que isto foi engraçado? Porque quando, anos mais tarde, comecei a ler muita coisa sobre o transtorno obsessivo-compulsivo e mandei vir livros dos Estados Unidos que tinham muitos casos de estudo. A quantidade de pessoas que passou exatamente pelo mesmo processo mental que eu… É muito curioso como é que uma pessoa do outro lado do mundo tem exatamente os mesmos processos mentais que eu. Sobre a orientação sexual, sobre a religião, sobre a penitência, o pecado. Sobre uma questão que me aconteceu muito também, que é o provocar dano. Ou seja, ir na estrada e passar por uma lomba numa noite escura — eu viajo muito, às vezes por sítios muito escuros, nas aldeias —, bater com o carro numa lomba ou numa pedra e achar: “E se era alguém estendido na rua e eu passei por cima? E se atropelei alguém que ia a andar e estou distraído a ouvir música?” Já cheguei a voltar para trás, para confirmar. E depois vêm esses livros e falam de casos iguaizinhos ao meu. Há um livro de que gosto muito — chama-se “When In Doubt, Make Belief”, portanto, “Na Dúvida, Acredita” — que é de um jornalista de rádio e a principal questão era exatamente esta, o provocar dano. Ele vivia constantemente com medo de fazer mal a alguém e não se aperceber disso. Já me aconteceu, por exemplo, estar num semáforo e refilar com alguém ou fazer uma ultrapassagem — estás a ver quando o sinal está amarelo e nós passamos e a pessoa que vai à frente começa a abrandar? Já me aconteceu passar à frente e a pessoa buzinar. E eu penso: “E se aquela pessoa se irritou comigo e tem problemas de coração, vai ter um ataque cardíaco, morre e a culpa é minha?” E isto são segundos, é uma questão de segundos. Então fico lá, às vezes abrando e fico a olhar para o carro da pessoa pelo retrovisor, a ver se ela está a respirar. Já cheguei a seguir um carro durante um tempo, a pessoa deve ter estranhado. Portanto, pode ser tudo e mais alguma coisa. E é engraçado perceber que não é um processo só nosso, qualquer que seja a ideia já aconteceu de alguma maneira a alguém.

Passa então pela crise maior e acaba por ir a um psicólogo.
A crise maior foi muito gira — na altura não teve graça nenhuma. A minha família é alentejana e todos os Natais a malta encontra-se e os meus tios do Alentejo trazem borrego. Trazia-se borrego e fazia-se borrego de todo o feitio: ensopado de borrego, borrego no forno, blá blá blá, costeletas de borrego e uma iguaria que pouca gente comia, que era a cabeça de borrego no forno. E eu comia, na altura. E de vez em quando experimentava comer a mioleira com pão e sal e pimenta, e era bom. E um dia há um almoço normalíssimo em que estou a comer com os meus irmãos e, pouco tempo depois, cai-me no pensamento: “E se existe a doença das vacas loucas nos borregos e tu não sabes?” E eu: “Isto não faz sentido nenhum”. “Faz, faz, porque nas vacas loucas também não se sabia”. Fico imediatamente mal disposto, não sou capaz de comer mais nada.

Que idade tinha?
Aqui já tinha por volta de 26 anos. Estava lá uma prima minha, curiosamente veterinária…

Ah, verbalizou isso.
Não, não verbalizei nunca desta maneira, mas comecei — que é um bom tema de conversa de Natal — a dizer: “Então e se as ovelhas tivessem a doença das vacas loucas?” Já não me lembro de como é que comecei, mas disfarcei o tema. Porque, por acaso, a minha prima trabalhava muito com bovinos e caprinos e disse que não fazia sentido nenhum, como é óbvio, mas não me tranquilizou, porque eu, na minha cabeça, pensava “mas quem é ela, lá por ser veterinária não quer dizer nada”. E lembro-me de que nessa noite fui para casa, vomitei, estive para aí dois dias sem dormir, com diarreia, completamente desregulado, e aí obviamente voltei ao registo de “tenho de saber o que é que é isto”. E foi a primeira vez que usei o Dr. Google — que geralmente quem é obsessivo ou tem questões de ansiedade só usa para o mal, porque o diagnóstico do Dr. Google é sempre cancro ou sida, é sempre uma doença terminal. Dói um dente — tumor, pumba, já está. E eu, pela primeira vez, usei para o bem. Comecei a fazer uma busca mais aprimorada dos meus sintomas, algumas palavras-chave de que já não me lembro — e sobretudo em inglês, porque já sabia que em Portugal não ia encontrar nada — e começo a ir parar a fóruns de OCD, Obsessive Compulsive Disorder. E começo a ler coisas iguais à minha história: doença das vacas loucas, homossexualidade, provocar dano, religião, infeção, sida, tudo. E isso trouxe-me tranquilidade, como é óbvio, porque foi a primeira vez que percebi “eu não sou estranho, há mais pessoas que estão a passar por isto”. A partir daí comecei a procurar em português, já com o nome perturbação obsessivo-compulsiva, e foi assim que fui ter ao meu psicólogo.

"Há uma componente genética que identifico claramente na minha família. A minha tia, muito querida, comprava a fruta, lavava a fruta peça a peça e metia no fruteiro. E depois lavava outra vez quando fosse comer. E andava sempre com um frasquinho de álcool. Hoje em dia, ela é que a sabia"

Como é que lhe é explicado o diagnóstico? 
Já lá vão muitos anos, 14 pelo menos, mas lembro-me de que eu próprio já fui com o diagnóstico. Não fui dizer “olhe, eu tenho isto”, mas foi “eu acho que é isto” e, obviamente, tivemos duas consultas antes de ele me confirmar “sim, tem tudo para ter esse traço”.

Nessas consultas, o psicólogo só o ouviu? 
Sim, só me ouvia e fiz uns testes também. Na altura, a perturbação obsessiva compulsiva era do espectro da ansiedade, acho que agora já não está nessa categoria, mas fez-me esse diagnóstico e aconselhou-me um psiquiatra para tomar medicação, primeiro, para me ajudar no trabalho.

O diagnóstico nesse momento serve-lhe mais como alívio por finalmente ter um nome ou teve também o peso de pensar que isto nunca se vai resolver totalmente?
Ainda hoje penso isso, não acredito numa cura. E isto não é uma coisa derrotista, não tem a ver com o estar conformado ou o que quer que seja. Eu simplesmente lido no dia a dia, que é aquilo que qualquer pessoa devia fazer com a sua vida, não é? Porque se eu entrar no registo da dúvida, nesse sentido de “será que vou estar a curado, será que não vou estar curado?”, já estou a fazer uma projeção. E, curiosamente, é das poucas áreas da minha vida onde não faço projeções — é na doença sobre projeções. Ou seja, limito-me a viver. “OK, hoje estou a conseguir lidar com esta obsessão: será que vou conseguir lidar sempre? Não sei, mas hoje estou.” Curiosamente, acho que nunca entrei nesse registo de “quero-me curar, quero é ficar curado”. Fui muito de “quero ficar melhor e quero estar melhor, quero aprender a lidar com isto”. E foi assim que iniciei esse caminho.

E explicaram-lhe o quê? Que era uma ligação que estava cortada no cérebro?
Há várias componentes. Há uma componente genética, que identifico claramente na minha família. O meu pai é obsessivo-compulsivo e não sabe, é um “puro obsessivo”. Eu também tenho mais este registo “puro obsessivo” — tive muito a questão de lavar as mãos também, mas isso foi fácil de resolver porque é uma coisa física, palpável.

Até ao extremo de começar a ficar com as mãos feridas? 
Mas depois, fazendo técnicas de exposição, na terapia com o meu psicólogo, comecei a aprender a lidar, fazendo determinados exercícios de reduzir — OK, se lavas cinquenta, lava só dez; tem uma toalha só para ti, ao invés de limpares as mãos a uma toalha onde limpam todas as pessoas; todas as atividades que fazes em casa que consideras porcas e infecciosas, seja despejar o lixo, lavar a loiça, etc., faz todas e lava as mãos só a seguir. Vamos aprendendo mecanismos, mas isto são coisas palpáveis, não é? Agora, quando és um puro obsessivo, as obsessões desenvolvem-se muito só na cabeça, tal como a história do “e se eu atropelei alguém?”. É uma coisa que se desenvolve na minha cabeça, não posso ir ad eternum atrás da pessoa ver se a atropelei ou não. Até porque podem surgir outras ideias que são mesmo só na minha cabeça. Então, o meu pai é muito este registo, puro obsessivo. A minha tia era obsessivo-compulsiva.

Diagnosticada?
Não. Ninguém se diagnosticava. A minha tia, muito querida, comprava a fruta, lavava a fruta peça a peça e metia no fruteiro. E depois lavava outra vez quando fosse comer. E andava sempre com um frasquinho de álcool. Hoje em dia, ela é que a sabia. Andava sempre com um frasquinho de álcool para lavar as mãos, para desinfectar tudo à volta. Portanto, há esta componente genética. Depois há uma componente que vem, obviamente, do meu próprio desenvolvimento, que acho que tem a ver com a minha estrutura familiar, a minha falta de estrutura, a falta de muita coisa que aconteceu e que me obrigou a compensar.

"Toda a gente diz 'xi, o Xanax, agora vou tomar Xanax, estou mesmo maluco da cabeça'. Depois tive de ir a um consultório de psiquiatria falar com um psiquiatra, e o psiquiatra é o médico dos malucos. Estou tramado, agora vou ao médico dos malucos"

Protegia-se nessas compulsões?
Sim, acho que é uma maneira interna de assumirmos o controlo — falacioso, não é? Esse controlo não existe, ninguém controla nada, na realidade. Nós achamos que controlamos tudo e a pandemia, por exemplo, é a prova exatamente do contrário. É uma tentativa de controlo que não existe. E há essa componente que depois se caracteriza nos neurotransmissores. A informação está sempre repetida, os neurotransmissores não funcionam de forma normal e então a informação é bloqueada e está sempre a ser repetida. E por isso é que, geralmente, um dos primeiros medicamentos que se toma é a sertralina, que é um inibidor de recaptação de serotonina, que é essa molécula também associada à felicidade.

Quando lhe disseram que era preciso fazer medicação, teve alguma resistência a isso?
Claro. Tragédia. Sou maluco! Então agora vão dar-me medicação é porque sou maluco!

Sentiu logo esse estigma?
Claro. Claro que senti.

E falou sobre isso com alguém? 
Já não me lembro, mas lembro-me de que há um sentimento de derrota, do tipo “fogo, vou ter de tomar…”. E depois receitou-me Xanax também, para SOS.

Só o nome já faz diferença.
Já conhecia, não é? E toda a gente diz “Xi, o Xanax, agora vou tomar Xanax, estou mesmo maluco da cabeça”. Depois tive de ir a um consultório de psiquiatria falar com um psiquiatra, e o psiquiatra é o médico dos malucos. Estou tramado, agora vou ao médico dos malucos.

Mas escondeu isso de alguém, por causa desse estigma?
Não. Ou seja, não era uma coisa pública, primeiro porque eu não tinha uma vida pública como tenho hoje.

Digo das pessoas à sua volta.
Sim, mas acho que não escondi. Não escondi, mas também não disse. Ou seja, se me perguntassem o que é que estava a tomar, dizia. Acho que tomei uma decisão ali no meio deste processo todo, que foi quando disse aos meus pais: “Eu tenho esta questão, vou a um psicólogo, vou tomar medicação e estou-me a borrifar para aquilo que vocês estão a pensar. E quando disse isto aos meus pais, e os meus pais ficaram muito sérios a olhar para mim, acho que foi a primeira tomada de decisão de “não interessa, estou-me a borrifar para o que os outros estão a pensar, porque isto não é sobre eles, é sobre mim”. E depois a própria desconstrução que foi feita ao longo dos tempos sobre a psiquiatria ajudou bastante. O meu psiquiatra desarmou-me logo à primeira ou à segunda consulta quando me disse: “Se tu tivesses um problema de hipertensão, não tomavas um comprimido todos os dias?” E eu: “Tomava”. “Então, porque é que não tomas também isto? Se é uma questão de saúde, se é uma desregulação que não foste tu que provocaste e é uma desregulação do teu corpo?” E acho que as pessoas muitas vezes não têm essa noção, associam muitas vezes a cabeça como sendo elas e não como um órgão, não é? Porquê? Porque é o cérebro que nós utilizamos para pensar e misturamos muito o cérebro com a nossa identidade. E nós não somos o cérebro. O cérebro é um órgão. É um órgão, como é o coração. Se eu tomo um comprimido para o coração, porque é que não tomo um comprimido para o cérebro? Porque há aquela ideia falsa de “não, eu consigo resolver, eu consigo resolver”. Então porque é que o Salvador Sobral também não resolveu e foi fazer o transplante? Porque é que ele também não disse “não preciso de transplante, eu resolvo isto sozinho”? Ou porque é que uma pessoa, quando parte o braço, também não diz “não preciso de gesso, ele fica aqui, com foco e fé eu consigo solidificar estes ossos”? É a mesma coisa.

"Uma pessoa que lava cinquenta vezes comprometer-se que só vai lavar vinte, aguentar a ansiedade de não lavar as outras trinta e perceber que a ansiedade vai até um nível, mas chega ali e baixa. É isto que quem lida com questões de ansiedade ou com uma perturbação obsessivo-compulsiva tem dificuldade em fazer, é enfrentar a ansiedade"

Tomou medicação durante muito tempo? 
Estou a tomar neste momento.

Sempre seguido? 
Não, tomei, talvez, dois anos a sertralina. Raramente recorria aos Xanax, só os tinha em SOS, não sentia necessidade. Depois deixei de tomar, fiz o desmame normal. Mais tarde voltei a ter outras crises, voltei a tomar, mas aí cometi aquele erro que é muito comum: achei que poderia controlar a medicação, que é um estigma disfarçado. Porque há a ideia de que nós vamos ficar dependentes da medicação e “eu não quero ficar dependente disto”. Uma pessoa que tem depressão não vai ter de tomar os comprimidos para o resto da vida. Se uma depressão for diagnosticada cedo, dentro do espaço normal, a pessoa faz a medicação e volta à vida normal. Tal como quem tem um transtorno de ansiedade, se tomar a medicação e procurar resolver a sua questão, arranjar a sua própria maneira de lidar com aquilo, a medicação nem será sempre essencial. Eu tomei, deixei de tomar, voltei a tomar e deixei de tomar novamente, até que, há um ano, tive uma outra crise grande e, claramente, percebi “OK, preciso de uma ajuda. Baldei-me um bocadinho, então preciso aqui de uma ajuda”.

E a terapia começou nessa altura?
A terapia começou aos 26 anos e tenho sido sempre acompanhado pelo meu psicólogo, embora tenha sido por fases.

Sempre o mesmo?
Sim, mas eu tive o primeiro psicólogo; lá pelo meio, dentro das tais terapias que eu ia fazendo, tive outra psicóloga, mas de que não gostei — ajudou-me em algumas coisas, curiosamente nada relacionado com o transtorno obssessivo-compulsivo, mas ajudou-me noutras questões que só vim a perceber mais tarde; e este psicólogo foi o terceiro ou quarto. Trabalho com ele há catorze anos, sendo que tive terapia durante, sei lá, dois, três anos de seguida, praticamente semanalmente, e depois ia lá muitas vezes quase para fazer revisão da matéria, fazer cadeiras. Quando sentia que estava a ter uma obsessão qualquer, que estava a ter dificuldade de controlar, ia lá fazer um bocadinho de revisão da matéria.

Há pouco falava das técnicas de exposição. O que é isso? 
É uma terapia dentro da própria terapia. No transtorno obsessivo-compulsivo e nas questões de ansiedade, as terapias de exposição podem ajudar muito. É basicamente expor a pessoa, de forma controlada — só o terapeuta e a pessoa em questão é que podem chegar a essa conclusão, se conseguem fazer isso ou não —, ao seu medo. E isto passava, às vezes, até por jogos mentais. Por exemplo, eu ir no carro e achar que tinha feito mal a alguém, refilar com alguém, a pessoa refilar comigo e eu pensar “e agora se a pessoa tem um ataque cardíaco e passa-se da cabeça?”. Aqui, sabendo que isto é uma situação irreal, é eu desconstruir a ideia. Eu começar a exagerar a situação:

— Sim, eu matei-a.
— Então e depois? 
— Depois a culpa é toda tua.
— Então e depois? 
— Então depois vou preso, porque vou à polícia e vou-me denunciar de certeza e eu próprio vou dizer e vai ser uma tristeza.
— Então e depois?
— Depois as minhas filhas vão ficar sem pai, porque vou preso.

É tentar tornar a ideia tão ridícula que já nem o António acredita nela?
De duas maneiras: pode ser ridículo pela brincadeira, no sentido de “sim, sim, atropelei, eu sou o famoso assassino de pessoas através de gritos”, por exemplo; ou de tal forma que a própria cabeça cansa-se — já temos tantas hipóteses que a própria cabeça é como se dissesse “eh pá, desiste, já não tenho paciência para este gajo”. Isto é uma técnica mental, mas há coisas físicas, como por exemplo o lavar as mãos. Uma pessoa que lava cinquenta vezes comprometer-se que só vai lavar vinte, aguentar a ansiedade de não lavar as outras trinta e perceber que a ansiedade vai até um nível, mas chega ali e baixa. É isto que quem lida com questões de ansiedade ou com uma perturbação obsessivo-compulsiva tem dificuldade em fazer — é enfrentar a ansiedade. Uma vez vi num programa, há muitos anos, uma pessoa que não conseguia comer pizzas, porque achava que as pizzas podiam estar envenenadas. E isto era um programa britânico com terapeutas, meio reality show, em que uma das técnicas de exposição era exatamente a pessoa ter uma pizza, numa festa com malta amiga para lhe dar força, e ela a comer. Nunca vi ninguém comer uma fatia de pizza com tanto sofrimento, coitada.

"Hoje em dia compreendo a importância de parar, a importância de estarmos em silêncio, de estarmos com os nossos pensamentos e aprender a não lhes dar importância, a relacionarmo-nos com eles"

Qual foi a coisa mais esquisita que fez para tentar forçar esse tipo de reações? 
Atirar bolachas ao chão e comê-las. Porque eu tinha medos de contaminação, não é?

Qual chão?
Todos. Começou em casa e acabou na rua.

E isso era um sofrimento para si?
Claro, horrível. Lembro-me de que o meu psicólogo disse assim: “Olha, vais escolher um pacote de bolachas, as tuas favoritas, vais para casa e, quando te lembrares, pegas numa bolacha, atiras a bolacha para o chão e comes”. E eu: “Não, não vou, qual é a necessidade de estar a atirar bolachas para o chão e as comer?”. E ele disse-me: “Uma pessoa sem estas questões não teria necessidade, mas tu tens essa necessidade para perceberes e lidares com a ansiedade, porque em princípio não haverá problema nenhum”. E aquele “em princípio” fica sempre lá. E eu: “Tudo bem, vou fazer este exercício”. Cheguei a casa e quando me lembrei de fazer o exercício estava na cozinha. E estive para aí, sei lá, dois ou três minutos a olhar para o chão para encontrar o sítio mais imaculado possível. Pego na bolacha e pouso a bolacha assim, parecia que estava a pegar uma bomba, muito devagarinho, para tocar o mínimo possível, para não andar a esfregar, e fico olhar. E só a sensação de ver a bolacha no chão e saber que ia ter de a comer a seguir foi horrível.

É físico? É nojo?
É físico, é ansiedade. Se já tiveste ansiedade, sabes. É o aperto na garganta, são as palpitações, é quase uma noção de perda de realidade, é tudo ao mesmo tempo, os suores frios, as mãos a transpirar. E eu pego na bolacha e como. E pensei: “Não senti nada especial. Olha, fixe. Afinal consigo fazer isto”. E de repente lá vem a cabeça e diz-me: “Mas tu vieste da rua, não te descalçaste e andaste aqui na cozinha. Por onde tu já andaste hoje? Sabes por onde é que andaste? Viste o que é que pisaste?” Eu não sei como é que terei reagido, mas quase de certeza que tive de me sentar para não desmaiar, para não cair para o lado e aguentar aquela ansiedade. Mas acontece aquilo que obviamente é o normal, a ansiedade cresce, mas chega a um ponto em que não passa daquele nível e começa a reduzir. E o objetivo destes trabalhos é exatamente isso, é nós percebermos que não vai acontecer nada.

A ansiedade é consequência, está no fim da linha, mas é também o gatilho?
Acho que é de duas maneiras. A ansiedade pode ser o gatilho para o pensamento, pode ser o gatilho para que a minha cabeça valide o pensamento. Porque se eu dou importância a um pensamento, a uma coisa que me preocupa, dispara aquela ansiedade. Portanto, a partir daqui o meu cérebro já assumiu que este pensamento é importante. Se este pensamento é importante, pronto, a partir daqui está num outro extremo. Por exemplo, quando eu pensava na questão da homossexualidade, estar numa festa com amigos provocava uma extrema ansiedade, porque sabia que a minha cabeça se calhar ia buscar ideias parvas. Ou andar de autocarro — sabia que andar de autocarro ia provocar-me ansiedade. Mas a ansiedade pode ser o que dá importância ao pensamento.

Neste tempo que foi passando desde o diagnóstico, em que já teve e não teve terapia, já esteve medicado e já esteve sem estar medicado, quando vem uma crise já consegue identificar porquê? É uma fase, por exemplo, em termos profissionais ou pessoais, de maior trabalho e de maior stress?
Identifico graças a várias coisas — agora vou entrar na minha fase Gustavo Santos. Há muitas coisas que descurava, que achava que não faziam sentido, como por exemplo a meditação ou o mindfullness. E hoje em dia compreendo a sua importância, a importância de parar, a importância de estarmos em silêncio, de estarmos com os nossos pensamentos e aprender a não lhes dar importância, a relacionarmo-nos com eles. Porque — isso é um facto científico, não sou eu que estou a dizer — nós não controlamos os pensamentos, ninguém controla, mas podemos tentar fazer algo que é escolher aqueles a que damos importância. E essa é a grande diferença, porque podes ter um pensamento parvo e não lhe dar importância. Dizer: “Que parvoíce, isto que eu estou a pensar”. E segues a tua vida. Posso ter exatamente o mesmo pensamento e ficar: “Porque é que é que estou a pensar nisto? Mas se estou a pensar, é porque isto é importante”. Ou seja, o mesmo pensamento pode ter vários caminhos. O mindfullness são pequenas técnicas que nos ensinam a estar em convívio com os nossos pensamentos e tentar não lhes atribuir importância.

"Posso evitar o esferovite e está tudo bem, estou numa altura em que não sou capaz de lidar com isto; ou posso enfrentar o esferovite e ver isto como uma oportunidade para perceber em que ponto estou nas minhas obsessões. Um teste. E é isto que tento aplicar no meu dia a dia. Depois passo o teste ou não passo o teste"

O que é que faz mais para conseguir esse estado?
Procuro fazer desporto, gosto de ler — embora seja muito preguiçoso —, caminho…

Coisas que lhe permitam essa pausa?
Sim. E faço mesmo práticas meditativas, 10 ou 15 minutos, tento que seja todos os dias. Agora nas férias, com três miúdas em casa, é impossível. Estou à espera que elas regressem à escola para voltar aos meus hábitos, mas tento que seja de manhã e às vezes até faço um bocadinho à noite também. Mas o que é que isto permite? Isto permite que, quando tenha uma obsessão, consiga identificá-la mais facilmente e não me relacionar tanto com ela. Isto não quer dizer que eu diga “OK, identifiquei, fixe, vai-te embora”. Não. Posso ter as sensações físicas, porque sou muito psicossomático — se achar que tenho um problema na garganta, sou capaz de andar uma semana com dores na garganta —, mas a grande diferença é que antes, se calhar, pensava nisso e ficava: “Isto é uma doença, se calhar tenho de ir ao médico, e porque é que isto não pára de doer?”. E agora sou capaz de ter uma dor na garganta e estar normal, não lhe estou a atribuir valor.

Sabendo que pode ser psicossomático. 
Sim. Uma vez, quando era jornalista ainda, tinha um sinal na perna e meti na cabeça que tinha um problema qualquer, que podia ser um tumor. Andei para aí seis meses com uma dor na perna e depois desapareceu. Desapareceu porque pensei noutra coisa qualquer. Mas hoje em dia, se tiver isso, a minha reação é: “OK, estou a pensar nisto. O sinal parece-te estranho? Não. Tem alguma coisa que achas há necessidade de ir ao médico? Não, não me parece. E, mesmo que tenha, vou deixar passar uns tempos e logo me relaciono outra vez com isto”. E sigo a minha vida. “Isto vai-me continuar a doer, mas vou seguir a minha vida até perceber se é uma necessidade mesmo real ou não.” Sou capaz de perceber: “OK, estou com uma crise. Porque é que agora ando mais ansioso? Porque é que ando a dormir menos? O que é que estou a fazer de diferente? O que é que alterei na minha vida para estar neste estado?”. E, geralmente, são questões de trabalho, mudanças de vida. Sei que elas vão aparecer, então vou tentar lidar com elas de forma tranquila e perceber, mais tarde, o que é que isto poderá ser ou não.

Alguma vez teve de recusar trabalhos por estar numa fase mais difícil? 
Não, mas já passei mal em muitos trabalhos por estar em sítios onde não queria estar.

A atuar, por exemplo? 
Sim.

E ter uma obsessão no meio de um espetáculo? 
Desenvolvi uma pancada há uns anos com esferovite, porque achava que o esferovite, se fosse inalado, era muito perigoso e podia fazer-me mal e não sei o quê. E cometi o erro de ver coisas sobre esferovite e havia pessoas a trabalhar com esferovite sem máscaras — e eu assim: “Estes gajos estão mortos, já”. Mas fazia-me confusão. E eu vou fazer um programa de televisão na SIC, o Lip Sync, em que faço de Elsa (do filme Frozen) e a neve era…? Esferovite. Já não me lembro de como é que disse, mas acho que aí já assumi, porque isto já foi muito recente, talvez dois, três anos. Assumi e disse “olha, eu não lido bem com esferovite” — que é uma coisa muito estranha de dizer a alguém —, “causa-me imensa confusão”. Não fui muito dentro da questão porque as pessoas depois iam começar: “Mas porquê?” Então disse só — o que parece um bocado de diva: “Olha, eu não lido bem com esferovite, isso faz-me muita confusão, se pudermos evitar…” E claro, estás a ver, produção de televisão: “Não, a gente já comprou a esferovite”. E eu: “Então metam o menos possível, porque faz muita confusão”. Não só não puseram menos como puseram mais e eu, internamente, estava de rastos.

E os dias a seguir?
Neste momento, como o meu crescimento já é outro, não só consegui lidar como vejo o engraçado das situações. Um bocadinho de Gustavo Santos: é engraçado como tenho esta questão e esta questão me aparece à frente. E nós podemos ver sempre estas questões e não é preciso uma pessoa acreditar em Deus, no universo, pode ser uma pessoa muito pragmática, ateu, não tem nada a ver com isso. Posso enfrentar uma situação de duas maneiras. Por exemplo, em relação ao esferovite: posso evitar o esferovite e está tudo bem, estou numa altura em que não sou capaz de lidar com isto; ou posso enfrentar o esferovite e ver isto como uma oportunidade para perceber em que ponto estou nas minhas obsessões. Um teste. E é isto que tento aplicar no meu dia a dia: quando enfrento situações que me preocupam, tenho esta análise de “como é que estou hoje, estou capaz de poder enfrentar isto?”. Se estou, sim senhor, vamos lá ver. Depois passo o teste ou não passo o teste. Mas, sobretudo, hoje em dia, resultado do mindfullness, de ler muito, se estou numa obsessão e não consigo lidar com ela, não me vitimizo nem fico a pensar “mas porquê eu, isto está-me sempre a acontecer”. Simplesmente, não consigo. É como o Ronaldo. O Ronaldo não marca todos os golos, falha golos em frente à baliza, às vezes joga bem, outras vezes joga mal. É exatamente a mesma coisa: às vezes consigo, outras vezes não.

E na vida pessoal? O aparecimento de crianças impede algumas rotinas, mas até nas próprias obsessões — o medo do dano nelas próprias —, como é que isso foi para si?
O próprio facto de ter várias filhas é uma obsessão. “Só duas não, porque depois vai acontecer algum azar, tenho de ter mais outra.” [risos] Mas sim, tive obsessões relacionadas com elas, quando eram muito pequeninas, do deixar cair — “parece que vou deixá-la cair, e se a deixo cair de propósito?”, quase como pensamentos de loucura. E porque é que isto causa ansiedade? Porque a pessoa sabe que aquilo não é real, sabe que aquilo não faz sentido, mas o pensamento está lá — e aqui, lá está, técnicas de exposição, ou seja, eu ficar desconfortável, ficar com ela ao colo, ficar ali e tentar estar presente. Estar com aquele medo, mas estar a apreciar o ser que está nas minhas mãos, a minha filha, e vê-la sorrir e sentir o calor dela e a pele, enquanto estou desconfortável. Mas não responder àquilo que se está a passar na minha cabeça.

"Neste momento, por exemplo, não estou assim muito bem, mas não estou mal, já estive pior, há dois dias. Se acho que posso estar melhor? Acho que sim, acho que posso estar melhor. Agora, bem, bem, bem não, mas acho que nem é esse o objetivo"

Ter começado a falar sobre isto publicamente e sobre o seu diagnóstico ajudou-o de alguma forma?
Eu faço sobretudo por dinheiro. [risos] Mentira, não ganho nada com isto. Aliás, estou a pagar o podcast do meu bolso.

Mas ajuda no sentido de “se as pessoas já souberem, eu não sou tão esquisito?”
Não, não tem a ver com isso. Já nos meus espetáculos de stand up abordava muitas questões pessoais e da ansiedade e das obsessões. E acho que foi algo que aconteceu naturalmente. Começar a falar foi, sobretudo, a necessidade que senti de dar às pessoas aquilo que eu não tive, ou seja, uma identificação. E isto não só em relação à perturbação obsessivo-compulsiva, porque eu não sou um perturbado obsessivo-compulsivo. Sou o António Raminhos, que por acaso lida com questões obsessivas, por acaso tem uma depressão basal — eu tenho uma depressão que se arrastou já ao longo dos anos, não é uma coisa profunda, mas que esteve sempre presente e que estou a procurar resolver, porque, lá está, vou conhecendo cada vez mais um bocadinho sobre mim. E eu não sou estas coisas, eu sou tudo. Tal como uma pessoa não é bipolar — lida com a bipolaridade, não é a doença que o define. É por isso que falo do que falo para que as pessoas, de algum modo, se identifiquem, não na perturbação só, mas às vezes em pensamentos, às vezes na ansiedade, nas atitudes. E o podcast que faço está muito relacionado com isso. Não levo lá só pessoas que lidam com questões obsessivas, levo lá pessoas sobre as quais, de alguma maneira, eu quero saber mais sobre como é que elas lidam com determinadas situações pelas quais passaram. E a ideia é exatamente essa: serve para que as pessoas não se sintam sozinhas e percebam que somos todos malucos, não é?

Muitas pessoas lidaram ou olharam pela primeira vez para a sua saúde mental agora com a pandemia, que expôs problemas que já tinham ou criou outros. O António temeu que a pandemia pudesse agravar alguma coisa na sua depressão basal ou no transtorno obsessivo-compulsivo? Por exemplo, a questão da lavagem das mãos: temeu que o facto de isso ser tão incentivado pudesse tornar-se de novo uma obsessão para si?
É engraçado porque, com questões reais, sou muito pragmático. Ou seja, se realmente achar que tenho um problema de saúde, obviamente aquilo que aconselho a todas as pessoas é irem ao médico. Primeiro, na questão de saúde mental aconselho obviamente ir a um psiquiatra ou um psicólogo, mas eu, por exemplo, se  tenho uma questão que acho que é mesmo uma questão de saúde, que me chamou muito a atenção, vou ao médico, procuro resolver e não fico muito preocupado com isso, não entro num registo tão obsessivo. Quando surgiu a pandemia, era uma situação demasiado real, então tornei-me pragmático. E, curiosamente, foi o que o meu psicólogo disse. Ele achava que ia haver dois tipos de pessoas a lidar com a pandemia, pessoas que tivessem já questões relacionadas com a ansiedade: as pessoas que já lidavam com a ansiedade e que, tal como eu, aparece a ansiedade e é como se fosse a exposição de todos os seus medos, e então está aqui, é real, vamos tratar isto como deve ser, vamos lidar com a pandemia como deve ser; ou as outras, com um panicar e extrapolar e exagerar ainda mais os comportamentos que já tinham. Eu inseri-me na primeira categoria, que tem depois um revés, que é, quando passar a pandemia, se calhar posso ter tendência para voltar aos antigos hábitos. Mas com a pandemia acho que lidei até de forma relativamente tranquila, exceto nos momentos em que acho que afetou todas as pessoas: as medidas a voltarem atrás, o cansaço, o estar em contacto próximo com alguém infetado. Eu tive a sorte de não ter sido ainda infetado, mas já tive de fazer quarentenas profiláticas.

Como é que foi fazer essas quarentenas?
Fiz uma há relativamente pouco tempo e assustei-me um bocadinho. Assustei-me porque foi demasiado real, as pessoas ficaram todas infetadas à minha volta, menos eu e a minha família. Entre as pessoas com quem nós tínhamos lidado, uma delas estava infetada e o núcleo dessa família ficou todo infetado. Depois outras pessoas à volta é que não ficaram. E nós estávamos incluídos neste grupo. Mas foi essa sensação de “e se eu tenho?”. Entrei um bocadinho no registo do “e se?”. Mas, lá está, como já estou noutro nível — não quer dizer que seja melhor do que ninguém, não tem a ver com isso, mas, em relação à minha compreensão da minha vida, já consigo distinguir certas coisas, já sou capaz de relativizar. E entro muito no registo de “eh pá, é o que é, não vou fazer nada”

Nesse outro nível, já teve algum momento que lhe tivesse permitido dizer “eu já estou bem”?
Ah, não, nunca.

E acha que vai ter alguma vez esse momento? 
Não. Mas eu não estou mal, atenção. Isto são hábitos de trinta e cinco anos, não é? As pessoas às vezes querem ir ao psicólogo ou ao psiquiatra como quem vai ao dentista, que é abrir a boca e sair de lá curado e toda bonitinha. E aqui não acontece, pelo contrário, implica trabalho. Encaro a medicação como algo essencial para o equilíbrio físico, um equilíbrio biológico, mas tenho de continuar a fazer o meu trabalho, tenho de continuar a conhecer-me, tenho de continuar a perceber quais é que são os meus gatilhos, quais é que são os meus momentos. Agora, há momentos em que estou bem. Neste momento, por exemplo, não estou assim muito bem, mas não estou mal, já estive pior, há dois dias. Se acho que posso estar melhor? Acho que sim, acho que posso estar melhor. Agora, bem, bem, bem não, mas acho que nem é esse o objetivo. Acho que, sinceramente, o objetivo é o caminho que se faz. Se nós estamos sempre à espera da felicidade, nunca a vivemos. É tão simples quanto isso. Se acho que a felicidade está naquela porta lá ao fundo, eu não sei se vou lá chegar ou não, portanto mais vale aproveitá-la no caminho até lá.

Agradecimentos: Pestana Hotel Group

Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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