Foi a primeira vez que Paula Lopes Godinho viu televisão depois de ter passado por 40 dias de Cuidados Intensivos no Hospital Curry Cabral, em Lisboa. Tinha sido transferida para uma enfermaria para começar a recuperação das sequelas da Covid-19. No ecrã, passava o telejornal.
“Lembro-me de chamar o meu colega: ‘Vem cá, vem cá! O que é que está a acontecer? Estamos em guerra?’ . Tudo vazio… Eu não tinha tido a perceção do que estava a acontecer. Comecei a achar aquilo muito estranho. As notícias de falta de bens, filas para o supermercado… aquilo para mim era estranho. ‘Mas o que é que aconteceu?'”.
[Pode ouvir aqui a reportagem da Rádio Observador sobre a enfermeira Paula Godinho]
Recuperados. “Quando acordei do coma e vi as notícias na televisão, achei que estávamos em guerra”
Estávamos em meados de abril. As televisões mostravam um mundo que Paula não conhecia. No dia em que deu entrada no hospital, a 15 de março, Portugal tinha pouco mais de 200 casos confirmados de infeção e, apesar da ameaça que pairava, a vida seguia normal. Quando acordou, eram mais de 20 mil infeções e 800 mortes. O país já estava em estado de emergência há um mês.
“Parecia que tinha perdido tudo! Lembro-me de ter telefonado para casa e ter perguntado ao meu marido: ‘As miúdas estão bem?’ E ele respondeu: ‘Estão aqui em casa!’. Então não foram para a escola? ‘Paula, elas estão a ter aulas online’. E eu, completamente baralhada: ‘O que é isso de aulas online?'”. Ainda demorou até perceber o que se estava a passar.
No início de março, quando a ideia de um confinamento geral em Portugal não passava de uma hipótese, Paula sentia-se cansada. É enfermeira nas consultas externas do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, e responsável pela Unidade Móvel de Apoio Domicilário, que acompanha crianças e famílias com doenças graves. Para além disso, coordenava a equipa intra-hospital de paliativos pediátricos.
Nos últimos tempos, estava a trabalhar muito e percebeu que precisava de fazer uma pausa. Sentia-se em baixo, mas não ligou muito. Pensou que era apenas cansaço.
O marido de Paula foi o primeiro a ser internado. João é chefe de cabine em voos de longo curso na TAP. Tinha acabado de regressar de um voo em Brasília quando começou a sentir-se cansado e com febre. Os sintomas agravavam-se e a 13 de março deu entrada no Hospital Curry Cabral.
Testou positivo à Covid-19 e disse aos médicos que a mulher também não andava bem. Paula ainda resistiu, garantia que estava bem, mas acabou por fazer o teste. No dia seguinte recebeu a notícia de que estava infetada. A 15 de março, foi hospitalizada.
“Sei que cheguei lá, mas não me lembro de mais nada. Portanto, já não devia ir muito famosa… Lembro-me de terem dito que ia ser ventilada, e que tinha de ir para os Intensivos. Disseram-me que liguei às minhas filhas e às colegas de trabalho, mas não me lembro disso”.
“Lembro-me de uma escuteira. A fedelha ralhava comigo: ‘Paula tens de ajudar a enfermeira'”
Paula ficou na cama ao lado do marido na unidade de Cuidados Intensivos. Mas não tem memória desses dias. “Tive algumas luzes ao longo do tempo em que estive sedada. Tive a noção de que puxavam por mim, que me incentivavam. Lembro-me de me dizerem: ‘Paula, o teu marido está aqui ao lado’. E eu só pensava: ‘Mas está aqui ao lado a fazer o quê?’. João foi mais rápido a reagir. Esteve 10 dias em Cuidados Intensivos. Paula ficou 40.
Que memória guarda desses 40 dias nos Cuidados Intensivos?
Muito medo. Não sei de quê mas tive um medo terrível. Aliás, foi uma das coisas que comentei com colegas meus. Dor física não senti nada, não me lembro de nada. Mas tive um período de grande medo. Um terror terrível! Não sei se era a morte, se eram os monstros que eu via…
Mas tinha consciência de que estava num hospital?
Só sabia por causa do barulho do termómetro no ouvido. Também as luzes, os quadrados das luzes e percebia que estava num ambiente hospitalar. E falavam comigo. Não sei se isto eram alucinações ou memórias. Coisas ridículas! No meio disso tudo, lembro-me de ter uma miúda escuteira, não sei quem, a tratar de mim com a enfermeira. Então a fedelha ralhava comigo: “Paula tens de ajudar a enfermeira; Paula, agora vira-te”. E eu sentia segurança com a miúda lá. Não sei se era alguém… Não sei explicar. Eu via muitas crianças lá ao pé de mim sempre.
Se calhar as memórias das crianças que cuida no Dona Estefânia…
Talvez…
Como é que foi estar do outro lado? Ser a doente?
Para uma pessoa que está habituada a fazer tudo e a cuidar dos outros, é difícil. Não estou habituada a que cuidem de mim! Essa parte de ter de ser dependente dos outros para tudo, até para me puxarem e sentar na cama… foi terrível.
Esta experiência mudou-a como profissional?
Enquanto cuidadores e profissionais, o facto de estarmos do lado de lá dá-nos muito. Conseguimos perceber o que é que as pessoas passam, o que é que sentem. E eu acho que isso nos ajuda a ser melhores profissionais. Eu espero que sim.
Conseguiu ver o outro lado?
Sim! Não é ser soberba, mas acho que sempre fui uma boa profissional; sempre tentei dar o meu máximo. Mas é diferente a perceção que tenho agora. Ajuda-me a perceber muita coisa. Muito do que fazia enquanto enfermeira nos Intensivos, agora percebo que é doloroso. Se calhar devo fazer mais o toque, devo falar com as pessoas… Mesmo que elas não estejam cá, que estejam inconscientes. Eu fazia isso, mas fazia como tinha aprendido… Agora tenho a noção de que é importante. Porque nos lembramos dos toques, coisas mínimas mas que são de uma importância global.
Acha que teve um tratamento diferente por ser “uma colega”?
Eu fui muito mimada. Na reabilitação, na enfermaria… A sensação com que fico é que me mimaram até dizer chega! Não sei se por ser colega, isso não posso responder. Mas também via que eram muito carinhosos com os outros utentes que estavam lá internados. Não posso dizer que seja só por mim.
E estando nesse papel de doente, como é que viu a pressão que viviam os profissionais de saúde?
Lembro-me que houve uma altura enquanto estive internada que havia colegas que iam dormir ao hotel. Não viam a família há meses. Caramba… As pessoas têm necessidade de manter a sua família! Mas havia o medo de transmitirem a doença… foi muito difícil! Às vezes, choravam. Volta e meia, apanhava uma lágrima no olho. Então quando se falava nos filhos… E nós, que estávamos do lado de cá, percebíamos que tinham saudades. É tudo muito complicado.
Enquanto profissional de saúde, apercebia-se melhor do que se passava. Isso também acontecia com o seu estado de saúde? Percebeu a gravidade da situação?
Nunca pensei. Eu vi, eu sei, eu sou profissional! Estive com miúdos com mais dificuldade em tudo! Mas quando passamos pelas coisas, achamos que é impossível. “Como é que não consigo pegar num talher? Como é que não consigo cortar as unhas? Como é que não consigo dar um passo porque não sinto o chão?” É tudo tão estranho… Depois o estar dependente. Agora entendo as pessoas! Não é fácil… Eu sempre disse: “Estejam à-vontade, eu estou aqui para ajudar, eu faço…” Para mim, como profissional, isso sai naturalmente. O contrário é que é uma treta…
Era uma doente “chata”?
Isso acho que não. Porque aceitava. Tinha de ser assim. Não havia outra hipótese.
“As minhas filhas fizeram um cartaz lindíssimo de boas-vindas”
Depois de sair dos Cuidados Intensivos, Paula começou a reabilitação. Fisioterapia, terapia da fala e também terapia ocupacional – que foi determinante para recuperar a autonomia.
No total, Paula Lopes esteve 68 dias internada. A 22 de maio, teve alta. “Estava ansiosa para chegar a casa, mas ao mesmo tempo com medo. É engraçado; não queremos estar internados, mas quando lá estamos, sentimo-nos muito seguros. Porque estamos no sítio ideal. Se acontecer alguma coisa, tinha os colegas e os médicos. Agora em casa estaria sozinha. Tinha a família, mas e se acontecesse alguma coisa? E se eles não dessem por nada? E se, e se…”
Mas além do medo, também houve alívio. “As minhas filhas fizeram um cartaz lindíssimo de boas-vindas e tinha a casa cheia de flores. Foi bom. Finalmente cheguei a casa! E estou cá”. Paula faz uma pausa, e repete: “Estou cá”. Ainda não está totalmente recuperada. É como se o cansaço se tivesse colado a ela, explica: “É muito estranho”.
Deixou a fisioterapia em dezembro, mas um mês antes pôde regressar ao trabalho. Neste momento, tem outras funções. Deixou de prestar cuidados diretos aos doentes e está a dar apoio à gestão. Confessa que tem saudades do fazia há quase 34 anos. Mas vai compensando com as conversas que vai tendo com as famílias. “As minhas famílias”, diz.
Antes da Covid-19, já tinha tido outros problemas de saúde. Há cinco anos, um cancro na mama. Em 2019, por causa de uma insuficiência renal, começou a fazer diálise. Quando o vírus apareceu, ainda estava a adaptar-se às condicionantes dessa nova realidade.
“Leva tudo tempo! Não é de um momento para o outro que aceitamos as coisas. Há alturas em que não é fácil e apetece desistir de tudo… Mas depois temos de andar para a frente. Há um dia em que uma pessoa se vai abaixo, chora-se o que se tem a chorar e, no dia seguinte, estamos ótimos para continuar”.
Quanto ao vírus, Paula é uma das pessoas que faz parte de um estudo imunológico da Ordem dos Médicos a doentes que estiveram infetados com Covid-19. Nos últimos testes, tinha uma imunidade muito acima da média. “Se tenho medo de voltar a contrair o vírus? Eles não dizem que não pode acontecer. Pode haver uma reinfeção. Que me mete medo? Mete. Tenho medo de voltar a passar pelo que passei.”
“Não queria… Eu agora não quero nada. Quero viver a minha vida da melhor maneira possível e sem intercorrências nenhumas. É isso que eu peço. Há muita gente a rezar por mim. Não sei se as pessoas acreditam nisso, mas quando estive no hospital houve muita gente, até desconhecidos, a puxarem por mim. Só me apercebi depois. Acho que foi tudo isso, juntamente com o profissionalismo dos meus colegas: deu-se um milagre. Cada um fará a sua interpretação.”