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Maria João Gala / Observador

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Refugiados. O projeto que ajuda a cuidar de quem foge para Portugal e está em sofrimento emocional

Os cursos de primeiros socorros psicológicos da Cruz Vermelha Portuguesa ajudam os técnicos de saúde e serviços sociais a tranquilizar pessoas que fugiram da guerra ou noutras situações vulneráveis.

A formação em primeiros socorros psicológicos está prestes a começar na delegação da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) de Fafe. Paulo Martins tem à frente 12 pessoas de várias instituições da cidade, sobretudo da área da psicologia, sociologia, assistência social. “Não é uma formação teórica, em que estamos a debitar slides, é, acima de tudo, prática, participativa e dinâmica”, diz o psicólogo e formador. “É sobretudo experiencial, para o que pode surgir no contexto real.”

Será assim ao longo de oito horas desta quarta-feira. Fazem-se perguntas, partilham-se experiências, constroem-se cenários, simulam-se situações. E escrevem-se pontos importantes em folhas e post-it que vão sendo colados na parede da sala, ao longo da sessão.

“O sofrimento emocional é grande”, diz a mediadora de saúde mental Olena Petryk, que apoia refugiados ucranianos. “Ficaram maridos e filhos, alguns morreram. É muito difícil lidar com isso"

SÉRGIO AZENHA/OBSERVADOR

O projeto europeu EU4HEALTH, financiado pela Comissão Europeia através da Direcção-Geral da Saúde e Segurança Alimentar, procura dar mais competências a quem lida com refugiados e outras populações vulneráveis em sofrimento emocional. Durante a manhã esclarece-se o que são primeiros socorros psicológicos e situações em que podem ser aplicados (guerras, catástrofes, acidentes, morte de um familiar, suicídio, divórcio), comportamentos úteis e não úteis num evento crítico (a empatia e a escuta ativa são úteis, a falta de atenção e a pressa não são), reações emocionais, comportamentais, cognitivas e físicas a eventos críticos – revolta, medo, angústia — e fatores que as despertam, como a gravidade da situação e o tempo de exposição.

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Nas quatro horas da tarde simulam-se situações, aprendem-se ferramentas para lidar com quem está em sofrimento emocional e fala-se do autocuidado de quem está na linha da frente do atendimento e no terreno. Paulo Martins deixa o recado: “Temos de cuidar de nós. Se não estivermos bem, a qualidade do serviço também diminui.”

O estado psicológico dos deslocados ucranianos é frágil. Há crianças que fogem para debaixo das camas quando ouvem uma porta a bater ou alguém a falar mais alto. Há dor e desespero nos adultos, idosos, famílias que tiveram de fugir. O trabalho dos mediadores passa por escutar e ajudar. “Ouvir e acalmar para que se sintam tranquilos e apoiados”, diz Olena Petryk, de Coimbra. É muito importante que ganhem confiança outra vez.”

Os participantes dividem-se em grupos de três pessoas para construir histórias traumáticas, depois vestem a pele de vítimas, de quem presta ajuda, e de quem observa o desempenho, rodando nesses papéis. Maria é mãe de uma das vítimas de um atentado terrorista com vários mortos num centro comercial. Uma mulher com diagnóstico de burnout, medicada, perde o filho num supermercado e entra em pânico. Estas são duas das quatro situações hipotéticas. “Quando estamos a prestar primeiros socorros psicológicos, temos sempre de lidar com a imprevisibilidade”, avisa o formador. Não há um guião fechado e há dúvidas de quais as questões a colocar. “Se a ideia é ajudar, tudo flui naturalmente. A ideia é fazer perguntas que ponham as pessoas a falar, o objetivo é a estabilização emocional.”

Esta formação está a ser aplicada em Portugal desde 2023, no sentido de dar resposta à necessidade de cuidar da saúde mental de migrantes deslocados da Ucrânia, devido ao conflito no país. Entretanto alargou-se a populações vulneráveis em sofrimento emocional expostas a eventos críticos e traumáticos – um acidente, uma morte, um divórcio, um desaparecimento.

Maria João Gala / Observador

Um pouco mais a sul, na delegação da Cruz Vermelha Portuguesa de Coimbra, a ucaniana Olena Petryk dá apoio a cidadãos do seu país — e são mais de trezentos naquela cidade. A mediadora na área da saúde mental do EU4HEALTH fala ucraniano e russo, traduz o que é necessário, ajuda na burocracia, na Segurança Social, no centro de emprego, nas unidades de saúde, nas questões com a AIMA (anterior Serviço de Estrangeiros e Fronteiras). E vai às escolas e assiste a reuniões de pais — ainda há pouco tempo foi chamada por causa de uma situação de bullying de uma jovem ucraniana. “Tento resolver todo o tipo de problemas. O sofrimento emocional é um problema, na Ucrânia ficaram maridos e filhos, alguns infelizmente morreram. É muito difícil lidar com isso.”

O estado psicológico dos deslocados ucranianos é frágil. “A saúde mental está bastante debilitada.” Olena Petryk fala em ataques de pânico, depressões, ansiedade, tristeza, frustração, desespero. Lembra-se de crianças que fogem para debaixo das camas quando ouvem uma porta a bater ou alguém a falar um pouco mais alto. Da dor e do desespero de adultos, idosos, famílias que tiveram de fugir. O seu trabalho passa essencialmente por escutar e ajudar. “Ouvir e acalmar para que se sintam tranquilos e apoiados. É muito importante que ganhem confiança outra vez. Confiança neles e na vida.”

“Uma caixa de ferramentas para aplicar no terreno”

Em Fafe, durante a formação, Sónia Antunes, socióloga na Segurança Social, recebe um telefonema. Tem de atender. Um senegalês está com uma dor de dentes, não sabe o que fazer, ela dá indicações. Trabalha no atendimento a refugiados da Ucrânia e a requerentes de proteção internacional do Senegal e da Mauritânia. As histórias que escuta têm pontos em comum, preocupações que se tocam. Mulheres com filhos e maridos a combater contra militares russos, gente que ficou sem casa e perdeu tudo o que tinha, quadros de ansiedade e tristeza profunda.

A formação do projeto europeu abre-lhe outras perspetivas. “Faz-nos perceber quem nem sempre temos a postura correta a dar resposta a necessidades para o futuro, a desenvolvermos o que a pessoa está a sentir no momento”, diz a socióliga. “Tudo é importante, o discurso, a empatia, o ouvir com mais atenção e deixar as pessoas exporem os seus sentimentos.”

O projeto EU4HEALTH, financiado pela Comissão Europeia, procura dar mais competências a quem lida com refugiados e outras populações vulneráveis em sofrimento emocional. Neste momento, 26 formadores em primeiros socorros psicológicos estão no terreno: psicólogos, assistentes sociais, animadores socioculturais. Num ano de projeto 440 profissionais e voluntários receberam formação.

Mais um cenário é apresentado na formação e debate-se o que fazer. Uma família de refugiados é acompanhada há um ano, a filha mais velha tenta suicidar-se, esteve no hospital, regressa a casa. Os pais estão muito perturbados, o pai sentado à janela sem nada dizer, a mãe fala de tudo o que passaram e como a filha é ingrata por os fazer passar por esta situação. Quem precisa de ajuda? Quem ajudar primeiro? Quem contactar para pedir mais apoio se for necessário?

Ver, ouvir, ligar. São três passos importantes. Ver o que está a acontecer, ouvir o que a pessoa diz, telefonar para pedir apoio e outras intervenções especializadas se for necessário. Uma consulta de psicologia, por exemplo. “Temos de estar atentos aos sinais e sintomas e ir apontando”, aconselha Paulo Martins. Os participantes dividem-se novamente em grupos, cada um fala da importância de ver, ouvir, ligar. Fala-se de reações comuns como medo, ansiedade, angústia e outras complexas como o stress pós-traumático. Fala-se de sinais de alarme, ansiedade de forma descontrolada, comportamentos autodestrutivos, consumo de substâncias. E lança-se a questão: “Como acalmar uma pessoa em sofrimento emocional?” Os participantes e o formador dão várias dicas para uma lista: através da empatia, da escuta ativa, de tom de voz calmo e sereno, do contacto ocular, da disponibilidade para ajudar, de perguntar sem julgar.

A socióloga Sónia Antunes, a psicóloga Cláudia Lobo Matos e o psicólogo Paulo Martins destacam a relevância da formação em primeiros socorros psicológicos. A psicóloga Susana Gouveia lidera o projeto

Maria João Gala / Observador

Cláudia Lobo Matos é psicóloga na Câmara Municipal de Fafe. Recebe várias pessoas, sobretudo adultos e idosos, em situações de luto, depressão, ansiedade, vítimas de violência doméstica, e está envolvida em projetos de intervenção comunitária desde 2001. Trata de avaliações sociais, analisa apoios que são necessários a cada situação. Está habituada a trabalhar em rede, na formação tem vários colegas que conhece, partilham experiências e conhecimentos. Para ela, a formação em primeiros socorros psicológicos é relevante. “É importante esta capacitação, não sabemos tudo, precisamos de lembrar e de reciclar de novo. A aprendizagem é mesmo isso.”

Neste momento, 26 formadores em primeiros socorros psicológicos estão no terreno. São psicólogos, assistentes sociais, animadores socioculturais. Num ano de projeto, dos dados recolhidos até ao fim do mês de março de 2024, 440 profissionais e voluntários receberam formação, tanto da Cruz Vermelha como de entidades parceiras, mais sete profissionais de saúde que falam ucraniano e 67 trabalhadores humanitários que se encontravam na linha da frente do conflito na Ucrâniae receberam apoio psicológico. As formações continuam até ao fim de 2025.

Susana Gouveia, psicóloga da CVP e gestora do projeto europeu em Portugal, destaca esse trabalho de formação. “A ideia não é só capacitar os nossos técnicos e voluntários, mas também outros colegas que estão noutras organizações que recebem deslocados da Ucrânia para dar apoio específico em saúde mental e apoio psicossocial a pessoas que vieram de um conflito perto de nós”. É como “dar uma caixa de ferramentas para aplicar no terreno”.

Trabalhar com o material e as experiências dos participantes

Portugal é um dos 24 países aderentes ao EU4HEALTH e tem trabalhado em parceria com 24 instituições, como o Conselho Europeu para os Refugiados, a AMI, a Fundação O Século, algumas Misericórdias e alguns serviços de proteção civil. Todas mobilizadas para o mesmo fim: proteger a saúde mental e promover a dignidade humana. Com estas ações de formação e capacitação, a CVP tem conseguido consolidar e robustecer a rede nacional dedicada à saúde mental e apoio psicossocial, além de formar outros parceiros que trabalham na primeira linha no apoio aos mais vulneráveis. O projeto é financiado pela Comissão Europeia e coordenado pela Federação Internacional da Cruz Vermelha em parceria com o Psychosocial Centre, o centro técnico de excelência da Cruz Vermelha, sediado na Dinamarca, que treinou e deu formação aos 26 técnicos portugueses.

Durante a formação simulam-se situações, aprendem-se ferramentas para lidar com quem está em sofrimento emocional e fala-se do autocuidado de quem está na linha da frente do atendimento. A iniciativa começou para dar resposta à necessidade de cuidar da saúde mental de migrantes da Ucrânia devido à guerra, mas alargou-se a populações vulneráveis em sofrimento emocional expostas a eventos críticos e traumáticos.

Paulo Martins está constantemente no terreno como psicólogo da Cruz Vermelha de Fafe. “A questão dos primeiros socorros psicológicos é cada vez mais importante, as situações são cada vez mais complexas, é necessário ter competências para assegurar a estabilização emocional das pessoas mais vulneráveis.”

A formação tem oito horas de duração mais quatro de sensibilização para alertar para a importância da saúde mental e desmontar estigmas. “Trabalhamos com o material que os participantes trazem”, diz Susana Gouveia. As ações de formação têm, no máximo, 16 pessoas, acontecem em todo o país, ilhas incluídas, e em vários locais, seja nas delegações da Cruz Vermelha ou noutros sítios das entidades parceiras – em Sintra, por exemplo, teve lugar no espaço comunitário de Rio de Mouro, com técnicos da área da saúde de todo o concelho.

Ainda este semestre, sem data definida, o projeto avança com formações em escolas de todos os níveis de ensino obrigatório, do Primeiro Ciclo ao Secundário, para pessoal docente e não docente, com o objetivo de alargar o número de profissionais formados em primeiros socorros psicológicos que trabalham diariamente com crianças e jovens, em situações complexas de bullying, comunicações tóxicas nos recreios, por exemplo. A Cruz Vermelha estima chegar a seiscentas pessoas em contexto escolar.

Maria João Gala / Observador

Em Fafe, a formação termina com a importância do autocuidado. Paulo Martins apresenta três desafios para quem está no terreno: ajudar mais do que uma pessoa ao mesmo tempo, sentir medo quando se está a ajudar e lidar com reações emocionais adversas, como surtos psicóticos, ataques de pânico ou violência. “É necessário conhecer os limites pessoais e pedir ajuda quando é necessário”, aconselha o formador.

Olena Petryk vive em Portugal há 13 anos, tinha 20 anos quando chegou, estudava Economia no seu país, tinha interesse pela área da Psicologia. Veio por amor e cá ficou. Quando a Ucrânia foi invadida, em fevereiro de 2022, o seu coração ficou em sobressalto. “Quando a guerra começou, aquele patriotismo, que estava meio adormecido, acordou”, recorda. Ao terceiro dia, partiu para ir buscar os pais, mas só conseguiu trazer a mãe. O tema é sensível, Olena fala e limitamo-nos a ouvir. A situação despertou a vontade de ser voluntária. “O que podia fazer pelas pessoas do meu país que se iam espalhar pelo mundo com um trauma pós-guerra muito forte.” Bateu à porta da delegação da Cruz Vermelha de Coimbra, frequentou formação em primeiros socorros psicológicos. E continua disponível para o que for necessário.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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