Cacilda já não está junto à entrada da aldeia de Nodeirinho onde a encontrámos da última vez. Já não usa os óculos espelhados com lentes cor de laranja que tinha para proteger os olhos vermelhos do fumo e das lágrimas. Tem 75 anos e na madrugada de sábado para domingo combateu sozinha o fogo que ameaçava consumir-lhe tudo o que alguma vez teve na vida. Desta vez, encontrámo-la em casa, depois de ter perdido o medo de regressar, ainda que do piso superior seja possível ver o buraco enorme que o fogo abriu no telhado. Tudo à volta está queimado: o galinheiro onde tinha “30 ou 40 bicos de galinha”, os terrenos onde cultivava alfaces e o lugar onde guardava a lenha.
A poucos metros da casa de Cacilda, o lar do vizinho que conheceu toda a vida desapareceu. Restam garfos, facas e colheres derretidos. A porta de entrada foi consumida pelas chamas. Até o tampo da sanita se foi. Entre os objetos que resistiram ao calor do fogo, há uma carta da Associação dos Custódios de Maria presa ao estendal. Ainda se pode ler: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará“. Está endereçada a Sebastião Gonçalves Esteves. Mas o número 115 da Rua do Cabeceiro, em Nodeirinho, deixou de existir como casa. O vizinho de Cacilda “teve de ser transferido para um lar” e ela está ainda mais sozinha. Mas recusa-se a sair.
Passaram cinco dias e o incêndio em Pedrógão Grande foi finalmente dado como controlado. O dia amanhece limpo. Já não se vê fumo no horizonte, só uma mancha de nevoeiro que se estende sobre o Zêzere. Depois do inferno, chegou o luto. Por toda a vila, as pessoas juntam-se para chorar os mortos e para rezar pelos que sobreviveram. Nunca é demais repetir os números: no incêndio mais mortal de que há memória em Portugal, morreram 64 pessoas e há mais de 200 feridos.
Dessas 64 pessoas, 11 pertenciam à aldeia de Nodeirinho, na freguesia da Graça. Voltámos lá. Não há pedaço de terra que não esteja pintado de negro e cinzento. Ardeu tudo. Ainda existem troncos dobrados sobre a estrada e postos de eletricidade a fumegar. As mesmas casas sem janelas, sem telhados e sem paredes. As estradas que antes foram cortadas para recolher os cadáveres das vítimas ainda estão cobertas de vidro e metal derretido, com fitas amarelas da polícia enroladas em torno das árvores queimadas. Aqui e ali, ainda é possível encontrar os lençóis que cobriam os corpos das vítimas. É uma aldeia transformada em ruínas, onde os poucos que lá vivem só querem esquecer o que viram, o que sentiram e o que perderam.
“Cada vez que olho para aquela casa ainda é pior”, diz Cacilda, apontando para o lugar onde devia existir a casa de Sebastião. “Estou aqui por um milagre muito grande. Deus ainda não quis que eu fosse desta vez. Mas podia ter ido. O que é que eu fiquei aqui a fazer!? Já não tenho mais ninguém“.
Diz que perdeu as forças para continuar. Tal como na primeira vez que falou com o Observador, não consegue deixar de reviver a forma como perdeu os vizinhos e amigos. Fala da avó e da neta de quatro anos que morreram na estrada, cercadas pelas chamas. E do menino de dois anos. E do vizinho, que veio de França passar férias. E do filho de Manuel, cujo corpo ainda não foi encontrado. “Mal daqueles que morreram, mal daqueles que morreram“, vai dizendo, enquanto abana a cabeça. A dor ainda é muito recente.
Não deixou a casa desde o incêndio. “Se me vou embora, não recebo as coisinhas que andam a distribuir“, explica. Nos últimos dias, as equipas de assistentes sociais que têm batido o terreno levaram-lhe “fruta, salsichas, latas de atum, papel higiénico, champô, sopa, aqueles pacotinhos de sumo com uma palhinha para beber e até um pente”. “Se sair daqui, não recebo nada disto.”
E depois há o medo de perder o que lhe resta. Por toda a região, há relatos de casas arrombadas em aldeias que foram evacuadas. “A gente tem de ter muito cuidado, porque andam a arrombar casas. Já muitos velhotes foram burlados. Estão-se a aproveitar da miséria, principalmente dos velhinhos. Estamos todos em pânico.” É a primeira vez que fala com mágoa. Tudo o resto é resignação.
Cacilda tem passado os dias em casa, sentada junto ao tanque de pedra que usa para lavar roupa. Só agora recuperou a eletricidade que lhe permite ter a companhia da televisão. “Nem o comer tenho feito, mas também não tenho apetite“, conta, encolhendo os ombros. Só come o que os voluntários lhe levam. E, mesmo assim, só lamenta não conseguir ir aos funerais dos vizinhos e amigos.
“Não tenho pernas que me levem. As forças estão a ir embora, as forças estão a ir embora. Estou-me a ir abaixo”. Despede-se, prometendo que vai fazer por ficar melhor. Mas sem grande convicção. “Olhe, que Deus nos proteja a todos e tenha piedade de nós.”
Na aldeia de Nodeirinho nem a brisa que agora se vai fazendo sentir afasta o cheiro intenso a madeira queimada. Poucos metros acima da casa de Cacilda, onde um homem guardou o corpo da namorada, já só resta a carcaça da carrinha carbonizada, a casa completamente consumida pelas chamas e o lençol usado para cobrir o cadáver. Tudo o resto é destruição.
Os que de alguma forma sobreviveram estão cansados de reviver o inferno. “Isto foi uma desgraça, uma desgraça”, diz Mário Laia. Tem 72 anos, cara queimada pelo sol e os olhos azuis focados no vazio. Perdeu alguns dos melhores amigos no incêndio. “Ainda há uns dias o Mário tinha estado aqui comigo. Conhecia-o desde pequenito…”, diz, num tom praticamente impercetível. O amigo, com quem partilhou a juventude, morreu quando tentava fugir das chamas.
“Enfim, é a vida. A vida é traiçoeira…”, diz, resignado. Não termina a frase. Os olhos estão humedecidos. O funeral do amigo tinha sido na véspera e Mário está cansado de reviver aqueles momentos.. “Olhe, pior é para os que vão. Os que ficam vão tentando sobreviver…”
Ainda nem todos se conseguiram despedir condignamente. Manuel da Costa perdeu o filho no incêndio de Pedrógão Grande. Quando o encontrámos pela primeira vez, não o via desde a tarde anterior. Diogo fugira com a carrinha e levara baldes de água para combater o fogo. Durante dias, não houve sinal dele. Manuel mantinha a secreta esperança de o voltar a ver, pensando que o filho estivesse vivo, talvez ferido ou com medo de regressar. Há poucos dias, a carrinha foi finalmente encontrada, mas o corpo de Diogo perdeu-se.
Quando reencontramos Manuel, de 60 anos, recebe-nos exausto. “Já não consigo falar mais, por favor…”. Fuma nervosamente um cigarro e não é capaz de olhar nos olhos. Já não tem os dedos e as mãos sujas de fuligem. Veste roupas lavadas. E já não está revoltado com a falta de apoio dos bombeiros naquela noite fatídica. O desespero deu lugar à dor profunda. “Ainda não encontraram o corpo do meu filho, mas já se sabe…” Não consegue sequer verbalizar. O filho de 21 anos morreu. “Só terei paz quando o encontrar…”.
Numa aldeia com pouco mais de 30 habitantes, morreram 11 pessoas. E, por muito que seja difícil de acreditar, o desastre podia ter sido maior. Não fosse o tanque de água junto à casa onde vivem Maria do Céu e a família, tudo podia ter sido pior. “Foi a água que nos salvou. Se não fosse a água estávamos todos mortos“, conta Marta, mãe de Maria do Céu.
Mal se consegue mexer com o peso da idade. Já não tem o penso que lhe cobria a perna quando a encontrámos no domingo, horas depois de ter visto as chamas a consumirem tudo em que tocavam. Mas não esquece o que viveu. “A gente vai para a cama e nem é capaz de dormir. Parece que ainda vejo o fogo…”. Marta tem 84 anos.
Nessa noite, os vizinhos chegavam de todo o lado. Alguns vieram de Figueiró dos Vinhos, nas redondezas, para fugirem do fogo que lavrava estrada fora. Outros não conseguiram escapar. Os que sobreviveram e chegaram ao tanque, tiveram de molhar roupas e os carros que passavam para evitar que entrassem em combustão. Velhos e novos, homens e mulheres, chegaram a ser 13 pessoas à volta daquele tanque. Todos rodeados pelas labaredas “que voavam” e pelo fumo negro que os sufocava. “Estivemos no inferno“, conta Marta.
Maria do Céu está distante, junto à bancada da cozinha. Entretém-se a ralar a sopa que está a preparar para o jantar. Ainda está afónica de tanto gritar e tem pouca vontade de reviver o que passou. “Veja como ficou a minha filha com a aflição”, diz-nos, baixinho, Marta.
O marido Manuel observa tudo à distância, enquanto brinca com a boina nas mãos. Não diz uma única palavra e não consegue tirar os olhos do chão. “Agora, resta-nos enterrar os mortos“, diz Marta. A voz foge-lhe.
É o que têm feito os habitantes de Pedrógão Grande. Na manhã de quinta-feira, chegou a vez de se despedirem de Bianca, a menina de quatro anos que morreu quando seguia de carro com o irmão, a mãe e a avó. As duas também acabaram por não resistir aos ferimentos provocados pelas chamas. Foram os primeiros que enterraram.
A missa não durou mais de uma hora, numa pequena igreja com um altar em tons de azul celeste e dourado, demasiado pequena para os que quiseram prestar a última homenagem. O corpo de Bianca saiu da igreja transportado num minúsculo e delicado caixão branco com pegas douradas, tão leve que os quatro adolescentes que o carregavam pareciam não fazer qualquer esforço.
À frente do cortejo, seguia Cláudio Jorge, segurando a lanterna habitualmente usada em cerimónias católicas. O mesmo Cláudio que conhecemos na aldeia fantasma de Carvalheira Grande e que perdeu tudo no incêndio de Pedrógão Grande. Tinha uma capa branca, com faixas douradas, mas nem isso servia para disfarçar a roupa esfarrapada que trazia no corpo.
Às onze, já a campa de Bianca estava coberta de flores brancas, azuis e em tons de rosa. Um a um, os amigos e conhecidos foram deixando o cemitério, cumprimentando o pai e o irmão de Bianca, os únicos sobreviventes da família. Só eles ficaram para trás, a despedirem-se pela última vez.