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Do gás natural para a eletricidade, um salto que encaixa na transição energética, mas que no caso da renovação da frota da Transtejo encalhou por duas vezes.
Um primeiro concurso para a compra de navios a gás natural foi lançado e cancelado em 2019, por ausência de propostas. Previa as entregas em 2021.
O atual concurso para navios elétricos foi lançado em janeiro de 2020 e adjudicado em outubro desse ano, mas só produziu efeitos em 2021 devido à impugnação de um concorrente. Nessa altura a estimativa era de que as unidades começassem a chegar em abril de 2022, a mais recente apontava para o final deste ano. E agora nem sequer há certeza de que esse contrato possa ser executado depois de o Tribunal de Contas (TdC) ter recusado dar o visto prévio à compra de nove conjuntos de baterias. Sem este contrato, a operação, como notam os juízes que assinam o acórdão, é comparável a “comprar um carro sem motor, uma mota sem rodas ou uma bicicleta sem pedais”, feitas as “ditas adaptações”.
Primeiros navios elétricos só vão chegar ao Tejo no final do ano e custam 85 milhões
Mais graves do que estas ironias que pontuam o acórdão que foi dado a conhecer à Transtejo na quarta-feira são as acusações dirigidas à empresa pública que faz a travessia fluvial do Tejo e aos seus gestores que são acusados de faltarem à verdade nas respostas dadas ao Tribunal desde que o processo começou. E é preciso referir que o contrato inicial para a compra de 10 navios elétricos (sem baterias incluídas) aos estaleiros das Astúrias foi autorizado pelo TdC.
Uma nulidade, uma violação de regras orçamentais e uma ilegalidade e o envio para o Ministério Público para o eventual apuramento de responsabilidade financeira e/ou de responsabilidade criminal tiveram como resposta da administração da Transtejo uma demissão, anunciada em conferência de imprensa pela presidente da empresa há cerca de seis anos porque um “gestor público tem de assumir as suas responsabilidades”. Marina Ferreira que estava na liderança da Transtejo desde 2017 afirmou ainda que a empresa era a responsável pela execução do projeto, apesar de este ter recebido a luz verde da tutela setorial e a autorização do Ministério das Finanças para a realização da despesa.
A demissão foi aceite pelo Ministério do Ambiente que tutela a Transtejo, mas horas depois o titular da pasta, Duarte Cordeiro, defendeu a decisão tomada pela empresa a propósito do lançamento deste concurso. “Estou absolutamente convicto de que a decisão foi tomada consciente de que era a melhor que se podia tomar na altura”.
Marina Ferreira manifestou a convicção de ter cumprido as regras legais e de ter tomado as decisões atacadas no acórdão do TdC para proteger o interesse público, lamentando afirmações que qualificou de “ofensivas e ultrajantes” dos juízes que assinaram o acórdão. A gestora, que esteve pouco mais de seis anos à frente da Transtejo/Soflusa, alertou para a grande dificuldade que é fazer projetos inovadores na administração pública, reconhecendo que este, que descreve como “revolucionário” para a área metropolitana de Lisboa, implicava correr riscos.
Alertas de 2020 para a falta das baterias e a carta a António Costa
E houve alertas para esses riscos quando foi lançado o concurso. Em 2020, poucos meses antes da adjudicação aos estaleiros das Astúrias, uma carta enviada ao primeiro-ministro e tornada pública por um especialista e consultor no setor dos transportes — Fernando Grilo — apontava para várias fragilidades da solução colocada a concurso, a começar pela inovação. A Transtejo lançou um concurso para um navio que não existia no mercado, que era um protótipo.
“Não existe atualmente em operação de transportes de passageiros qualquer ferry 100% elétrico que reúna em simultâneo o comprimento, a capacidade em passageiros e velocidade e a autonomia constantes dos parâmetros dos concurso”, avisava.
O investimento necessário, acrescentava, será muito superior ao preço de referência para o concurso — 57 milhões de euros — cujo objeto não inclui o fornecimento das baterias, nem das estações de carregamento, apesar de pedir aos concorrentes uma proposta para um sistema de propulsão. Não estavam também considerados outros custos como as ligações de correntes à terra e a adaptação dos pontões dos cais da Transtejo aos navios elétricos.
Nas contas apresentadas, a renovação ia custar 80 a 90 milhões de euros. A carta pública a António Costa em junho de 2020 exigia também a divulgação dos estudos técnicos que fundamentaram a solução.
Fernando Grilo levantava outra preocupação sobre a operação destes navios que, dizia, iam demorar mais tempo a fazer o percurso do que a frota atual.
Já esta quinta-feira e depois de conhecido o acórdão, o especialista defendeu, numa opinião publicada na revista Transportes e Negócios, que a renovação da frota da Transtejo foi “um falso investimento” que não foi suficientemente estudado, nem avaliado, nem planeado do ponto de vista financeiro, legal e operacional.
Ainda que não poupe a administração da empresa, o especialista aponta culpas também ao Governo — na pasta do Ambiente com a tutela dos transportes da empresa estava João Matos Fernandes, com José Mendes seu secretário de Estado dos Transportes — que quis mostrar à Europa “que estava na primeira linha da descarbonização, comprando dez navios 100% elétricos de uma só vez (algo que mais nenhum país na União Europeia e no mundo fez)”, para além de querer agradar aos então parceiros da geringonça, o Bloco de Esquerda e o PCP.
O especialista nota também que o concurso foi desenhado de forma espartilhada, separando as várias componentes, para dispersar o custo do investimento e lembra que não faltam apenas as nove baterias cujo contrato foi agora chumbado para “ligar” os novos navios. A Transtejo já adjudicou de forma autónoma as estações de carregamento das baterias (por 14 milhões de euros), mas falta ainda a adaptação dos terminais à nova frota, o que, diz, implicará alterações significativas nos pontões e gares.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre os navios sem baterias.
Como ultrapassar o “transtorno”
O especialista em transportes, Fernando Grilo, defende que todo o projeto de renovação tem de ser revisto, do ponto de vista económico, operacional e financeiro, e o contrato com os Astilleros Gondán deve ser suspenso até se concluir se os navios 100% elétricos são viáveis ou se poderá ser necessário um modelo híbrido que incorpore ainda alguma propulsão a combustível.
Para Duarte Cordeiro, o acórdão do TdC é um “transtorno” e o Governo terá de “tomar decisões rapidamente” para conseguir adjudicar as baterias a tempo da chegada dos navios. A primeira entrega está prevista para breve — o único navio contratado com bateria que irá realizar vários testes antes de ficar operacional. Estava prevista a chegada de mais quatro até ao final do ano. O Ministério do Ambiente anunciou a criação de uma equipa para apoiar a empresa na decisão que terá de tomar.
A solução pode passar por um concurso público só para a compra de baterias, como admitiu a presidente demissionária da Transtejo, mas considera que tal deve ser lançado já pela nova gestão.
Como se chegou a este imbróglio
A decisão política de renovar a frota foi tomada em 2018 depois de dois anos de supressões e falhas no serviço devido a avarias e necessidades de manutenção com impacto na qualidade do serviço prestado. A última compra de navios da empresa tinha sido concretizada em 2003 com a chegada dos catamarãs para o Barreiro. Vários cacilheiros são do início da década de 1980.
No início de 2019 foi lançado um concurso para o fornecimento de dez navios a gás natural, uma melhoria face ao diesel que hoje é usado, mas ainda assim um combustível que produz emissões. Este concurso tinha um valor de referência de 90 milhões de euros que incluía a construção e a manutenção e tinha as primeiras entregas previstas para 2021.
Concorreram cinco grupos, mas apenas um obteve a pré-qualificação e acabou por ficar excluído por não apresentar prova de cumprir os requisitos da capacidade técnica. O procedimento também foi criticado no setor por ter juntado no mesmo concurso a construção e a manutenção. E acabou por ser anulado. Mas, no mesmo dia, a Transtejo anunciou logo novo procedimento concursal para a compra de 10 navios, mas desta vez totalmente elétricos.
Transtejo anula concurso para barcos a gás e lança outro para elétricos
Não obstante o desaire do concurso inicial, a Transtejo estava confiante de que, apesar de ter perdido um ano, o processo podia ser mais rápido por dispensar a pré-qualificação e destacava as inovações nesta tecnologia que daria também uma maior ambição em termos de transição energética ao dispensar os combustíveis fósseis.
O contrato para os 10 navios foi entregue aos Estaleiros Góndan, das Astúrias, por 52,3 milhões de euros em novembro 2020, uma adjudicação que foi contestada pelo outro concorrente, os Estaleiros Navais de Peniche (ENP), com argumentos que são retomados agora pelos juízes do Tribunal de Contas na decisão que recusa dar o visto à compra das baterias.
A proposta vencedora só era mais baixa, na vertente que incluía um conjunto de baterias. Considerando os 10 navios com os 10 conjuntos de baterias, a proposta da empresa portuguesa era inferior em 2 milhões de euros à que ganhou, defendia o concorrente que ficou para trás: “Ora num concurso único, para fornecimento de embarcações funcionais (com bateria), a proposta dos ENP teria que ser classificada em primeiro lugar. Com a separação artificial em dois concursos, a proposta do concorrente espanhol parece mais barata, quando na verdade não o é”.
Este excerto da impugnação do concurso surge no acórdão que refere detalhadamente todas as perguntas que foram remetidas à Transtejo pelo Tribunal de Contas quando avaliou (e visou) o contrato inicial para a compra dos dez navios e de apenas uma bateria para testes. A empresa respondeu que as baterias são consideradas elementos de desgaste, com uma vida útil inferior a de cada barco (mínimo de sete anos) pelo que seriam objeto de um concurso autónomo para fornecimento de baterias. Esta justificação foi também dada pela presidente da Transtejo na conferência em que comunicou a sua demissão.
Em 2023, chega ao Tribunal um pedido de visto para uma modificação do contrato já aprovado para incluir a compra de nove baterias ao mesmo fornecedor, a empresa das Astúrias, argumentando a Transtejo que não existiam alternativas no mercado a um fornecedor, que era a Corvus Energy, uma empresa canadiana. Para as suas baterias tinha sido desenhada a solução técnica de propulsão proposta pela Astilleros Gondán para o protótipo vendido à Transtejo. Havendo um fornecedor único, não foi lançado concurso público.
A empresa portuguesa tentou então adquirir (por ajuste direto) as baterias à empresa canadiana, mas sem sucesso. A Transtejo invoca os efeitos da pandemia no setor da baterias que fez subir os preços, sobretudo do lítio, e a instabilidade cambial face ao dólar, que não permitia garantir preços. Daí a opção de contratar as ditas baterias por intermédio dos Estaleiros com quem já tinha um contrato para a compra dos navios. Para a Transtejo esta modificação não implicava uma alteração do objeto e representava um agravamento inferior a 50% face ao custo original do contrato — 30%.
Os argumentos não tiveram acolhimento dos juízes do Tribunal de Contas para quem o recurso a um intermediário nesta transação (o contrato para as baterias seria feito com os estaleiros que as iriam adquirir junto do fornecedor) implica comissões e preços mais altos. E consideram que o “comportamento da Transtejo, com a prática de um conjunto sucessivo de decisões que são não apenas economicamente irracionais, mas também (como se viu) ilegais, algumas com um elevado grau de gravidade, atinge o interesse financeiro do Estado e tem um elevado impacto social. Que lhe é direta, e exclusivamente, imputável.”
A empresa argumenta que o “resultado financeiro do projeto não se alterou pela inclusão das baterias no objeto do contrato de aquisição de navios, uma vez que tal despesa sempre esteve prevista e não se agravou pela inclusão da mesma no contrato inicial por via da modificação contratual operada, antes, até resultou nalguma economia global”. Isto porque a adjudicação dos navios foi feita por um preço inferior aos 57 milhões de euros previstos, economizando 4,6 milhões.
Na conferência de imprensa, a gestora da Transtejo garantiu que o contrato não lesou o interesse público nem prejudicou financeiramente o Estado.