Uma sala de call center lotada, pessoas a partilhar o mesmo monitor, máscara não obrigatória no posto de trabalho, horas extraordinárias não pagas e empresas que não fornecem o equipamento necessário para que o teletrabalho seja possível. O Observador acompanhou uma equipa de inspetores da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) em duas ações de fiscalização no Grande Porto e em nenhuma delas o teletrabalho obrigatório foi cumprido.
As justificações são várias e passam pela necessidade de dar formação a colaboradores recentes e pelo facto de alguns trabalhadores já terem tomado a primeira dose da vacina contra a Covid-19. Resta saber se estes casos resultarão em sanções, algo que a ACT só irá decidir depois de analisar documentos e verificar enquadramentos legais.
“Se tivesse direito ao equipamento, preferia estar a trabalhar em casa”
Uma das paragens da equipa de inspetores é um serviço de call center de uma unidade de saúde privada no Grande Porto — dizem que “o caso é cabeludo” quando conhecem as instalações e percebem que o distanciamento físico não é cumprido. Numa sala com cerca de 80 metros quadrados existem 48 postos de trabalho, divididos por estruturas metálicas. Em cada quadrado, com poucos centímetros de largura, cabe um ou dois trabalhadores, sempre de headphones nos ouvidos e microfone na boca.
O espaço é tão pequeno que há quem tenha de colocar a carteira ou a lancheira com o almoço na cadeira do vizinho do lado, que entra no turno seguinte. O ruído é muito e quem precisa de se levantar por algum motivo é obrigado a fazer um esforço hercúleo para conseguir passar entre as cadeiras sem incomodar os colegas. Dos 48 trabalhadores contratados, três estão em teletrabalho e um encontra-se infetado com a Covid-19, sendo o quinto caso detetado naquela entidade.
Segundo a responsável de recursos humanos da empresa, o “teletrabalho foi opcional desde sempre”, mas esta não foi uma opção viável para todos, uma vez que a empresa não forneceu qualquer equipamento informático para que as funções pudessem ser realizadas a partir do domicílio. “Se tivesse direito ao equipamento, preferia estar a trabalhar em casa”, garante um dos funcionários abordados pela equipa de inspetores da ACT. “Não tenho computador próprio”; “a minha internet está sempre a falhar”; “não gosto de estar sempre em casa” são, por outro lado, algumas razões apontadas por quem prefere trabalhar no local.
No início deste mês, a direção deste serviço de call center decidiu retomar o trabalho presencial por considerar que os trabalhadores em causa são considerados profissionais de saúde e, por isso, não têm de obedecer à obrigatoriedade do teletrabalho. Por outro, lado, defende que “estavam reunidas todas as condições de segurança necessárias”, uma conclusão baseada no facto de, entre abril e maio, a maioria dos trabalhadores ter sido vacinada contra a Covid-19 com a primeira dose, vacinas essas disponibilizadas pela própria empresa. Duas justificações que a ACT promete analisar e avaliar após a visita.
A responsável pelo departamento de recursos humanos garante que os 48 lugares de trabalho são fixos e o material informático é exclusivo de cada trabalhador. “Neste momento, estamos a funcionar com quatro grupos, de 10 a 20 pessoas, que trabalham em turnos diferentes, sendo que entre as 11h e as 17h é quando está aqui o maior número de pessoas”, explica. No entanto, a regulamentação do tempo de serviço é mais um motivo de preocupação para os inspetores, especialmente depois de ouvirem alguns depoimentos na primeira pessoa.
“Trabalho no turno das 11h às 20h, mas só saio quando terminarem todas as chamadas. Essas horas extraordinárias não são pagas e neste horário é comum existirem várias chamadas em espera.” Perante o relato deste trabalhador, a ACT pede o registo do tempo de trabalho de um funcionário aleatório no último mês, com as devidas pausas para descanso e almoço discriminadas. O documento chega, 20 minutos depois, incompleto, apenas com as horas de login e logout do trabalhador no sistema operativo, o que leva a equipa de inspetores a avisar que irá solicitar documentos mais detalhados por e-mail.
Dos supervisores, protegidos com placas de acrílico e sentados num patamar mais elevado, aos assistentes administrativos do call center, separados por poucos centímetros, todos usam máscara ou viseira, materiais que são fornecidos pela empresa, assim como o álcool gel, com o qual borrifam as mãos antes de começarem a tocar no teclado do computador.
Apesar de as três janelas estarem fechadas, a sala tem uma máquina que assegura a renovação do ar. Já a copa, do outro lado do corredor, tem uma lotação reduzida a 11 lugares e é partilhada com profissionais de saúde que trabalham noutros pisos do edifício. “Deveriam ter a lotação deste espaço escrita na porta”, realça a inspeção. Atrás da porta da sala de trabalho estão afixados os horários mensais das equipas, mas o mapa de férias está apenas disponível online. “O mapa das férias teria que ser afixado em suporte papel obrigatoriamente até ao dia 15 de maio, o que não aconteceu”, alerta a equipa da ACT, admitindo que a situação global na empresa “é altamente melindrosa”.
“O teletrabalho é tecnicamente possível, mas a interação humana é fundamental”
Numa empresa tecnológica do ramo automóvel, que presta serviços administrativos e financeiros a nível internacional, trabalham diariamente e em regime presencial entre 70 a 80 colaboradores. A formação de novos colaboradores é a principal razão para o aparente incumprimento da lei. “Apesar de no nosso caso o teletrabalho ser tecnicamente possível, o processo de formação e de coordenação torna-se muito difícil à distância, muitas pessoas são novas e a interação humana é fundamental”, justifica o responsável.
A entidade conta com 240 funcionários e todos os meses são contratados novos rostos para reforçar a equipa, só em maio foram admitidas oito pessoas. “Alguns estão em teletrabalho, não obrigamos ninguém a vir, deixamo-los completamente à vontade”, acrescenta.
A hipótese de trabalhar neste open space, com capacidade para 300 pessoas, foi proposta pela empresa, que a formalizou por escrito e enviou a todos os colaboradores. A maioria aceitou e os que optaram por permanecer no domicílio receberam o acesso ao sistema informático e todo o equipamento necessário para realizar as suas tarefas em casa. No entanto, o inspetor da ACT realça que, “segundo a lei, não há voluntarismos” e recorda a obrigatoriedade da medida.
Confrontado com a lei em vigor, o responsável pela empresa tecnológica refere que apenas um terço das equipas, geralmente formadas por 25 elementos, é autorizado a operar no escritório. Acrescenta que a medida é posta em prática através da criação de grupos fixos e horário desfasados para evitar o cruzamento de pessoas. Depois de entrevistar alguns colaboradores, o inspetor da ACT conclui que a maioria garante sentir-se “seguro e confortável” no local e salienta que “o trabalho presencial permite uma maior eficácia e rapidez”.
A empresa em causa não obriga o uso de máscara nos postos de trabalho, alegando que a distância de dois metros está a ser cumprida, algo que os inspetores da ACT não verificam plenamente. “Era bom existirem placas de acrílico a separar os lugares nas secretárias, oferece uma segurança maior”, assinalam. Os lugares são fixos e definidos em formato zig zag, com uma cadeira de intervalo. “Há pessoas em formação e o distanciamento físico nem sempre é cumprido, pois partilham o mesmo monitor de computador”, observa, no entanto, a inspetora.
Em todas as mesas há dispensadores de álcool gel e na receção são oferecidos kits com máscaras cirúrgicas e uma embalagem de toalhitas desinfetantes, mas há outros aspetos que preocupam a ACT. Um deles é a lotação máxima de pessoas na copa. Na entrada desta zona comum, há uma lista em papel onde cada trabalhador pode escrever o seu nome na coluna correspondente ao horário em que pretende almoçar. O intervalo temporal é grande, entre as 12h00 e as 15h e, apesar de não estar descrita a lotação respetiva de cada período, a grande maioria prefere gozar esta pausa à mesma hora.
“Isto pode tornar-se um problema”, acusa a inspeção. “Vamos ter mais atenção a isto”, promete o responsável, acrescentando que desde o início da pandemia foram detetados oito casos positivos à Covid-19 na empresa, um dos quais ainda está ativo, “mas nenhum teve o escritório como foco de contágio”.
Durante a visita, os inspetores da ACT verificam as condições de outros espaços como as casas de banho ou a sala de isolamento e, perante as janelas fechadas, tentam confirmar se existe climatização e renovação do ar no interior do edifício. “Este é um caso que não requer medidas imediatas, apenas alguma documentação e melhorias relacionadas com questões menores”, concluem.
Em cinco meses realizaram-se 192 intervenções inspetivas com 19 sanções no Grande Porto
O Observador acompanhou o trabalho de dois dos 39 inspetores do Centro Local do Grande Porto, que desde o início do ano já realizou 192 intervenções em 11 concelhos na região e que resultaram em 19 procedimentos sancionatórios. As irregularidades detetadas prendem-se não apenas com a obrigação do teletrabalho, mas também com os horários desfasados, o distanciamento físico entre os trabalhadores, a utilização de equipamentos de proteção individual, a organização dos tempos de trabalho ou até mesmo o pagamento de horas extraordinárias.
São normalmente recebidos pelos responsáveis dos recursos humanos de cada empresa e após uma pequena conversa numa sala de reuniões, onde conhecem o tipo de trabalho desenvolvido, o número de funcionários contratados e as adaptações que foram feitas à boleia da pandemia, tiram apontamentos e efetuam uma espécie de visita guiada pelas instalações. Durante esse percurso verificam quase tudo, do distanciamento das secretárias à lotação de pessoas na copa, das condições das casas de banho à qualidade do ar.
Falam com trabalhadores aleatoriamente e questionam-os sobre as suas condições laborais, o horário praticado, os motivos pelos quais não estão a cumprir o teletrabalho ou o acesso a equipamentos de proteção individual. Em fase de pandemia, as visitas tornaram-se mais curtas por não existir troca de documentos presencialmente, de forma a evitar o contágio. Por isso, no fim de cada ação, a equipa da ACT solicita alguns contactos para os quais são posteriormente enviados pedidos de documentos como listagens detalhadas do número de equipas de trabalho, registos de tempos de serviço, planos de contingência ou relatórios de identificação e análise de riscos profissionais. Só depois de analisar este material é que a ACT deteta irregularidades e avança com procedimentos sancionatórios.