A 30 de julho, dia em que foram conhecidos os prejuízos recorde do BES e a escassos dias da medida de resolução imposta ao banco, Maria Luís Albuquerque recebeu Vítor Bento, José Honório e João Moreira Rato para uma reunião. A ministra das Finanças viria a garantir, a 8 de outubro, no Parlamento, que “não houve uma proposta de modelo nem uma rejeição de modelo” durante esse encontro. Maria Luís Albuquerque negou, gerando ceticismo entre os deputados da oposição presentes nessa audição parlamentar, que os três administradores tenham ido ao Ministério pedir um empréstimo estatal para responder aos prejuízos encontrados e que o Governo tenha dito que não. Nessa reunião, foi dada “apenas uma clarificação das novas regras europeias (de capitalização de bancos pelos Estados), porque por vezes as regras europeias mudam e as pessoas podem não ter conhecimento”. Depois do anúncio dos prejuízos veio o êxodo dos investidores interessados dos quais falara o Banco de Portugal nos dias anteriores e, a 3 de agosto, era anunciada a resolução do BES. Era a única opção ou podia ter sido diferente?
Na reunião entre Albuquerque, Bento, Honório e Moreira Rato “ficou claro que não haveria envolvimento do dinheiro dos contribuintes” neste processo, disse a ministra das Finanças no Parlamento. Com reestruturação ou resolução, teria de haver perdas para os acionistas e para os detentores de dívida subordinada. Depois de já terem sido apresentados os prejuízos históricos, justificados, em parte, pelos negócios do banco com o Grupo Espírito Santo, Vítor Bento terá proposto à ministra das Finanças um esquema misto que era uma última tentativa de evitar uma resolução do BES e uma separação entre ativos considerados saudáveis e tóxicos. Essa solução mista para injetar três mil milhões de euros no BES, segundo o Diário Económico, passava por uma recapitalização através de algum investimento privado mas também – e, presume-se, sobretudo – um empréstimo estatal.
Com a desistência de grandes investidores depois de os prejuízos se terem revelado maiores do que se temia, aquele que era o “plano A” de todos, incluindo do Banco de Portugal, caiu por terra. As autoridades terão afastado, de imediato, um cenário de liquidação. Na carta que enviou à Direção Geral da Concorrência europeia a pedir autorização para a medida aplicada ao BES, o governo indicou que o Banco de Portugal acreditava que “uma liquidação desordenada iria destabilizar os mercados financeiros em Portugal e desencadear uma crise geral de confiança”, uma consideração com que Bruxelas concordou. O custo de uma bancarrota ou liquidação do BES, tendo em conta a dimensão da instituição, a quota de mercado e as interligações externas e internas, poderia ascender a um intervalo entre 16 e 28 mil milhões de euros. Isto além de um desembolso entre nove e 18 mil milhões de euros por parte do Fundo de Garantia de Depósitos nacional para cobrir depósitos. Por estas razões e outras, a Comissão concordou que que esta não era uma opção sobre a mesa.
Por outro lado, “uma nacionalização é sempre uma possibilidade no papel mas também não me parece que esta pudesse ser uma opção neste caso”, diz ao Observador um advogado especialista em direito financeiro. Acima de tudo porque “isso não garantiria uma proteção adequada dos recursos dos contribuintes, tendo em conta a incerteza em torno da situação do BES e das perdas adicionais que poderiam surgir, relacionadas com a exposição ao Grupo Espírito Santo”. Nesta medida, o especialista reconhece que “esta foi, em muito, uma decisão política e não apenas legislativa. Sem fazer juízos de valor, se foi ou não a decisão correta, há aqui claramente uma componente muito relevante de decisão política“, afirma. E foi exatamente assim, como uma decisão política, que foi lida a recusa de Maria Luís Albuquerque à proposta que Vítor Bento apresentou, escreveu o Diário Económico. Isto porque no esquema misto proposto pelo economista haveria lugar a alguma partilha de encargos que levaria a que os acionistas também sofressem perdas, o que poderia já aproximar-se das orientações europeias sobre a forma como se deve lidar com problemas em bancos.
A mudança das regras europeias, já parcialmente vertida para a legislação nacional, foi invocada várias vezes nos dias posteriores à resolução imposta ao BES. Num debate parlamentar solicitado pelo Partido Socialista (PS) e que se realizou a 7 de agosto, na primeira semana de “vida” do Novo Banco, a ministra das Finanças explicou que “ao longo dos últimos dois anos, tem vindo a ser transposta para a legislação nacional todo um novo enquadramento legislativo em matéria bancária, acordado na Europa”. Uma legislação europeia em cuja elaboração “o PS, através da eurodeputada Elisa Ferreira, teve um papel muito relevante“, atirou Maria Luís Albuquerque. Era devido a essa legislação que seria impossível fazer uma recapitalização do BES nos mesmos moldes e com as mesmas implicações dos empréstimos concedidos, em 2012, ao BCP, BPI e Caixa Geral de Depósitos.
A Comissão Europeia adotou a 6 de junho de 2012 a proposta legislativa que previa “novas medidas de gestão de crises para evitar que venham a ser necessários novos resgates à banca”. Passado cerca de um ano, no verão de 2013, os ministros das Finanças da zona euro chegaram a acordo sobre os traços gerais da Diretiva de Recuperação e Resolução Bancárias. Uma diretiva que seria aprovada em dezembro de 2013 após acordo entre o Parlamento Europeu, Conselho Europeu e a Comissão Europeia. No fundo, o objetivo era o de evitar novo recurso a dinheiro dos contribuintes para recapitalizar bancos que entrem em dificuldades. Ou, pelo menos, limitar esse recurso ao mínimo possível, recorrendo antes ao capital do banco e aos detentores de dívida subordinada, aquela cujo risco se assemelha ao das ações pelo facto de ser reembolsada, em caso de falência, só depois dos credores preferenciais (dívida sénior).
O que diz a lei?
Em Portugal, “a diretiva foi parcialmente transposta pelo Decreto-Lei n.º 114-A/2014, de 1 de agosto, que alterou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras”, explica Nuno Galinha, advogado da Miranda, especialista em direito bancário e financeiro. “O artigo 8º -D da Lei n.º 63-A/2008, de 24 de novembro (na redação dada pela Lei n.º 1/2014, de 16 de janeiro), indica que “previamente à realização de uma operação de capitalização com recurso a investimento público, devem ser implementadas (…) medidas de repartição de encargos”. Isto para “eliminar ou reduzir ao máximo o recurso ao investimento público” e para “assegurar que esse investimento beneficia de um grau de subordinação mais favorável”. Entre as medidas está a eventual “supressão do valor nominal das ações da instituição” e também a “redução do valor nominal de créditos (…) que sejam, ou tenham sido em algum momento, elegíveis para os fundos próprios”. Este terá sido foi o argumento utilizado pela ministra das Finanças para “explicar” a Vítor Bento porque uma recapitalização por fundos públicos não poderia ser feita nos mesmos moldes que no BCP e BPI, em 2012.
Nos empréstimos que foram feitos ao BCP e ao BPI, no âmbito dos respetivos planos de reestruturação acordados com o governo e com Bruxelas, não houve perdas para os acionistas nem para os obrigacionistas. Os bancos emitiram um instrumento a que se chama obrigações de capital contingente (na gíria, CoCo’s) e estes títulos foram subscritos na totalidade pelo Estado, que para isso utilizou parte dos 12 mil milhões de euros que a troika consignou à eventual recapitalização dos bancos nacionais. Em rigor, há perdas – ainda que não imediatas – para os acionistas, já que esses instrumentos pagam juros elevados e crescentes (entre 8% e 9%) ao Estado e porque, como se viu no caso do BCP, foi necessário fazer um aumento de capital, já este ano, para reembolsar a “fatia de leão” destes instrumentos. Num aumento de capital, há perdas para os acionistas existentes a menos que estes acompanhem a operação, investindo mais, para manter a mesma participação.
Esta hipótese estava, no caso do BES, fora de questão. Não que fosse impossível fazer um empréstimo ao BES através de CoCo’s mas porque uma operação desse género implicaria sempre perdas imediatas para os acionistas e detentores de dívida. Como noticiou o Jornal de Negócios a 16 de julho, estes perderiam tudo antes de entrar o primeiro cêntimo de assistência financeira pelo Estado. Como prevê, aliás, a lei de 16 de janeiro. Uma lei que, contudo, pode admitir exceções se houver riscos sistémicos na imposição de perdas aos acionistas.
Há que considerar, a este respeito, que na subscrição de CoCo’s pelo Estado, ainda que não haja, nesse momento, uma nacionalização, isso pode ocorrer caso os bancos não consigam reembolsar o empréstimo. Em caso de falha de pagamento das CoCo’s, o que era dívida transforma-se em ações, daí o risco refletido no juro cobrado pela subscrição dos instrumentos. Um risco para os contribuintes que a ministra das Finanças garantiu não existir no modelo que foi escolhido para o BES.
No que diz respeito ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, a partir do Decreto-Lei n.º 31-A/2012, de 10 de fevereiro, passou-se a prever a possibilidade de o Banco de Portugal aplicar medidas de resolução em instituições sujeitas à sua supervisão (com a alienação total ou parcial da atividade ou transferência parcial ou total da atividade para bancos de transição). Depois, a 4 de agosto, já após a medida de resolução aplicada ao BES, surgiu em Diário da República o Decreto-Lei nº 114-B/2014 que veio fazer alterações ao regime relativo à aplicação de medidas de resolução. As alterações “centram-se no aspeto particular das modalidades e condições da alienação das ações representativas do capital social ou do património dos bancos de transição, no sentido de promover a sua regular e eficiente gestão, facilitando a procura de soluções de mercado para a conservação e maximização do respetivo valor”. Isto é, este decreto, para cuja elaboração “foi ouvido o Banco de Portugal”, estabelece a base legal para a venda do Novo Banco.
A diretiva europeia, cuja elaboração foi liderada por Michel Barnier, Comissário do Mercado Interno e Serviços, terá de ser aplicada na íntegra por todos os Estados-membros até 31 de dezembro de 2014. Mas é a partir de 2016 que se tornarão mais duras as regras para a utilização de ativos e instrumentos de dívida dos bancos para reduzir a necessidade de intervenção pública, como explica Silvia Merler, economista ligada ao instituto de pesquisa Bruegel, em Bruxelas. “Até lá, o que existe é uma situação de incerteza relativa – em que a resolução do BES acabou por ter lugar – em que valem as emendas que cada país já realizou à lei local“, diz a especialista.
Os especialistas ouvidos pelo Observador dizem que, apesar da integração das regras europeias na lei portuguesa, a recapitalização pública poderia ter sido uma opção, ainda que, eventualmente, com o grau de partilha de encargos que Vítor Bento sugeriu, segundo o Diário Económico, no dia 31 de julho. O processo de autorização europeia poderia, até, nem levar tanto tempo quando seria normal, diz o jornal, de forma a respeitar-se o prazo de meros dias imposto pelo Banco Central Europeu (BCE) para que o BES reforçasse os capitais sob pena de perder o estatuto de contraparte. O que isto significa? Não só a “torneira” da liquidez do BCE iria encerrar-se mas, também, teria de ser devolvida toda a liquidez do banco central que estava no balanço do banco e que se acredita ascender a 10 mil milhões de euros. Mas Maria Luís Albuquerque terá rejeitado essa hipótese e optado pela via mais próxima das regras europeias cuja aplicação está em curso.
O que dificilmente seria aceite pela Comissão Europeia, diz um especialista em legislação financeira europeia ouvido pelo Observador, era um empréstimo por parte da Caixa Geral de Depósitos, uma hipótese tentada ainda por Ricardo Salgado mas que o governo sempre rejeitou. “O caso de um banco que é propriedade do Estado a fazer um empréstimo a um banco privado seria sempre visto como uma forma de fazer ajudas de Estado e ‘fintar’ a diretiva europeia que obriga a um recurso, em primeiro, ao capital e dívida subordinada do banco”, diz o especialista.
Um advogado português, que preferiu não ser identificado acredita, no entanto, que “seria sempre possível chegar a algum tipo de acordo, de negociar um empréstimo ao BES que permitisse que o banco voltasse a cumprir os rácios mínimos e, assim, evitar que o Banco de Portugal tivesse de tomar a medida que foi tomada”. “Mas uma solução desse género implicaria sempre risco maior para o contribuinte, daí que eu considere que esta foi, em grande medida, uma decisão política”, afirma. O Estado acabou por fazer um empréstimo ao Fundo de Resolução para que este tivesse o capital suficiente para injetar no Novo Banco, e são os outros bancos do sistema a ter de compensar caso a instituição seja vendida abaixo do capital injetado. No Parlamento, a 8 de outubro, Maria Luís Albuquerque concordou que, neste caso, não há soluções perfeitas. “Perfeito teria sido não ter tido o problema do BES”.