A locomotiva da direita está parada nos carris. A locomotiva da esquerda segue sem rumo aparente — ou, aos olhos presidenciais, indesejável. Marcelo Rebelo de Sousa já não esconde a preocupação com a saúde do PSD e com a estratégia seguida pelo PS. De resto, para o Presidente da República, a combinação não podia ser pior: se Rui Rio não consegue oferecer uma alternativa, António Costa vai falhando em oferecer uma visão de longo prazo para o país.
Foi isso mesmo que Marcelo foi transmitindo aos partidos com assento parlamentar na ronda de audiências que manteve nos últimos dois dias. Esta quarta-feira, o Presidente da República tem encontro marcado com PSD e PS e deve repetir os alertas: é preciso fazer mais e melhor.
O estado da direita inspira todos os cuidados. Marcelo entende que Rio não está a conseguir ir buscar votos ao centro para transformar o PSD numa alternativa credível e que está a cometer erros estratégicos comprometedores — à cabeça, a vontade permanente de chegar a entendimentos com António Costa. Predisposição que não ajuda a mobilizar a direita e que transmite sinais contraditórios ao eleitorado.
A decisão de avançar com uma proposta de revisão constitucional agora — em vésperas de autárquicas e já perto da segunda metade da legislatura — é um desses erros estratégicos, entende Marcelo. Numa altura em que Rio devia estar a intensificar a oposição a Costa, o PSD vai passar largos meses a negociar com os socialistas um documento de compromisso — isto se quiser concluir com sucesso uma eventual revisão constitucional.
Por outras palavras: se a proposta até tem virtudes — e Marcelo reconhece que tem — o timing de apresentação foi péssimo, não será facilmente compreendido pelos eleitores e arredará o PSD do seu papel enquanto partido que tem de liderar a oposição.
Esse desconforto foi manifestado por Marcelo, que aproveitou as audiências para atentar o óbvio: se não for o PSD a alumiar o caminho, a direita dificilmente será capaz de chegar ao poder. Até porque o crescimento dos dois novos partidos, Iniciativa Liberal e Chega, está a ser feito à custa da fragmentação desse espaço político. Em síntese: não soma, antes subtrai.
E esse é outro factor que preocupa Marcelo: o ciclo de poder da esquerda arrancou em 2015; em condições normais, deve estender-se até 2023; e mais quatro anos serão uma eternidade. O Presidente quer alternância para evitar a eternização do PS no poder.
Marcelo, que termina o mandato em 2026, gostava de se despedir de Belém com um governo de direita no poder porque isso seria um sinal de vitalidade do regime. Mas os sinais não são pacificadores. A pandemia dominou grande parte da discussão política nos últimos 18 meses e pode condicionar o futuro: em tempos de insegurança e de incerteza, os eleitores tendem a recusar o experimentalismo e a premiar a estabilidade, tendem a rejeitar a alternativa e a favorecer o poder. Se a oposição não arrepiar caminho, será difícil tirar os eleitores do sofá.
Mesmo consciente desta dificuldade, Marcelo espera que os próximos meses venham trazer uma clarificação. Depois das autárquicas, as lideranças de PSD e CDS vão a votos e os dois partidos terão oportunidade de reafirmar ou inverter o rumo.
Também nos próximos meses será mais fácil perceber se António Costa tem ou não vontade de continuar para mais um mandato. Uma eventual alteração na liderança socialista pode desestabilizar o partido e provocar uma mudança de equilíbrios; já a continuidade de Costa pode ser um seguro de vida do PS. Só quando tudo estiver mais nítido é que será possível ver com linhas se cose o país político.
Desgaste do Governo e aplicação da bazuca inspiram reservas
No imediato, o Chefe de Estado continua alarmado com o caminho escolhido pelo Governo. Para Marcelo, que transmitiu essas mesmas reservas nas audiências que manteve com os partidos, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é vago e pouco ambicioso. Por outras palavras: falta visão estratégica.
Para mais, Costa tem-se desdobrado, discurso após discurso, em promessas que têm por base o dinheiro europeu — e já usa esse argumento na estrada, de olhos postos no próximo desafio (de curto prazo): as eleições autárquicas.
No entender de Marcelo, o Executivo socialista revela sinais inegáveis de desgaste, parece incapaz de um novo impulso e está aparentemente mais concentrado em gerir a legislatura do que em encontrar novos rumos para o país. O Presidente queria mais: mais crescimento económico, mais reformas, mais ambição.
Ideias que voltou a repetir nesta audiência acrescentando novos-velhos lamentos: é preciso saber controlar e escrutinar a aplicação do dinheiro europeu.
Costa faz-se à estrada para dar gás aos candidatos autárquicos. Com um trunfo: o dinheiro europeu
Nem sequer é a primeira vez que o Presidente da República confessa o seu desconsolo. Ainda no arranque de julho, Marcelo falou publicamente sobre o documento resumindo-o em 15 palavrinhas: “Não há planos ideais, este não é um plano ideal, mas é o que temos.”
Recentemente, no encerramento de uma conferência do Fórum para a Competitividade, no Centro de Congressos de Lisboa, o Presidente foi ainda mais longe e desafiou o setor privado a chamar a si a construção de uma visão alternativa do país.
“Os protagonistas políticos, económicos e sociais defensores de um percurso diferente não têm logrado alcançar força persuasiva para que o seu discurso constitua um discurso alternativo e, sobretudo, constitua uma solução alternativa”, reconheceu Marcelo, antes de deixar a mensagem que queria deixar:
“O setor privado deve prosseguir o seu empenho ou, se quiser, a sua luta, para ter protagonistas institucionais, políticos e outros, mais fortes, para ter discurso político com mais eco nos momentos de decisão popular e eleitoral.”
Por agora, o quadro com que Marcelo conta é radicalmente diferente: para o Presidente, a segunda metade de legislatura que começa a desenhar-se já com o Orçamento do Estado para 2022. E se Marcelo tem expressado a sua confiança em que o PCP voltará a viabilizar o documento e assim a segurar o Governo, os comunistas vão avisando: a “estabilidade social” determinará a “estabilidade política”, como dizia Jerónimo de Sousa à saída da reunião.
É só um primeiríssimo esboço de caderno de encargos, até porque os comunistas já avisaram que só querem negociar a sério depois das eleições autárquicas. Mas Marcelo sabe que essa ‘amarra’ ao PCP volta a ser um cenário provável — e essa condição, misturada com um PRR que acredita fazer pouco pelas reformas de que o país precisa, resulta num cocktail político indigesto para o Presidente. Resta saber se haverá uma alternativa em que Marcelo acredite e ponha as suas fichas.