Foi um mercado inédito e sem precedentes, com um protagonista inesperado. Na Arábia Saudita, no que aos negócios do futebol diz respeito, as calculadoras não têm botões de somar, só de subtrair. Cristiano Ronaldo foi o chamariz perfeito para que todos os outros jogadores se sentissem legitimados a mudarem-se para o mesmo campeonato que o cinco vezes Bola de Ouro. Os milhões gastos foram muitos e podem não ficar por aqui, uma vez que o mercado só fecha a 20 de setembro na Arábia Saudita. E quem já gastou mais de 800 milhões de euros ainda pode fazer um pequeno “esforço” para contratar mais algumas estrelas.
A data de encerramento do mercado não é um detalhe e há inclusivamente quem se sinta ameaçado. A razão é simples. Os clubes europeus estão nas mãos dos sauditas. Com o prazo de inscrição de jogadores esgotado para as equipas dos maiores campeonatos europeus, os clubes ficam com pouca margem de manobra, porque, caso percam jogadores importantes, não há hipótese de encontrarem um substituto.
O Liverpool é quem mais pode sofrer com estes timings. Neste último dia de mercado, o Al-Ittihad, treinado por Nuno Espírito Santo e onde joga atualmente Karim Benzema, chegou-se à frente com 233 milhões de euros para levar Mohamed Salah. Os reds recusaram a proposta, mas isso não quer dizer que um dos clubes financiado pelo fundo de investimento público do reino não volte à carga.
Para precaver situações como esta, os clubes ingleses criticaram junto da FIFA a data limite para a Arábia Saudita inscrever jogadores. Nomes fortes da Premier League, como Jurgen Klopp ou Pep Guardiola, pronunciaram-se sobre o assunto. “A influência da Arábia Saudita é enorme neste momento”, disse o treinador do Liverpool que já viu Fabinho, Firmino e Jordan Henderson, antigos jogadores dos reds, rumarem ao Médio Oriente. “A UEFA ou a FIFA devem encontrar soluções para isso. Neste momento, não sei exatamente o que vai acontecer. Já tem influência em nós, mas temos que aprender a lidar com isso”. Por sua vez, Pep Guardiola, considera que o país asiático está a alterar a regras do jogo. “Neste momento, com a liga saudita, não sei por quanto tempo eles vão sustentar isso. Mas os jogadores querem aproveitar essa experiência e jogar nessa liga. A Arábia Saudita mudou o mercado”.
Apesar da proposta feita a Salah, no caso de ser aceite pelo Liverpool, poder representar a maior transferência do futebol mundial, a Arábia Saudita não tem qualquer negócio no top 20 dos mais caros de sempre. Olhando apenas para transferências ocorridas neste mercado de verão, só a ida de Neymar para o Al Hilal, por 90 milhões de euros, figura nos dez acordos mais dispendiosos para o clube comprador, sendo que importa contextualizar com alguns exemplos: o Arsenal pagou 116,6 milhões de euros (mais variáveis) por Declan Rice e o Chelsea deu 116 milhões (mais variáveis) por Moisés Caicedo.
Apesar de não gastar muito no pagamento aos clubes, o investimento da Arábia Saudita em grandes jogadores não pode ser menosprezado. Há duas razões que justificam que os sauditas não batam recordes de transferências. Uma é a aposta em jogadores livres – foi assim que Karim Benzema (Al-Ittihad), N’Golo Kanté (Al-Ittihad), Firmino (Al-Ahli) e Moussa Dembélé (Al-Ettifaq) chegaram ao país -, a outra é colocando em cima da mesa prémios de assinatura e salários elevados.
A abordagem peculiar mereceu o comentário crítico do treinador do Sevilha, José Luis Mendilibar. “No final das contas, é normal que os jogadores saiam. Os clubes sauditas conversam com os jogadores antes de falarem com os clubes, chegam a acordos com eles e depois oferecem misérias aos clubes. Mas enganam o jogador. É difícil. ‘Mexem’ com um jogador que tem um contrato de dois anos”, afirmou o técnico que perdeu o guarda-redes Bono para o Al Hilal.
Os clubes sauditas despenderam dinheiro em volumes bastante diferentes. Os quatro clubes detidos pelo estado foram os mais esbanjadores. O Al Hilal de Jorge Jesus gastou 353,1 milhões de euros, o Al-Ahli 184,2 milhões, o Al Nassr 165,1 milhões e o Al-Ittihad 75,8 milhões. Destes valores, está excluído o montante destinado ao salário dos jogadores. Por não existir qualquer tipo de fair play financeiro, destes emblemas, apenas o Al-Ittihad fez uma venda onde arrecadou meros 750 mil euros.
Neymar, Mahrez, Benzema, Kanté , Fabinho, Firmino, Rúben Neves, Otávio, Sadio Mané ou Laporte são apenas alguns dos nomes mais mediáticos que aterraram no país. As figuras mais cotadas estão essencialmente divididas pelos quatro principais clubes. No entanto, também ao nível das equipas que não pertencem ao estado há uma preocupação de fazer crescer a competitividade. O Al-Ettifaq, de Jordan Henderson, é o melhor exemplo. Também o Al-Shabab, treinado por Marcel Keizer, se enquadra numa segunda linha de clubes que mais abrem os cordões à bolsa.
A maioria dos reforços que rumaram à Arábia Saudita são estrangeiros. Não se trata meramente de jogadores em final de carreira. O exemplo mais paradigmático disso mesmo foi a contratação de Gabri Veiga pelo Al-Ahli. Proveniente do Celta de Vigo, o jovem mostrou ser um dos maiores talentos do futebol espanhol. O jogador do Real Madrid, Toni Kroos, comentou nas redes sociais o que achava da transferência: “Embaraçoso”. Mais tarde, em declarações à Sports Illustrated, o alemão elaborou mais o que pensa sobre o fenómeno.
“Chegou-se a comentar que na Arábia Saudita se joga um futebol ambicioso, mas gira tudo em torno do dinheiro. No fim das contas, é uma decisão por dinheiro e que vai contra o futebol. É aqui que começa a ser difícil para o futebol que todos conhecemos e amamos. Todos têm de tomar essa decisão, tal como Cristiano Ronaldo, que decidiu fazê-lo já em final de carreira. Mas fica muito difícil quando jogadores que estão a meio das suas carreiras e que ainda têm qualidade para jogar nos melhores clubes da Europa, decidem fazer essa mudança”, afirmou o médio.
Os sauditas conseguiram atrair nesta janela de mercado sete jogadores portugueses. Otávio, Rúben Neves, Jota, Tozé Carvalho, Ivo Rodrigues, André Moreira e Pedro Rebocho alargaram o contingente nacional no campeonato. Portugal é a segunda nação estrangeira mais representada apenas atrás do Brasil.