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Durante a última campanha para a liderança do Partido Conservador, Liz Truss tentou sempre que possível emular Margaret Thatcher. O seu adversário, Rishi Sunak, tinha outro ídolo político: Nigel Lawson, o homem que foi ministro das Finanças de Thatcher durante seis anos.
“Lembramo-nos todos daqueles orçamentos com descidas de impostos que Nigel Lawson apresentou. E, meu Deus, isso foi inspirador para mim, tal como o documento de reforma fiscal que está na sua autobiografia. Volto a ler e reler aquilo, porque é brilhante. Falámos sobre isso quando tive o privilégio de o conhecer”, afirmou Sunak ao histórico jornalista Charles Moore, numa entrevista para a Spectator durante a campanha.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre Rishi Sunak
As declarações deram menos nas vistas do que as repetidas tentativas de Truss de se retratar como a nova Thatcher, imitando-a até na roupa. Mas não eram falsas: Nigel Lawson foi das primeiras pessoas a quem Sunak pediu conselhos quando assumiu a pasta das Finanças no governo de Boris Johnson e era sua a fotografia que mantinha no gabinete durante todo o tempo que esteve no cargo.
Essa inspiração era também coerente com a visão que trazia para o cargo de primeiro-ministro. É certo que quem prometia descida de impostos imediata era Truss, e não Sunak, mas a visão do antigo ministro das Finanças encaixava muito mais facilmente na visão económica de um conservador ortodoxo. “Acho muito triste que considerem a minha opinião minoritária. Não sei como é que caímos numa situação em que Keir Starmer e o Partido Trabalhista podem agora atacar os candidatos conservadores dizendo que estão a defender políticas económicas fantasiosas ou promessas infundadas”, lamentou-se na mesma entrevista à Spectator. “Acredito que é preciso pagar pelas coisas nas quais se gasta dinheiro. Esse é um princípio simples, básico e moral do conservadorismo.”
Era já um Rishi Sunak aparentemente derrotado que ali falava — e cuja derrota a votação dos militantes tories confirmaria poucas semanas depois. Mas eis que, menos de três meses mais tarde, Sunak se pode sentir vingado. As propostas de descida de impostos combinadas com aumento da dívida pública de Liz Truss provocaram o alarme nos mercados financeiros e levaram ao governo mais curto da História do Reino Unido. E, para a substituir, os deputados conservadores coroaram Rishi, o mesmo Rishi que tinha sido rejeitado pouco antes pelos militantes do partido.
Sunak nunca escondeu ao que vinha. É um homem do mundo da finança que gosta de citar o sogro quando este diz que “confiamos em Deus, mas todas as outras pessoas precisam de apresentar dados”. Esse é agora o seu maior trunfo, liderando um governo que precisa de voltar a ganhar confiança junto dos mercados financeiros.
Mas pode também ser o seu calcanhar de Aquiles — o homem do mundo da finança, possivelmente o primeiro-ministro mais rico que o Reino Unido já teve, é visto por muitos como desfasado do eleitor comum. Os inimigos apenas precisam de rebobinar a cassete, quando um jovem Rishi de 21 anos falou à BBC para um documentário: “Tenho amigos que são aristocratas, tenho amigos que são de classe alta, tenho amigos que são de classe trabalhadora… Bem, de classe trabalhadora não.”
O fã da Guerra das Estrelas que aos 17 anos lamentou a eleição de Tony Blair
Rishi Sunak não é, porém, uma caricatura. Sim, estudou em escolas de elite como Winchester e Oxford, fez um MBA na Califórnia e consolidou uma carreira na Goldman Sachs e em fundos de investimento. Mas é agora o primeiro primeiro-ministro não-branco na História do Reino Unido, é um hindu praticante e tem apenas 42 anos.
Os pais, Yashvir e Usha, são hindus punjabi que emigraram para o Reino Unido, onde se conheceram, na década de 1960. O pai tornou-se médico de família, a mãe geria uma farmácia local. Em casa, onde viviam com Rishi e os outros dois filhos mais novos, não se falava de política.
A infância do jovem Rishi foi captada num perfil publicado no The Times em 2020: “Sunak era um fanático da Guerra das Estrelas: colecionava bonecos, legos, revistas e posters. Aprendeu a tocar piano (o seu ‘maior arrependimento’ é ter desistido), colecionava cromos do Southampton FC e passava horas de cabeça para trás e boca aberta, a semicerrar os olhos perante o brilho da luz do candeeiro do dentista. Tem sete cáries remendadas para comprovar o seu ‘vício por Coca-Cola’ e agora limita-se a beber uma por semana.” Sunak era também, acrescenta o mesmo perfil, um “rato de biblioteca”.
Foi influenciado pela cultura dos pais e do país onde nasceu, garante, relembrando que passava os sábados no templo hindu e os domingos a ver futebol no estádio. Sempre torceu por Inglaterra no críquete (e não pela Índia), mas reconheceu também ter sido alvo de racismo uma vez, num restaurante de fast food, quando era adolescente. “Feriu-me. Ainda me lembro, está-me gravado na memória”, disse à BBC.
Já no liceu Rishi se destacava como um conservador, indo contra a maioria das posições dos colegas. O colega de escola Tim Johnson relembrou à revista Tatler que, em 1997, “toda a gente ficou animada quando [Tony] Blair venceu” — menos Sunak. De tal forma que escreveu um artigo para a revista da escola, a The Wykehamist, onde não só criticava Blair como deixava claro o seu euroceticismo: “Ele gaba-se de ser um patriota, mas tem planos para a possível dissolução do Reino Unido e adesão a um possível Super-Estado Europeu.”
Aos 17 anos, Rishi Sunak falava como alguns dos tories mais veteranos. E, daí para a frente, manteve o rumo.
Senhor 800 milhões: um primeiro-ministro mais rico do que o Rei
Depois da licenciatura em Filosofia, Política e Economia em Oxford, comum a muitos outros primeiros-ministros do passado, Sunak foi estudar para fora. Na Califórnia, tirou um MBA na Universidade de Stanford — e conheceu a futura mulher, Akshata Murthy, filha de um dos homens mais ricos da Índia.
“As finanças foram o seu primeiro amor, mas ele piscava o olho à política. Ele citava [o antigo ministro conservador] Michael Heseltine para descrever as suas ambições: tornar-se milionário antes dos 30, deputado antes dos 40, ministro antes dos 50 e primeiro-ministro antes dos 60!”, confessou um colega da Califórnia ao The Times.
Todas foram alcançadas com sucesso. Sunak torna-se agora primeiro-ministro muito antes de chegar aos 60 e milionário já o é há muito. Especula-se que será o deputado mais rico de toda a Câmara dos Comuns e que pode agora ser o primeiro-ministro com a maior fortuna de todos os que já ocuparam o cargo — maior até do que a do Rei Carlos III. De acordo com o The Guardian, Sunak e a mulher têm uma fortuna combinada de mais de 800 milhões de euros, cerca do dobro da de Carlos III e Camila. O casal tem quatro propriedades, incluindo uma casa com cinco quartos no luxuoso bairro de Kensington, em Londres, e uma casa de férias que inclui ginásio e piscina interior.
A imagem de Rishi como um jovem endinheirado e distante do povo colou-se-lhe à pele, alimentada por notícias sobre o preço astronómico dos seus fatos feitos à mão e da bicicleta de exercício Peloton, no valor de quase dois mil euros, que mantém em casa.
Mais graves foram os escândalos que surgiram já quando ocupava a pasta das Finanças. O primeiro dava conta de que a sua mulher se mantinha ao abrigo de um regime fiscal que a isentava de pagar impostos sobre todos os rendimentos que obtinha do estrangeiro, onde se incluem as ações que detém na empresa multimilionária do pai. O segundo relaciona-se com o facto de Sunak manter o visto de residente norte-americano, muito embora já vivesse no Reino Unido há anos — de tal forma que era à altura ministro das Finanças do país. Ambos acertavam na mouche na ideia de que Rishi fazia parte de uma “elite global” que considera que as regras não se aplicam a si.
Akshata Murthy apressou-se a alterar o seu regime fiscal, para não prejudicar a carreira política do marido, mas o mal estava feito. Sunak defendeu-se sempre desses ataques desvalorizando-os: “O que é importante são os valores, aquilo que uso é irrelevante“, afirmou durante a campanha. “O Partido Conservador deve estar do lado das pessoas bem-sucedidas, que o conseguem trabalhando no duro”. Na mesma altura, recusou renegar o facto de ter podido estudar na Winchester College, onde as propinas chegam quase aos 50 mil euros por ano, graças às capacidades económicas dos pais: “Não vou pedir desculpa pelo que os meus pais fizeram por mim, devem estar a brincar.”
Ascensão política meteórica em oito anos
A imprensa britânica sempre especulou que os casos do regime fiscal da mulher e do visto norte-americano teriam sido plantados pela equipa mais próxima de Boris Johnson. Porquê? Porque, durante o ano de 2021, Rishi Sunak tornou-se um ministro das Finanças tão popular que corria o risco de ofuscar o primeiro-ministro.
A seu favor tinha o facto de estar a promover um pacote de estímulo económico brutal, a propósito da Covid-19, que representava mais dinheiro no bolso dos eleitores. “A sua chegada à vida pública, com a conferência de imprensa onde anunciou os apoios à Covid e o esquema de lay-off, é a coisa mais impressionante que já vi na política — e isso inclui o Dave”, confessou um antigo conselheiro de David Cameron ao Times.
Sunak aproveitou bem a embalagem. Contratou uma agência para gerir as suas redes sociais enquanto ministro e contou com a ajuda do conselheiro Cass Horowitz, especialista nessa área. Não tardou a que Rishi atingisse níveis de popularidade nunca vistos num ministro das Finanças desde 1978, como relembra a Prospect.
Um feito impressionante se tivermos em conta que, em 2019, quase ninguém sabia quem era Rishi Sunak. Tim Bale, professor veterano de Ciência Política, recordou ao The New York Times que em dezembro desse ano fez um estudo com militantes do Partido Conservador e apenas cinco em quase dois mil participantes nomearam Sunak como possível sucessor de Boris Johnson. “E não tenho a certeza de que todos escreveram o nome dele de forma correta”, acrescentou.
Sunak só entrou de vez na política em 2014, depois de fazer fortuna, a trabalhar primeiro no Goldman Sachs e depois em dois fundos de investimento. O Partido Conservador procurava nesse ano um candidato para o círculo eleitoral de Richmond, uma zona tradicionalmente conservadora que até então era defendida pelo histórico tory William Hague. Sunak fez uma campanha de corpo e alma: vendeu a sua falta de experiência política como algo bom e tentou aproximar-se do eleitor comum conduzindo um Volkswagen Golf durante toda a campanha. Conseguiu o apoio do próprio Hague, venceu as primárias e depois a eleição nacional, encantando o partido: “Toda a gente dizia ao Cameron que ele era um candidato incrível”, recordou um membro do governo da altura.
Chegado a Westminster, rapidamente Sunak se tornou um barómetro do futuro do partido. Nos corredores do Parlamento garante-se que David Cameron desesperou quando soube que Sunak se posicionou a favor do Brexit. Por outro lado, Boris Johnson certamente rejubilou quando obteve o seu apoio para se candidatar a líder. Só assim se explica que o tenha recompensado com o cargo de ministro das Finanças após a demissão de Sajid Javid. Era uma das pastas mais importantes do país a ser entregue a um homem cuja experiência política se limitava a três anos como deputado e dois como secretário de Estado no governo de Theresa May.
Aquilo que provavelmente Boris não esperava é que Sunak se revelasse um aluno tão brilhante a ponto de tentar ultrapassar o mestre. O choque entre os dois começou a transparecer para as páginas dos jornais ao longo dos últimos meses de Johnson no governo. “Lembro-me de quando ele percebeu que aquilo que o Boris dizia e aquilo que o Boris fazia não eram necessariamente a mesma coisa”, recordou um antigo funcionário do executivo ao The Guardian, sobre Sunak. “Acho que ele estava frustrado, achava que não era assim que se deviam fazer as coisas.”
Com a onda do escândalo Partygate a crescer, Sunak viu a sua oportunidade e demitiu-se. Iniciou assim uma vaga de demissões que levariam à demissão de Boris Johnson. Mas não conseguiu afastar a imagem de “traidor”, num Partido Conservador que é rápido a puxar o tapete aos seus líderes, mas não gosta de premiar quem atira a primeira pedra. Truss venceu a campanha para substituir Johnson — mas eis que, menos de dois meses depois, Rishi Sunak é quem ri por último.
O que pode trazer um conservador “pragmático” e “não-ideológico”?
A grande dúvida que sobra agora é o que esperar de um governo liderado por Rishi Sunak. E os poucos registos do passado político do antigo ministro não servem de grandes pistas. Sunak sempre se assumiu a favor do Brexit, mas está longe de ser um hard liner, como comprova o facto de ter votado a favor do plano de Theresa May — tão criticado por Boris Johnson — as três vezes em que este foi ao Parlamento.
Além da economia e das finanças, há poucos temas onde a visão de Sunak seja conhecida. E, nesse tema fulcral, é difícil por vezes destrinçar quais as suas verdadeiras convicções. Este fã de Nigel Lawson defende uma plataforma de impostos baixos, mas garante que é impossível descê-los agora, tendo em conta a inflação, não se comprometendo com metas. Mais: foi consigo na pasta das Finanças que foram aumentados o IRC e as contribuições para a Segurança Social, e foi também no seu mandato que foi criado um imposto sobre os lucros inesperados das empresas, que levou deputados conservadores a insinuarem que seria um “socialista”.
Foi também durante o período em que foi ministro das Finanças que o governo britânico aplicou uma receita de apoios sociais reforçados durante a Covid-19 e criou o programa de investimento público Levelling Up.
Os apoiantes garantem que Sunak é apenas pragmático: “Ele é um conservador moderno e não-ideológico”, diz o antigo líder dos tories William Hague. Outros acusam-no de não ter espinha dorsal. “Todas as interações dele são baseadas no facto de ele precisar de algo teu. Quando o consegue, acabou”, desabafou um antigo funcionário do governo. A maioria, porém, é unânime em descrevê-lo como “discreto” e “trabalhador”.
Certo é que o percurso de Rishi, com experiência política limitada às Finanças, permitiu-lhe nunca ter de se expor demasiado. “O Rishi não é um ideólogo louco. Na maior parte dos cargos de relevo na política, é-se facilmente apanhado se se tiver um grande ego ou não se prestar atenção aos detalhes. As Finanças é um dos poucos cargos onde se pode ser mais como Macavity”, comentou um antigo ministro ao Times, referindo-se ao “gato misterioso” do livro de T.S. Eliot e do musical Cats.
Depois da experiência Truss, os mercados anseiam por alguém exatamente como Rishi: um homem talvez aborrecido, possivelmente flexível, mas que fala a linguagem das Finanças e segue a ortodoxia das contas certas. Como refletia a revista conservadora Spectator há dois dias, “o Reino Unido talvez descubra que a melhor opção é a mais aborrecida e moderada“.
O outro lado da moeda, porém, também lá está. Há apenas seis meses, quando ainda ocupava o cargo de ministro das Finanças, Rishi Sunak tentou provar que compreende o homem comum e, numa entrevista com a BBC, lamentou a inflação, citando de memória o aumento do preço do pão de 1 libra para 1,20. O problema é que, logo de seguida, admitiu que, na sua casa, “há muitos tipos de pão diferente” para agradar ao gosto de cada membro da família. E quantos britânicos podem dizer o mesmo?